Eleições municipais 2020: os entregadores e motoristas do Uber que viraram candidatos
Nas eleições municipais deste ano, representantes de uma nova categoria estão tentando despontar ainda mais na política: os trabalhadores de aplicativos.
Esse cenário é comprovado pelos números: em 2016, nas últimas eleições municipais, por exemplo, 1.072 "motoboys" se candidataram no Brasil, segundo o site Congresso em Foco. Neste ano, eles são 1.317, alta de quase 23%.
Por outro lado, 173 candidatos escolheram colocar a palavra "Uber" no nome que aparecerá na urna eletrônica, segundo levantamento do Observatório das Plataformas Digitais, grupo que reúne pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais e procuradores do Ministério Público do Trabalho. São pessoas como o Marcelão do Uber, a Cida Maria da Uber, o Pastor da Uber e o Bigode da Uber.
O estudo também apontou que 2.731 candidatos adotaram nomes de urna com referências ao trabalho de motorista, entregas e plataformas de transporte. O maior número de candidatos (1.041) usa "táxi" ou "taxista". Já 842 escolheram a palavra "motorista" e 595, "mototáxi" e "motaxista".
No total, as eleições deste ano têm 517.095 candidatos a vereador e 19.206 a prefeito no país inteiro.
Mas quem são esses candidatos oriundos dessa emergente categoria? Por que eles decidiram enfrentar as urnas? Quais projetos eles apresentam para uma classe de trabalhadores que aumenta a cada dia? A BBC News Brasil conversou com cinco deles, de várias regiões do país, para entender esse pontos.
Um deles é o paulistano Marlon Luz, de 40 anos, que escolheu o nome de Marlon do Uber para disputar uma das 55 vagas de vereador na Câmara Municipal de São Paulo.
Marlon começou a trabalhar com aplicativos em 2015, para complementar sua renda de funcionário de uma empresa de tecnologia. "Mas em 2016, a crise econômica bateu forte e eu saí da empresa. A Uber virou minha única fonte de renda", diz.
O motorista, no entanto, percebeu um nicho em uma classe de trabalhadores que cresce exponencialmente em um momento de desemprego alto. Apenas a Uber, por exemplo, tem 1 milhão de motoristas e entregadores no Brasil.
Marlon criou um canal no YouTube para contar suas experiências com passageiros, relatar as dificuldades do trabalho, reclamar das condições impostas pelas empresas e dar dicas de melhores maneiras de ganhar dinheiro.
Hoje, seu canal tem 610 mil seguidores e vídeos que já alcançaram 3 milhões de visualizações.
"A partir de 2018, os aplicativos começaram a abusar dessa força de trabalho, que existe em abundância. Houve diminuição de taxas de pagamento, falta de transparência e expulsão de trabalhadores sem qualquer direito de defesa", explica. Em meio a seu sucesso no YouTube, ele virou dirigente da Amasp (Associação dos Motoristas de Aplicativos de São Paulo), que oferece uma série de serviços aos associados, como advogados e proteção veicular.
"Depois pensei que poderia contribuir mais para nossa classe por meio da política. Há vereadores que representam taxistas e outros trabalhadores. Por que não ter um vereador motorista de aplicativo?", diz o candidato, filiado ao Patriotas.
Marlon se define como "liberal", mas acha que as empresas têm de ser cobradas quanto ao respeito a direitos. "Critico muito as empresas. Apesar do meu posicionamento como liberal, acredito que precisa haver regras. As pessoas precisam ter direitos respeitados", explica.
'Nossa vez'
Recentemente, Marlon criou um grupo chamado "Agora é nossa vez", que reúne cerca de 50 motoristas-candidatos por diversos partidos — do PT ao Novo.
A plataforma defende uma série de propostas para os trabalhadores da área, como o "direito de transparência para todas as regras que afetam a profissão dos motoristas", "direito ao acesso ao trabalho" e "transparência sobre os motivos das punições impostas pelos aplicativos aos colaboradores", uma das principais demandas do setor.
Para Leo Vinicius Liberato, doutor em sociologia política pela UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e pesquisador do setor de aplicativos, diferenças ideológicas com base em filiação partidária devem ser relativizadas quando se fala dos candidatos oriundos da categoria.
"Já vi um discurso de um candidato do Patriotas que era mais crítico aos aplicativos do que outro do PT, que falava em redução de imposto e menos regulação. A pessoa escolhe um partido muitas vezes porque é nele que encontra espaço pra se candidatar. A candidatura de vereador, que é mais baixa na hierarquia institucional, tem muito menos controle ideológico por parte dos partidos, aparece gente de todo tipo", diz.
Uma das candidatas do grupo "Agora é nossa vez" é Letícia Leite Lisbôa, 45, motorista e concorrente a uma vaga de vereadora em Pelotas, no Rio Grande do Sul. Apesar de se dizer de esquerda, ela concorre pelo Partido Liberal (PL), mas nunca viu problema nisso. "O partido sempre me deixou livre para ter minhas opiniões. A gente prioriza as pessoas e o trabalho", diz.
Advogada, ela entrou no setor no meio de 2019, depois de anos trabalhando na sede local da OAB. "Sempre gostei muito de dirigir, desde pequena amo carros. Mas também percebi que meus rendimentos eram maiores como motorista", explica Letícia.
No dia a dia, ela começou a reparar em problemas enfrentados pelos motoristas, como "guerra de preços" entre os aplicativos e descontos dados a passageiros e repassados a motoristas.
Ela também reclama da precariedade da estrutura viária da cidade, com muitos buracos no asfalto, falha na sinalização e falta de pontos de desembarque de passageiros. "Um dia, parei o carro perto de um ponto de táxi, e um taxista me abordou de uma maneira bem intimidatória: ele encostou no meu carro, tirou fotos e me gravou pelo celular", diz.
Uma das promessas da candidata é criar locais de apoio e descanso para motoristas, com cozinha, banheiro e lava-rápido. "Muitos motoristas saem de casa sem saber a hora que vão voltar. Nós prestamos um serviço para a população, mas não temos qualquer benefício", afirma.
'Precarizados'
Os entregadores também estão representados na massa de candidatos. Os nomes "entrega", "entregador" e "delivery" são utilizados por 29 pessoas nas urnas, segundo o levantamento do Observatório das Plataformas Digitais.
Apesar de não utilizar nenhuma dessas alcunhas, o universitário Saulo Benicio, 28, é um desses trabalhadores que decidiram se arriscar na política. Estudante de história na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Saulo trabalhou como mototaxista e entregador do iFood até meados deste ano.
Filiado ao PSOL, ele concorre a uma vaga na Câmara de Nilópolis, na baixada fluminense.
"O trabalho de entregador é extremamente precarizado. E as empresas se aproveitam da crise econômica e de uma juventude que não tem oportunidades, que está abandonada. Por isso, as pessoas aceitam fazer jornadas desgastantes para ganhar pouco. Você já começa o dia de trabalho devendo as taxas para a empresa", diz.
"Quando você é entregador, está preso a várias amarras criadas pelos aplicativos, como taxas, punições, avaliação. Você não tem vida, só consegue pensar no trabalho. Isso mexe inclusive com a saúde das pessoas."
Para ele, Nilópolis deveria investir mais em alternativas de emprego, educação e cultura para a juventude da cidade. "Acredito que a política institucional é uma forma importante de mudar a vida das pessoas, principalmente das mais pobres. Por isso resolvi me candidatar", diz.
Em São Paulo, o motoboy Renato Assad, 28, também tenta se tornar vereador, pelo PSOL. Estudante de geografia na USP, ele trabalhava como professor em uma escola particular até ser demitido por causa da pandemia de covid-19.
Para conseguir se manter, começou a fazer entregas para várias plataformas. "O motoboy de aplicativo não tem nenhuma segurança e planejamento financeiro, pois taxas e promoções variam a depender do dia, da chuva, da demanda. Você nunca sabe quanto vai ganhar. É uma rotina exaustiva, vivemos de calçada em calçada, sem ter nem banheiro para usar ou lugar para comer", diz.
Para ele, a categoria precisa se conscientizar que não é "autônoma", como pregam as empresas do setor. "Todas as fases do trabalho são ditadas pelos aplicativos. As pessoas não tem controle sobre o trabalho, apesar dos aplicativos dizerem que sim", afirma ele, que promete brigar por leis que garantam mais direitos à categoria, como alimentação, licença maternidade e uma taxa mínima de remuneração.
Para Rodrigo Lopes Correia, 31, motoboy há três anos e candidato a vereador pelo PCdoB em Olinda, são os próprios entregadores que devem lutar por melhorias e direitos — e não podem esperar que isso venha das empresas. "Várias categorias têm representação na política: policial, taxista, bancário. Eu vi a necessidade de nossa categoria estar lá também, para brigar por mudanças", diz.
Para o sociólogo Leo Vinicius Liberato, da UFSC, as candidaturas para vereador, principalmente em cidades menores, assumem um caráter não apenas de participação e luta política, mas também de oportunidade de trabalho.
"Em uma situação de desemprego alto, se tornar vereador é uma chance de ascensão econômica, de saída de uma condição de vida ruim. Essas candidaturas de motoristas do Uber e de entregadores devem ser encaradas também como uma tentativa de mobilidade social, de mudança de um emprego ruim para algo melhor", diz.
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