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Duas formas de ser: uma conversa com Amós Oz e Sari Nusseibeh

Palestinos e policiais israelenses em frente ao complexo do Monte do Templo, em Jerusalém - Rina Castelnuovo - 25.out.2009 / The New York Times
Palestinos e policiais israelenses em frente ao complexo do Monte do Templo, em Jerusalém Imagem: Rina Castelnuovo - 25.out.2009 / The New York Times

SERGE SCHMEMANN, SARI NUSSEIBEH e AMÓS OZ

The New York Times

22/12/2010 07h01

Ao ler as memórias de Sari Nusseibeh ("Once Upon a Country: A Palestinian Life") e Amós Oz ("De amor e trevas"), às vezes é difícil pensar que eles escrevem sobre a mesmíssima terra – e que moram a menos de 40km um do outro.

Sari Nusseibeh é político e acadêmico palestino, e a vida que ele descreve é de luta por uma terra na qual sua famosa família desempenhou um papel fundamental desde o século 7. Amós Oz é escritor israelense, e sua história fala do retorno milagroso dos judeus – incluindo seus pais sionistas do leste europeu – para sua terra-natal após séculos de diáspora.

Suas narrativas parecem às vezes mutuamente excludentes, estabelecidas sobre aspirações e amarguras que não podem ser reconciliadas. Mesmo assim, os dois homens se tornaram bons amigos e chegaram à mesma conclusão: o único futuro viável para sua terra é como dois estados vizinhos.

Eles se encontraram para esta conversa em Berlim, aonde vieram dividir um prêmio.

A conversa foi moderada por Serge Schmemann, editor do "The International Herald Tribune".

  • Mauri­ce Weiss­ /Ost­kreuz­

    O escritor israelense Amós Oz (esq.) e o escritor e filósofo palestino Sari Nusseibeh

SERGE SCHMEMANN: Cavalheiros, vocês dois, em suas memórias, falam sobre o mesmo momento histórico, a fundação do Estado de Israel, mas é como se escrevessem de dois eventos totalmente diferentes.

Sari, em seu livro, você escreve: "O ano da minha concepção, 1948, testemunhou o colapso do sonho palestino..."

E em seu livro, Amos, esse mesmo momento é de redenção, quando seu pai lhe diz: "A partir de agora, do momento em que temos nosso próprio estado, você nunca mais será zombado só porque é judeu e porque os judeus são isso ou aquilo. Não. Nunca mais".

Como essas duas narrativas podem ser reconciliadas? Elas não devem ser reescritas para que haja paz?

AMÓS OZ: Não sei se é necessário reconciliar as narrativas. Acho que as narrativas podem continuar diferentes, até contraditórias. Temos de nos reconciliar uns com os outros. Temos de concordar em relação ao futuro, não ao passado.

SARI NUSSEIBEH: Acho que, em alguns momentos, as narrativas devem, sim, ser reconciliadas. Há alguns eventos que ambos devemos revisitar para garantir que vejamos o que aconteceu. Mas concordo que, no geral, são os indivíduos, são as pessoas que precisam se reconciliar.

Mas, voltando ao pai de Amos, acho que isso não precisa ser "reconciliado". Para o povo judeu, a criação do Estado de Israel foi algo muito especial – muito mais especiais do que seria para nós, palestinos...

OZ: ... Acho que sua história é muito sobre o conflito conosco, o confronto conosco…

NUSSEIBEH: ... Sim, mas tudo que acontece molda identidades, e certamente o que aconteceu em 1948 é, para nós, um grande evento dramático que moldou nossa forma de pensar, nossa identidade, nosso presente, e provavelmente continuará moldando nosso futuro. Não sei bem de que forma. Mas acredito que há uma grande diferença entre nós e eles – se é que posso lhe chamar de "eles".

OZ: Você pode me chamar do que quiser.

NUSSEIBEH: Você tem sua história antiga e a busca pela união. Tem o drama da história recente, especialmente na Europa. Nunca tivemos esse tipo de drama no passado. Sempre fomos um povo "normal". Acho que essa é uma diferença básica entre nós.

OZ: Também estamos buscando um tipo de normalidade, mas nos tornamos a anormalidade um do outro, temo eu.

Sari, vamos falar da sua infância. Você era criança em Jerusalém, morou a uma distância de 20 minutos a pé de onde eu cresci, com poucos anos de diferença. Mas você cresceu do outro lado da barreira quando Jerusalém já estava dividida (depois de 1948). Eu cresci antes da divisão de Jerusalém. Qual foi sua concepção, sua ideia, seu sentimento em relação às pessoas do outro lado da cerca, do muro?

NUSSEIBEH: Bem, nunca conheci nenhum judeu ou israelense, só em 1967. Sendo assim, cresci do meu lado do muro, digamos assim. Cresci pensando que eles eram criaturas do mal. Eles tinham me roubado – não apenas de mim, mas, o mais importante, da minha família também – um pedaço de terra, uma vida. Cresci ouvindo meus pais contando histórias sobre essa vida. Eu imaginava um paraíso antes do muro, uma época em que minha mãe, em particular, foi roubada. Roubada por pessoas que eram, para mim, apenas más, que vieram de lugar nenhum, de Marte.

SCHMEMANN: Qual era sua imagem, Amos? Você descreve no livro quando foi visitar, com seu tio, uma importante família árabe, quando era pequeno. Qual foi a impressão que teve?

OZ: Minha emoção inicial também foi bem "preto e branco". Éramos os donos do país. Era nossa terra ancestral. Sabíamos que as outras pessoas viviam na terra, mas eles deveriam ter nos recebido, e eles não nos recebiam bem, embora estivéssemos voltando ao nosso próprio estado. Fizeram lavagem cerebral em mim, como acontecia com qualquer outro menino sionista.

Essa primeira visita a uma abastada família árabe em Jerusalém foi, até certo ponto, uma abertura de olhos para mim, porque, como criança que era, aquela foi a primeira vez em que tive de confrontar o fato de que essas pessoas se agarravam à terra. Eram as pessoas daquela terra. Não eram idiotas, não eram visitantes, não eram nômades.

Mas a principal atitude em relação aos árabes, em mim e ao redor de mim, ainda era de medo e apreensão. Temíamos que, quando a administração britânica se retirasse, os árabes nos matariam, a todos. Pensávamos, acreditávamos que eles estavam comprometidos a nos matar, que eles nos matariam, pois eram maioria, e nós, minoria. Então havia medo e desconfiança. Medo e desconfiança.

E isso só mudou em mim quando, na adolescência, comecei a ler sobre os palestinos e fiquei obcecado com a narrativa palestina e com a história da Palestina. Não caí no argumento deles, não me tornei "pró-Palestina" – não sou pró-Palestina hoje. Mas aprendi que essa narrativa é válida e que há um conflito entre duas narrativas válidas, duas reivindicações válidas pela mesma terra. E isso contribui para minha sensação de tragédia colossal, e a definição de tragédia colossal é um conflito entre o certo e o certo. Ou às vezes um conflito entre o errado e o errado.

SCHMEMANN: Vocês dois, é claro, vieram a aceitar a presença um do outro; vocês se tornaram amigos. Mesmo assim, aparentemente é mais fácil vocês se encontrarem aqui, em Berlim, do que, digamos, em Jerusalém. Ainda é possível vocês realmente se reunirem em Jerusalém e manter algo próximo de uma amizade normal em sua própria terra?

NUSSEIBEH: Isso tem ficado mais difícil. Paradoxalmente, acho que imediatamente após a guerra de 1967 (quando Israel, vitorioso, reunificou Jerusalém), quando esse muro entre o preto e o branco caiu, havia mais oportunidade para que pessoas de ambos os lados da cerca fizessem contato. Sei, por exemplo, que meu pai, advogado que conhecia pessoas do outro lado, reestabeleceu essas ligações. E eles nos apresentaram seus filhos. Então, imediatamente após a guerra de 1967 havia um tipo de esperança de que a barreira tinha sido rompida e que talvez as coisas pudessem ser unidas novamente. Não sei se isso ainda existe.

OZ: Muitos de nós não vamos à Palestina. Não vou à Palestina, a não ser que seja explicitamente convidado por um palestino. Se fosse à Palestina para fazer turismo, se fosse fazer um passeio, se fosse à Palestina pegar um atalho de Jerusalém a Arad, o que nunca faço, me sentiria culpado, me sentiria um invasor. Sendo assim, só vou à Palestina quando recebo um convite explícito de um palestino, o que acontece de vez em quando. Não muito frequente.

SCHMEMANN: Antes era diferente? Houve uma época em que você ia a Ramallah para um almoço?

OZ: Sim. Imediatamente após 67, como disse Sari. Imediatamente após a Guerra de 67, eu ia a Ramallah para comer num bom restaurante ou encontrar pessoas, ou apenas conversar com elas, por curiosidade. Havia uma sensação de temporário. Havia a sensação de que essa situação da ocupação israelense em toda a Cisjordânia era uma situação provisória; logo os jordanianos voltariam ou haveria alguma entidade palestina, haveria alguma solução. Assim, no meio tempo, por que não aproveitar essa aventura de viajar para o exterior sem precisar de passaporte e visto? Hoje, isso não existe. Não existe.

SCHMEMANN: Você acha o mesmo, Sari?

NUSSEIBEH: Agora que Amos está dizendo isso, lembro que, imediatamente depois de 67, meus amigos e eu saíamos visitando diferentes lugares em Israel. Mas não faço isso hoje. Já não é prazeroso.

SCHMEMANN: Ao ler seus dois livros do início ao fim, dois homens esclarecidos que apoiam a solução dos dois estados, esperaria ficar mais otimista em relação ao futuro. Mas, para ser honesto, terminei a leitura sentindo que a paz pode não ser possível, que ela não vai acontecer. Sari, você escreve que cada progresso momentoso só leva a mais um "beco sem saída". E, num dos seus artigos, Amos, há uma passagem sobre "uma fissura impenetrável entre dois lados em Israel, um lado convencido de que não há sobrevivência com os territórios ocupados, e outro convencido de que não há sobrevivência sem eles". Como ainda se pode acreditar que a paz é possível?

OZ: Bem, tenho boas e más notícias. A boa notícia é que a ampla maioria dos judeus israelenses agora sabe que, no final das contas, haverá uma partição e uma solução de dois estados. Se eles gostam? Não. Se eles vão dançar na rua quando a solução dos dois estados for implementada? Não. Eles não vão dançar na rua. Especialmente porque eles não confiam nos árabes. Eles dizem: deem-nos um estado e eles pedirão mais. Eu acho, e isso Sari deve responder, que a maioria dos palestinos também não ficará feliz com uma solução de dois estados. A notícia ruim é a liderança. Precisamos desesperadamente de lideranças corajosas e visionárias de ambos os lados.

NUSSEIBEH: Acredito que a solução dos dois estados é possível, continua sendo possível. E acho que ambos os lados percebem que essa solução colocará um fim no conflito. Mas o problema é que nada parece levar a essa direção. Pelo contrário, parecemos estar dando voltas em círculos, ou andando para trás.

No lado palestino, não há divisão entre o Hamas e a Autoridade Palestina; há o fato de que agora temos um grande problema em concordar em algo como um estado, ou um acordo de paz com Israel. No entanto, acho que é possível. É uma questão de acontecer algo, seja um líder ou outro acontecimento, na nossa sociedade ou na sua, ou em ambas, que de alguma forma rompa a barreira. É como uma busca por um mágico político.

OZ: Há uma necessidade urgente de progresso emocional. O conflito não é principalmente um conflito imobiliário, e certamente não é um conflito principalmente religioso. É um conflito de emoções, de mágoas, desconfianças, insulto, dor, humilhação e medo – de ambos os lados. É extremamente importante criar mudança. Penso naquele exemplo maravilhoso que o presidente Sadat deu, há 30 e poucos anos, quando foi a Israel, e de uma hora para outra os israelenses se derreteram. Esses israelenses que, antes da visita, diziam que nunca desistiriam da integridade do Sinai, que o Sinai era mais importante que a paz, se derreteram como manteiga e estavam dispostos a abraçar e beijar Sadat, a devolver centímetro por centímetro do Sinai, em troca de paz.

Algo semelhante é necessário de ambos os lados hoje. Algum gesto emocional, algum reconhecimento das injustiças, algum reconhecimento do sofrimento do passado. Acho que um líder israelense deveria tomar a iniciativa, pois os palestinos estão sob ocupação israelense. Acho que um líder palestino deveria ir a Ramallah, ao Conselho Nacional Palestino, e falar ao povo palestino, como o presidente Sadat fez com os israelenses no Knesset, em 1977. Dizer aos palestinos: Sim, nós, israelenses, assumimos alguma responsabilidade pela tragédia do passado. Não toda, mas uma parte. O que já passou não pode ser desfeito, mas faremos o possível para corrigir os erros do passado e curar as feridas.

Talvez também dizer ao povo palestino que a primeira questão com a qual temos que lidar é a dos refugiados, porque ela é realmente urgente. Jerusalém não é urgente, podemos esperar. Ela pode ficar sem resolução por mais uma geração, pode ficar sem solução por três gerações. Mas são centenas de milhares de refugiados em decomposição, em condição desumana em campos de refugiados. Israel não pode receber de volta esses refugiados, ou não seria Israel. Seriam dois estados palestinos, e não haveria Israel. Mas Israel pode fazer algo, junto com o mundo árabe, junto com o mundo todo, para tirar as pessoas dos campos, colocando-as em empregos e casas. Com ou sem paz, enquanto os refugiados estiverem apodrecendo nos campos, Israel jamais terá segurança.

NUSSEIBEH: Concordo. Com ou sem uma solução, o problema dos refugiados é um problema humano e precisa ser resolvido. Não pode ser arquivado dia após dia, dia após dia, na esperança de que algo aconteça. A dimensão humana é muito mais importante neste conflito todo do que a questão territorial.

SCHMEMANN: Devido à profundidade das emoções envolvidas, das mágoas, a solução dos dois estados exigirá grandes sacrifícios. Como Sari disse, será como amputação para Israel e para a Palestina. Em que aspecto cada um terá que ceder?

OZ: A Palestina é o lar dos palestinos, como a Noruega é lar dos noruegueses. E os palestinos estão sendo solicitados a desistir de parte de seu lar. É um sacrifício imenso, que poucos países foram solicitados a fazer. Para nós, a terra de Israel é nossa terra ancestral e o único lar que jamais tivemos como povo. E ambos os lados terão de renunciar a algumas de suas reivindicações históricas, desejos, o que nós consideramos direitos legítimos, para termos um futuro. Eles terão de pagar com a moeda do passado para obter algum futuro.

NUSSEIBEH: É preciso renunciar a alguns laços emocionais, algumas crenças. Isso é muito doloroso. Mas não acho que seja um grande problema, para dizer a verdade. É totalmente sem sentido para palestinos e israelenses estar nesta situação, criando sofrimento um para o outro. É infinito e inútil, sem sentido. Se o mundo chegasse e dissesse que está preparado para ajudar a estabelecer uma nova visão, acho que o laço seria rompido com as crenças e o passado, e as pessoas poderiam chegar ao futuro.

OZ: Mas Sari, deixe-me perguntar: a ideia de que Arad, onde moro e onde você já me visitou, já não é mais Palestina, que nunca será parte da Palestina, é uma percepção dolorosa, um sacrifício?

NUSSEIBEH: Não. Agora estou buscando algo similar a Arad na Palestina, estou tentando construir meu próprio sonho lá. Acho que, se tivermos boas relações entre Israel e Palestina, e eu puder visitar Arad...

OZ: ... a qualquer momento...

NUSSEIBEH: ... Então acho que não há problema.

SCHMEMANN: Muitas vezes se diz, do Oriente Médio, que todos sabem como as coisas vão terminar, mas ninguém sabe como as coisas chegarão lá. É verdade?

OZ: Eu discordo. Acho as coisas devem terminar numa solução. Mas, infelizmente, não sabemos se é isso que vai acontecer. Estamos numa sinuca e não sabemos como sair. Nada vai acontecer sozinho. Mas o que tem acontecido nos últimos dez, 15, 20 anos é que as pessoas passaram a achar que as coisas aconteceriam sozinhas. Os dias passam e isso deixa de ser possível. Se isso desaparece por completo, temos um problema, um grande problema.

SCHMEMANN: Vocês dois encontraram uma linguagem comum, uma visão comum de futuro, uma amizade. Mas, ao mesmo tempo, seus países mudaram e se distanciaram. A nobreza palestina orientada à Europa, da qual você vem, Sari, perdeu seu papel de liderança. Uma elite palestina diferente está no poder. E no seu caso, Amos, o movimento do kibutz ashkenazi, que você descreve em seu livro, com os shorts cáquis, a arma e todo o romance, também desapareceu.

OZ: Não sou nostálgico em relação aos velhos tempos. Era a década de 1940 e 1950. Aquelas eram as respostas para a época; não são as respostas para os dias de hoje. Politicamente falando, o fato permanece que o primeiro-ministro Netanyahu está à esquerda de onde estava Golda Meir na década de 1970. Se Netanyahu propusesse, na época, a mesma política da solução dos dois estados que ele defende hoje, seria descartado do partido de Golda Meir como esquerdista. Quando meus colegas e eu começamos a defender essa solução, em 1967, éramos tão poucos que poderíamos conduzir nossas assembleias nacionais numa cabine telefônica. Isso significa que todo o país, toda a bagunça de Israel se deslocou para a esquerda pragmática. Se é suficiente para a mudança que eu espero ver na sociedade israelense? Certamente não. Mas não vamos ignorar a mudança.

NUSSEIBEH: Acho que o mesmo também é verdade para o lado palestino. Se uma ou duas pessoas começassem a falar em solução dos dois estados em 1967, ou seriam mortos por bomba ou por bala. Agora, essa solução é aceitável. A questão agora não é se as coisas mudaram, mas se a mudança vai continuar na mesma direção, ou se chegará uma época em que olharemos saudosos para o passado, quando uma solução dos dois estados chegou a ser possível, mas não é mais.

NUSSEIBEH: Hoje Amos disse que o que constitui um progresso é uma transformação emocional, um evento que faca as pessoas abrirem os olhos umas para as outras. Insisto que isso ainda é possível, tudo ainda é possível. O que precisamos é de liderança, imaginação, visão.

OZ: É, eu concordo. Tudo ainda é possível.

 

© 2010 The New York Times Syndicate