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Vizinho do palácio do governo, haitiano vive em lona e com fratura que não é tratada desde o terremoto

Yves Dorceus lava sua roupa em frente ao Palácio Nacional do Haiti; VEJA MAIS FOTOS - Leandro Prazeres/ Especial para o UOL Notícias
Yves Dorceus lava sua roupa em frente ao Palácio Nacional do Haiti; VEJA MAIS FOTOS Imagem: Leandro Prazeres/ Especial para o UOL Notícias

Leandro Prazeres

Especial para o UOL Notícias<br>Em Porto Príncipe (Haiti)

16/12/2010 13h40

Com calma e naturalidade, o marceneiro haitiano Yves Dorceus, 28, lava uma calça jeans preta sentado em uma pequena lata. A cena seria rotineira não fosse a paisagem que Yves tem diante de seus olhos: as ruínas do Palácio Nacional do Haiti, a residência oficial do presidente da República, destruído pelo terremoto de 12 de janeiro. Quase um ano depois do abalo, os destroços do palácio são a síntese de um país que ainda não começou a ser reconstruído e que hoje tem mais de um milhão de desabrigados vivendo em barracas.

Yves estava em casa na tarde de 12 de janeiro. Marceneiro de profissão, ele aguardava a mulher chegar da rua enquanto seus filhos brincavam dentro de casa. Quando começou a sentir os tremores, ficou em estado de alerta. "Eu peguei os meninos pelo braço e saí correndo para a rua", lembra. Mas nem toda velocidade do mundo foi suficiente para que ele saísse de casa sem seqüelas. Durante a corrida pela vida, Yves tropeçou em um escombro, caiu sobre um pedaço de concreto e fraturou o tórax. Até hoje não recebeu tratamento. Suporta as dores com uma fita elástica vermelha que colocou na altura do peitoral.

 A casa de Yves não ficou totalmente destruída, mas suas estruturas foram afetadas de tal forma que voltar seria arriscado demais. “Eu tenho medo de voltar e a casa cair em cima de mim ou das crianças. Por isso a gente prefere ficar na tenda”, diz o marceneiro que mora com os dois filhos e a mulher em uma tenda de lona azul doada pelo governo chinês.

Além de perder, temporariamente, sua casa, Yves perdeu o posto de provedor da casa. Como não pode mais fazer esforços por conta da lesão no tórax, é sua mulher Kerline, quem sustenta o lar de lona. “Eu fico fazendo artesanato, colares, e saio para vender na rua. Ele só pode sair quando eu voltar, senão ninguém fica cuidando dos meninos”, afirma Yves.

A rotina num campo de desabrigados haitiano é dura. A começar porque não há abastecimento de água, coleta de esgoto ou mesmo distribuição regular de alimentos. Dos 1,3 mil campos estimados em todo o país, apenas 800 têm auxílio de alguma agência internacional ou organização não-governamental.

Para comer, Yves tem de usar o pouco dinheiro que sua mulher consegue ganhar vendendo bijuterias. Dentro de sua tenda, não há cama. Todos dormem sobre um cobertor fino. Estendidas em um pequeno varal, algumas roupas e objetos pessoais que Yves conseguiu tirar da casa depois do terremoto. Sem casa e sem poder trabalhar, Yves também não pode manter seus filhos estudando. No Haiti, a escola pública é paga. Uma escola mediana chega a custar US$ 1 mil dólares por ano, um valor estratosférico se for levado em consideração que a renda média de um haitiano é de US$ 2 por dia.

Reconstrução lenta

Tão logo os prejuízos causados pelo terremoto começaram a ser contabilizados, a comunidade internacional indicou que a prioridade nos meses pós-Haiti seria a reconstrução das casas, entretanto, quase um ano depois do abalo, o que se vê por Porto Príncipe são poucas construções de casas populares. Algumas estão sendo feitas em parceria com organismos internacionais, mas dados da Organização Internacional para Migração (OIM) indicam que ainda haja quase 1 milhão de haitianos vivendo em campos de desabrigados. Praticamente todas as praças públicas, terrenos planos, públicos ou privados, foram transformados em campos com milhares de tendas.

Guirlande Dirogène tem 19 anos e uma filha de três meses de idade. O pai do bebê desapareceu. As duas moram em uma tenda com outras oito pessoas, todas da mesma família, num campo de desabrigados no centro de Porto Príncipe. Sobrevive das doações que, vez por outra, são distribuídas por missionários. “O leite da mamadeira do meu bebê veio de doação. Não fosse isso, minha situação seria muito pior”, lamenta.

Nem mesmo a maternidade foi capaz de deixar Guirlande esperançosa. “Não foi uma boa época para eu por uma criança no mundo. As coisas no Haiti não vão bem. Não tenho como garantir um futuro bom pra minha filha. O país não tem como garantir isso”, diz em tom de desabafo.

Saint Mirland, 36, também teve a casa avariada pelo terremoto e vive em uma tenda com nove pessoas, em uma praça que foi tomada por desabrigados. Para sobreviver, cozinha em fornos a carvão improvisados. O cardápio é semelhante à comida brasileira, com feijão preto, arroz e frango cozido com legumes, mas as condições de higiene são precárias. Não há água corrente e as panelas ficam abertas. Na calçada, o lixo se acumula e animais como cachorros e porcos são companhias freqüentes.

Saint Mirland diz que em sua tenda ninguém foi afetado pelo cólera e diz que ficou chateada com o governo haitiano que pediu para que a população evitasse comprar comida. “Nós já não temos nenhum trabalho e o governo ainda diz para não comerem em tendas como a minha. Se pararem de comer, vou viver o quê?”, pergunta.

Medo

E como se fome, sede e sujeira não fossem sofrimentos suficientes para os desabrigados haitianos, agora eles têm de conviver com um elemento a mais: a violência. Yves conta que por morar em uma região bastante "politizada", tem medo de ter sua barraca incendiada durante os protestos que têm ocorrido durante o período eleitoral. "Na semana passada, queimaram três barracas aqui perto e só não incendiaram mais porque a polícia chegou. A gente tem medo. Eu vou dormir torcendo para a noite terminar logo", diz.

Saint Mirland, também tem medo das "batalhas" que tem se tornado mais freqüentes no país. "A gente teme pelos nossos filhos, né? Tem que ficar o tempo todo preocupada para que eles não estejam na rua quando os conflitos começarem. A vida está muito violenta no Haiti", diz preocupada.

Roseméne Derinvi, 39, é pintora há 16 e hoje vive em uma tenda de madeira e lona ao lado do Museu do Panteão Nacional do Haiti. É lá que estão guardadas todas as relíquias do heróis haitianos, mas ela diz que é do lado de fora do prédio, que estão os verdadeiros heróis de seu país. “Somos um povo muito resistente. Para consegui sobreviver a tudo isso, só sendo um povo heróico como o nosso”, diz orgulhosa.