Jamil Chade

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Reportagem

Ditadura tentou barrar inspeção estrangeira e mentiu sobre tortura e presos

Documentos do Comitê Internacional Cruz Vermelha obtidos pelo UOL revelam que, durante anos, militares brasileiros dificultaram a entrada da representantes da entidade para avaliar a existência de graves violações de direitos humanos. Nos anos 1970, só o Brasil e a Cuba de Fidel Castro adotaram tais práticas na América Latina.

O regime militar (1964-1985) também mentiu para o comitê sobre a existência de presos políticos e de torturas contra dissidentes nos calabouços do país, mostram os papeis, que fazem parte do arquivo da instituição internacional.

Os documentos evidenciam a tentativa do CICV (Comitê Internacional Cruz Vermelha) de visitar os centros de tortura no Brasil e prisões desde o final dos anos 1960. As entradas foram autorizadas, sob condições restritivas, em apenas duas ocasiões: em 1973 e em 1975. Nessas visitas, a entidade descobriu que a tortura ocorria e que existiam prisões secretas, às quais ela jamais teve acesso.

Informes, centenas de cartas e minutas de reuniões da entidade oferecem uma rara oportunidade para entender o esforço da ditadura para impedir que o mundo soubesse o que ocorria nos calabouços. Enquanto a repressão era endurecida, o governo vendia ao mundo a imagem de uma economia em expansão, de paz social e de ser um aliado da descolonização.

Com sede em Genebra (Suíça), o comitê tem como uma de suas missões visitar prisões pelo mundo, na esperança de convencer governos a tratar as dissidências políticas ou presos de guerra de forma humana e dentro das regras do direito humanitário.

Na Alemanha nazista, em ditaduras africanas ou diante da suspeita de tortura por parte de americanos em prisões iraquianas, por exemplo, o órgão jamais tornou públicos seus informes. O objetivo era levar às autoridades sugestões para que vidas fossem salvas, princípio que também seria adotado no Brasil.

Os documentos consultados pelo UOL revelam que, desde dezembro de 1969, a entidade tentou se aproximar do regime militar por vários canais diplomáticos, recorrendo até ao Vaticano.

O então ministro da Justiça, Alfredo Buzaid, insistiu que essas visitas precisariam ser "absolutamente confidenciais". Isso significaria que os delegados não poderiam carregar o símbolo da entidade nem dizer aos prisioneiros quem eram. A proposta do "anonimato" foi rejeitada.

Uma contraproposta foi feita no começo de 1970, com duas opções:

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  • incluir delegados estrangeiros dentro de uma comitiva da Cruz Vermelha Brasileira, naquele momento comandada por militares aliados ao regime.
  • anunciar que o organismo estava chegando ao Brasil para estudar a entidade nacional e que o governo convidou os estrangeiros a visitar os locais de detenção.

Nenhuma das opções foi aceita e, em junho de 1970, novas reuniões foram realizadas. O então chefe de gabinete da Presidência, João Leitão de Abreu, disse que uma missão seria uma "ingerência inadmissível nos assuntos internos de um Estado soberano".

Em carta ao Comitê Internacional Cruz Vermelha, o regime militar brasileiro negou no auge da repressão a existência de tortura ou de presos políticos no país
Em carta ao Comitê Internacional Cruz Vermelha, o regime militar brasileiro negou no auge da repressão a existência de tortura ou de presos políticos no país Imagem: Reprodução

Governo negava qualquer violação

Em 31 de agosto de 1970, Buzaid escreveu ao CICV para anunciar que:

No Brasil, não há torturas nem violências e, disso, brevemente, o governo brasileiro dará prova cabal à opinião pública interna e externa.

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A declaração contradizia informações que chegavam a Genebra. A entidade era frequentemente visitada em sigilo por dissidentes:

  • Apolino de Carvalho ou Ladislau Dowbor estiveram no local em 28 de outubro de 1970, às 14h30, para pedir a visita a prisões. Para eles, o CICV era a "única organização capaz de intervir".
  • Miguel Arraes, ex-governador de Pernambuco, e o ex-deputado Márcio Moreira Alves também estiveram na Suíça. O ex-parlamentar indicou que o país teria 5.000 prisioneiros políticos.

O arquivo da comissão revela como governos estrangeiros, a OAB, a Anistia Internacional e outras entidades apontavam para graves violações de direitos humanos cometidos pelo regime militar, como "torturas físicas, morais e psicológicas".

Um dos alertas dizia que a tortura no Brasil seguia um "método científico". Ou seja: baseado "na aplicação dosada de um sofrimento atroz dentro do limite exato da resistência humana, quando isto se faz necessário".

Trata-se de uma luta para destruir —não a resistência física— mas a resistência moral do preso.

Em um dos relatos recebidos pelo Comitê Internacional Cruz Vermelha, a tortura no Brasil era detalhada: ?método científico?.
Em um dos relatos recebidos pelo Comitê Internacional Cruz Vermelha, a tortura no Brasil era detalhada: ?método científico?. Imagem: Reprodução
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Endurecimento do regime

Naquele momento, a conclusão da entidade foi a de que a ditadura "parecia ter se endurecido dramaticamente" entre 1969 e 1970.

Os militares são onipotentes e onipresentes. A oposição política não consegue se fazer ouvir desde dezembro de 1968, quando o Parlamento foi fechado e o habeas corpus, abolido.

Após o sequestro do embaixador dos EUA, foi desencadeada uma verdadeira caça. O governo estava determinado a pôr um fim definitivo à 'subversão' e a usar todos os meios à sua disposição para isso.

Apelo ao papa e alerta sobre passividade dos brasileiros

Em 31 de julho de 1970, o CICV escreveu ao secretário de Estado da Santa Sé, cardeal Jean Villot, pedindo que o papa considerasse o caso do Brasil.

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Em maio de 1972, num informe, o representante do CICV, Serge Nessi, alertava que, à exceção do caso de Cuba, "o principal problema que temos na América Latina é o do Brasil". Os delegados da entidade indicavam que tortura parecia "ser confiada exclusivamente ao Codi [Centro de Operações de Defesa Interna]".

Novas formas de repressão apareceram em alguns locais de detenção (execuções simuladas, privação de comida, bebida e sono).

O espaço para a oposição havia sido suprimido. "Aparentemente, a política não existe no Brasil. Desde dezembro de 1968, o Ato Institucional nº 5 deu ao regime militar poder praticamente ilimitado", alertou.

O povo brasileiro não reagiu como se imaginava; permaneceu passivo, como sempre fez.

O número exato de presos políticos era também uma preocupação.

O apagão imposto pela censura à imprensa é quase total e, portanto, é muito difícil aprender algo concreto sobre esse assunto no próprio país.

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1973: visitas iniciais

Naquele ano, 12 locais de visitação foram escolhidos pelo governo, com a participação da Cruz Vermelha Nacional

A entidade internacional cumpriu sua promessa e não fez divulgação sobre as visitas, enviando apenas um relatório padrão e confidencial às autoridades brasileiras. Nele não há referência à existência de presos políticos ou à tortura.

1975: as primeiras evidências

Uma missão de maior fôlego visitaria locais mais delicados em 1975, sob a égide da Cruz Vermelha Brasileira, conforme exigência do regime.

Pela primeira vez, os delegados estrangeiros ouviram relatos concretos de tortura por parte dos detentos, assim como ameaças feitas pelos diretores dos presídios. Mas foi a descoberta da possível existência de prisões secretas que chamou a atenção da entidade.

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Em São Paulo, um informe de outubro de 1975 indicou que a visita à Casa de Detenção foi marcada por "dificuldades" com o diretor.

Era um homem bastante impressionante. Ele disse ao delegado do CICV: 'Se eu soubesse que o senhor era suíço, e ainda por cima de Genebra, não o teria deixado entrar'.

Num relato de 16 de julho de 1975, um dos delegados do CICV que visitou a Penitenciária Feminina da Capital (SP) indicou que "detentas apontaram maus-tratos físicos e psicológicos em locais de detenção anteriores, por exemplo, nos quartéis de Polícia Militar e em locais onde eram realizados interrogatórios".

Como a entidade não queria ser identificada como um ator investigando a repressão, a estratégia foi produzir um informe paralelo no qual era explicitada a existência de presos políticos e suas denúncias.

 A lista de prisioneiros políticos obtida pelo Comitê Internacional Cruz Vermelha
A lista de prisioneiros políticos obtida pelo Comitê Internacional Cruz Vermelha Imagem: Reprodução

O delegado do CICV que esteve na penitenciária não conseguiu os nomes das prisioneiras, mas indicou que uma esteve envolvida no sequestro de um avião, e outra era "uma jovem que recebeu uma sentença de prisão perpétua por sequestrar nosso embaixador Bucher".

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Na versão enviada às autoridades brasileiras em confidencialidade, em 5 de março de 1976, o CICV também não incluiu os trechos onde se denunciava a tortura.

Na Penitenciária Professor Barreto Campelo, em Itamaracá, a entidade alertou que não pode ter entrevistas privadas com prisioneiros políticos e que existia a possibilidade de que os relatos fossem "ainda mais graves".

Em Recife, na penitenciária Bom Pastor, o CICV soube que as mulheres "subversivas" haviam sido detidas no passado "em condições muito precárias em uma ala, em um ou dois quartos sem o menor conforto, com banheiros que não funcionavam".

Em Fortaleza, os presos pela "lei de segurança nacional" do Instituto Penal Paolo Sarasate informaram em 4 de dezembro sobre "os diversos maus-tratos" que teriam sofrido durante o período de interrogatório em outros lugares.

Prisões secretas

No Nordeste, a agência indicou que visitou entre 80 e 90 pessoas que "poderiam reclamar serem vítimas da situação política". E identificou que vários deles percorreram diferentes capitais ao longo dos interrogatórios.

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Numa prisão em Belém, o CICV destacou como "um engenheiro do Exército, que não quis ser mencionado nos relatórios dos delegados, disse que havia sido encarregado de construir uma pequena prisão em um local militar e que achava que essa prisão não seria apenas para soldados que tivessem se comportado mal". "Em uma missão futura, se os delegados estivessem falando sobre centros de detenção militar, as unidades a serem visadas seriam as 'radiopatrulhas' e o 'Corpo de Bombeiros'", disse o informe de 1975.

No Rio de Janeiro, a visita ocorreu sem que o CICV estivesse de posse de informações sobre a existência de presos políticos e confirmou a dificuldade em se encontrá-los. "Foi por acaso que encontramos os cinco clientes no Instituto Talavera Bruce, que nos informaram que havia outros clientes na Penitenciária Esmeraldino Bandeira, visitada no dia anterior, sem encontrar nenhum cliente, e principalmente em Ilha Grande", destacou. O termo "cliente" era usado pelo CICV para designar os presos políticos.

No informe sobre Ilha Grande, também no estado do Rio, o delegado apenas descreveu o local como "uma vergonha".

As dificuldades em identificar os locais onde estavam os presos políticos também foram registradas no Rio Grande do Sul, no Presidio Central. O CICV "observou que alguns dos presos políticos não se arriscariam a falar com o delegado".

O CICV ainda descobriria um argentino que ficou seis meses preso e incomunicável em uma delegacia no Brasil. E outro que disse que as condições de detenção eram "terríveis" no DOI no Rio.

Figueiredo disse que não existiam presos políticos

A partir de 1978, a entidade voltaria a pressionar por novas visitas, insistindo que elas ocorressem sem a presença da organização brasileira.

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Em 7 de junho de 1979, o então presidente do CICV, Alexander Hay, se reuniu com o presidente João Figueiredo, em Brasília, para explicar a eventual missão ao Brasil. Em uma carta, reafirmou que o objetivo era "observar as condições materiais dos detidos, sem pôr em questão os motivos da sua detenção" e que o relatório seria entregue "unicamente às autoridades responsáveis".

Figueiredo, naquela reunião, "salientou que não havia presos políticos no Brasil, que ninguém estava preso por delitos de opinião, mas que eram apenas pessoas presas por atos de violência cometidos em nome de uma ideologia política", completou.

Semanas depois, a lei de Anistia seria proposta pelo governo de Figueiredo.

Reportagem

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