Topo

Quase 20 anos após guerra na Sérvia, jovens enfrentam preconceito e fazem amizade

Milena Beran, da Sérvia, e Ideal Hoxha, de Kosovo: amizade improvável em região acometida por guerra 20 anos atrás - Comitê Helsinki pelos Direitos Humanos na Sérvia/ Divulgação e ForumZFD/ Divulgação
Milena Beran, da Sérvia, e Ideal Hoxha, de Kosovo: amizade improvável em região acometida por guerra 20 anos atrás Imagem: Comitê Helsinki pelos Direitos Humanos na Sérvia/ Divulgação e ForumZFD/ Divulgação

Carlos Oliveira

Colaboração para o UOL, em São Paulo

09/04/2017 04h01

Vinte anos após uma guerra que deixou ao menos 13 mil mortos e desaparecidos, dois jovens do sudeste europeu enfrentam a pressão de familiares, o julgamento de conhecidos e até ameaças para manter uma amizade improvável. Ideal Hoxha, 26, nasceu em Kosovo e Milena Beran, 23, nasceu na Sérvia - as duas nações foram o centro da chamada guerra de Kosovo, que durou entre 1998 e 1999.

Kosovo é um pequeno território ao sudeste da Sérvia, que o considera sua parte apesar de um movimento separatista que dura décadas. “Ele é habitado predominantemente por albaneses, então há muita diferença cultural com a Sérvia. A ideia dessa população é buscar a independência ou até se juntar com a Albânia”, explica Demetrios Pereira, professor de Relações Internacionais das Faculdades Integradas Rio Branco.

Milena e Ideal se conheceram por meio de amigos em comum e se aproximaram pelos valores parecidos. Eles contam que ainda não se viram pessoalmente, mas ensaiam um encontro.

Milena Beran (à esq.) participa de oficina para jovens artistas sérvios e kosovares em Vrdnik, Sérvia - Comitê Helsinki pelos Direitos Humanos na Sérvia/ Divulgação - Comitê Helsinki pelos Direitos Humanos na Sérvia/ Divulgação
Milena Beran (à esq.) participa de oficina para jovens artistas sérvios e kosovares em Vrdnik, Sérvia
Imagem: Comitê Helsinki pelos Direitos Humanos na Sérvia/ Divulgação

Infância compartilhada

Apesar de terem nascido em lados opostos do conflito, têm histórias parecidas.

“Eu já recebi xingamentos e até ameaças de morte apenas porque estudo albanês, a língua falada em Kosovo. Mas aprender o idioma mudou meus conceitos e me ajudou a conhecer pessoas maravilhosas”, conta ela.

O jovem, que trabalha com projetos que promovem os direitos humanos e a integração entre as nações, relata que a pressão velada de amigos e parentes é constante: “Há sempre alguma brincadeira pelo fato de eu ter contato com sérvios. Mas eu tento usar o humor para educá-los”.

Ambos contam que, durante suas infâncias, passaram meses em porões para se abrigar contra bombardeios. “Vivíamos em três ou quatro famílias no mesmo espaço porque era mais seguro”, diz Ideal. Ela ecoa: “Passei meu aniversário no subsolo e fizemos uma pequena festa. Era um jeito de tentar levar uma vida normal”.

Também compartilham uma frustração ao tentar entender seu passado e presente. “Nossos pais contavam que estávamos em uma ‘guerra’, mas nós, crianças, não entendíamos o que era aquilo. Houve um momento em que as escolas pararam de funcionar, então nós assumimos que havia algo errado”, lembra o jovem.

“A mídia só contava o nosso lado da história e, na escola, o livro de história tinha apenas um quadro pequeno sobre a guerra. Até hoje tento compreender o que aconteceu”, diz ela.

Foram essas dificuldades e a amizade que motivaram os dois a quebrar preconceitos dos outros. Milena participa regularmente de cursos e encontros com pessoas de diferentes nacionalidades e participou de um intercâmbio de três dias com 50 estudantes na capital albanesa, Tirana, em 2015. “Minha família e meus amigos já mudaram de opinião sobre os albaneses. Fico feliz de poder influenciá-los positivamente”, comemora.

Ideal conta como exemplo de seu trabalho uma iniciativa que juntou 20 jovens sérvios e albaneses por três dias para refletir sobre suas identidades: “A proposta foi quebrar o estigma ético as nacionalidades por meio de atividades envolvendo estereótipos, preconceitos, crenças e interpretações, sempre fazendo os participantes entender que eles são muito mais que sérvios ou albaneses”.

Ideal Hoxha (de pé) organiza atividade em iniciativa que juntou 20 jovens sérvios e albaneses por três dias para discutir identidade e preconceito - ForumZFD/ Divulgação - ForumZFD/ Divulgação
Ideal Hoxha (de pé) organiza atividade em iniciativa que juntou 20 jovens sérvios e albaneses por três dias para discutir identidade e preconceito
Imagem: ForumZFD/ Divulgação

Expectativa para o futuro

Apesar de serem tão engajados, os dois são cautelosos quanto às expectativas para o futuro da relação entre os territórios. Entra na conta a vitória do atual primeiro-ministro da Sérvia, Aleksandar Vucic, na eleição presidencial deste domingo (2) - ultranacionalista, ele tem histórico de ser contra a separação de Kosovo. 

“Em um mundo ideal, não teríamos mais fronteiras ou estados, mas, sendo realista, espero que a Sérvia reconheça a independência de Kosovo. Pelo menos, a geração mais nova, que não viveu a guerra, liga menos para as separações criadas por ela”, diz a jovem.

“Para o futuro, acho que a ideia de nacionalismo extremo vai enfraquecer se o sistema de educação melhorar. Mas temos uma classe dominante que tem um pensamento muito atrasado, então temos que esperar a próxima geração para ver grandes mudanças”, opina ele.

Destroços de bazar em Gjakova, Kosovo, em foto tirada em 1999, após a guerra - Ideal Hoxha/ Arquivo pessoal - Ideal Hoxha/ Arquivo pessoal
Destroços de bazar em Gjakova, Kosovo, em foto tirada em 1999, após a guerra
Imagem: Ideal Hoxha/ Arquivo pessoal

Entenda a situação da região

As raízes mais recentes dos conflitos estão na Iugoslávia, estado soviético formado em 1945 que unia Eslovênia, Bósnia e Herzegovina, Croácia, Macedônia, Montenegro e Sérvia.

“Era uma reunião de múltiplas etnias com a Sérvia no centro, dominando a política. Essa colcha de retalhos inclui a religião, e o conflito entre cristãos ortodoxos, católicos e muçulmanos também sempre contribuiu para a escalada de tensão nos Balcãs”, explica o professor Demetrios Pereira.

O bloco foi por muito tempo encabeçado por Josip Broz Tito, ditador polêmico que tinha projeto de unificar a região. A morte de Tito em 1980, o fim da Guerra Fria e a tensão crescente entre os países são alguns dos fatores que levaram ao processo violento de desintegração da Iugoslávia no começo da década de 1990, quando várias nações se separaram, começando pela Eslovênia.

Destroços da mesquita Hadum, em Gjakova, Kosovo, em foto tirada em 1999, após a guerra - Ideal Hoxha/ Arquivo pessoal - Ideal Hoxha/ Arquivo pessoal
Destroços da mesquita Hadum, em Gjakova, Kosovo, em foto tirada em 1999, após a guerra
Imagem: Ideal Hoxha/ Arquivo pessoal

O ideal separatista de Kosovo foi freado pela Sérvia, culminando em uma guerra, entre 1998 e 1999, que deixou ao menos 13,5 mil mortos ou desaparecidos, incluindo cerca de 11 mil albaneses e 2 mil sérvios, segundo a ONG Centro de Direito Humanitário (HLC, na sigla em inglês).

Entidades internacionais relataram centenas de milhares pessoas deslocadas pelo conflito, além de graves violações aos direitos humanos, como execuções sumárias, estupros sistemáticos e perseguição étnica, além de destruição de patrimônio cultural e religioso. O conflito terminou após contínua pressão internacional e uma controversa ação militar da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte) com bombardeios em cidades sérvias que mataram também centenas de civis.

Em 2006 Montenegro se separou da Sérvia e, em 2008, Kosovo declarou independência. A crise política gerada pelo ato foi grande a ponto de fazer o então primeiro-ministro sérvio renunciar. A independência kosovar é reconhecida por pouco mais de 100 nações, entre eles Estados Unidos, Alemanha e França, mas não o Brasil.

A relação entre as duas nações avançou nos últimos anos - em 2013, ambas assinaram um acordo para buscar a entrada na União Europeia. Pereira acredita que o bloco europeu tem como foco justamente as nações da ex-Iugoslávia.

“Isso porque a entrada de países pode reverter a imagem de que ela está perdendo força, ainda mais agora com o processo de Brexit [a saída do Reino Unido do bloco]”. A última nação a entrar na UE foi a Croácia, em 2013.

De acordo com o especialista, uma eventual adesão dos países à UE pode beneficiar o Brasil. “Os dois passariam a adotar regras internacionais de comércio e aumentariam seus mercados, conversando mais com o Brasil”, defende.