Brasileiro inspira grupo que leva realidade palestina aos palcos
De fora, a sede do Teatro Ashtar parece uma casa tradicional entre os sobrados de Ramallah, capital da Cisjordânia. Por dentro, porém, suas paredes forradas de lambe-lambes lembram os epicentros culturais do Brasil na década de 1960.
Fundado em 1991 por um casal de atores palestinos, o teatro se ergueu sobre as teorias do teatrólogo brasileiro Augusto Boal (1931-2009) e, há anos, utiliza o método do Teatro do Oprimido, metodologia que une teatro e ação social, para falar da realidade de jovens que vivem nos territórios palestinos ocupados.
"Aprendi sobre Boal e Paulo Freire pela leitura, quando estudava serviço social e sociologia na Universidade de Belém", diz a cofundadora Iman Aoun ao UOL em uma conversa por Skype. Ela havia acabado de voltar de Trondheim, cidade estudantil norueguesa, onde apresentou uma de suas peças na companhia de seu colega Edward Muallem e de dois estudantes do Ashtar. "Mas só começamos a aplicar as teorias de Boal em 1997, com a ajuda de um parceiro suíço que conhecia a metodologia na prática".
Na época, lembra Aoun, quatro anos haviam se passado desde os Acordos de Paz de Oslo, quando autoridades israelenses e palestinas se comprometeram com uma série de medidas para acabar com os conflitos na região.
Com o acordo, o território palestino foi divido nas chamadas áreas A, B e C e "checkpoints" foram instalados ao longo das estradas, dificultando ou impedindo a passagem de palestinos de um lado para outro. "Começamos a pensar em formas alternativas e fáceis de chegar ao nosso público, porque ele muitas vezes não podia ir até nós".
O teatro se mudou de Jerusalém para Ramallah, cidade mais acessível à população palestina da Cisjordânia, e a dupla criou uma série de performances que foram interpretadas por todo o território até 2002. Naquele ano, Edward foi ao Brasil participar de um workshop dado pelo próprio Boal no Centro do Teatro do Oprimido (CTO), no Rio. No ano seguinte, a então coordenadora do CTO, Barbara Santos, foi à Cisjordânia treinar os integrantes do Ashtar. "Foi quando também começamos a traduzir os livros de Boal para o árabe e espalhar suas ideias pela região", diz Iman.
Desde então, parte das peças criadas pelo Ashtar segue o método de Boal. O objetivo é engajar a audiência com a narrativa desenrolada no palco, de cunho social e político. Em muitos casos, os estudantes escrevem as peças a partir das experiências de suas próprias vidas.
Os monólogos de Gaza
Foi este o mote dos chamados Monólogos de Gaza, realizados entre 2010 e 2014. Na ocasião, impedida de entrar na faixa de território palestino, Iman dirigiu as peças via vídeo-conferência.
"Essa não é a história completa", diz ela sobre a experiência. "Eu fui a iniciadora e tinha um parceiro, Ali [Abu Yaseen], que vive em Gaza e dirigia as peças 'in loco'. E tinha outro parceiro, o Mohamed [Eid], que dirigia os mesmos monólogos na Cisjordânia". Acompanhando virtualmente os trabalhos, Iman também editou os textos escritos pelos jovens de Gaza até chegarem ao produto final.
Os monólogos contam as histórias vividas pelos estudantes após a ofensiva a Gaza em 2008 e 2009 pelas tropas israelenses e foram interpretados, ao mesmo tempo, por grupos teatrais ao redor de todo o mundo -- chegando até a ONU.
No geral, afirma Iman, é mais fácil levar as peças para o exterior do que fazê-las circular no interior do próprio território palestino. "Com o território dilacerado, os alunos muitas vezes ficam presos a uma determinada região", diz. "É difícil conseguir a permissão com os israelenses e nós também não gostamos de pedir, pois achamos que eles têm o direito de circular livremente pelo território."
Formato parecido ao de Gaza está sendo aplicado no Vale do Jordão, região leste da Cisjordânia, controlada pelo exército israelense. Apesar de estar a poucos quilômetros de Ramallah, a juventude das vilas do vale, descreve Iman, está exposta a uma realidade bastante diferente daquela na cidade. "É um estilo de vida mais rústico. Eles estão mais conectados à agricultura e à terra", afirma.
O Asthar prepara a terceira peça com atores do vale. O plano agora é atrair jovens que largaram a escola para trabalhar nos assentamentos israelenses. "A peça será sobre isso e será feita com os jovens que passaram por essa experiência. Queremos dar a eles uma alternativa, outra possibilidade de trabalho dentro da comunidade. Queremos que eles encontrem outras formas de sobreviver".
A despedida de Boal
O Teatro Ashtar nunca se apresentou no Brasil, nem Iman conhece o país. Mas ela conheceu Boal pessoalmente em uma ocasião.
Foi em Calcutá, na Índia, quando o Asthar foi convidado a participar de um festival. "Foi como uma cristã conhecendo o papa", brinca. "Para nós, ele era o papa dos oprimidos. Nós não sabíamos o que dizer na hora, não me lembro bem o que falei. Ele estava na plateia quando nos apresentamos e não sabíamos o que ele ia achar, como ia ver nosso trabalho. Lembro de nos apresentarmos e de ele ser muito carismático e forte. Ele sabia sobre nós, por conta de Edward e da Barbara. Mas foi o encontro, sabe? A beleza do encontro."
Em 2009, Boal foi convidado a participar do festival internacional organizado a cada dois anos pelos veteranos do Ashtar - em 2018, o festival acontece entre os dias 20 e 30 de julho, em Ramallah.
Por conflitos de agenda, enviou um vídeo aos estudantes justificando sua ausência e desejando um bom festival. Morreu dois dias depois num hospital do Rio de Janeiro, de insuficiência respiratória -- a mensagem póstuma foi transmitida em meio a comoção na abertura do festival.
"Eu não acho que o teatro do oprimido é sobre ativismo apenas. Acho que tem um componente artístico bastante importante, uma arte engajada. É sobre teatro e aí a partir do teatro e a partir dessa estética em particular falamos de coisas que são importantes para a nossa sociedade e para as decisões que tomamos no mundo", diz Iman sobre o legado de Boal. "Eu espero que a juventude treinada no Ashtar siga em frente com os estudos e volte para assumir o teatro. Para continuar nossos sonhos e nossa narrativa."
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