Com a crise, venezuelanos ocupam todo o tempo na busca por comida
No último dia 31 de dezembro, a notícia da chegada das caixas de alimentos do Clap (Comitês Locais de Abastecimento e Produção) agitou a véspera de Ano Novo em Ruperto Lugo. Foi a última vez que chegou a essa comunidade o pacote subsidiado pelo governo de Nicolás Maduro.
Às 5h, uma voz masculina anunciou a chegada dos alimentos. Crianças e adultos, alguns de pijama, se aglomeraram no andar térreo de um edifício. Até aquele momento, o Natal não havia tido o brilho característico: a fome e a falta de pessoas queridas que emigraram substituíram a alegria por lamentos.
Ruperto Lugo, área situada em Catia, no oeste de Caracas, é uma das 15 favelas de Sucre, que ocupa 59 dos 433 km2 do município de Libertador, o maior da área metropolitana.
Seus habitantes trabalham para sobreviver. Por isso as caixas do Clap são tão importantes e fazem as vezes de salva-vidas para famílias de quatro, cinco e até seis pessoas, que comem, com sorte, duas vezes por dia.
O anúncio da distribuição das caixas se transformou em um acontecimento nas comunidades, e, como no caso de Ruperto Lugo, abala a rotina dos moradores. O prazo para pagá-la com dinheiro em espécie é entre quatro e seis horas. A falta de cédulas e as filas quilométricas para consegui-las nos bancos impedem que se cumpra a tarefa rapidamente. Por isso, muitos pedem autorização no trabalho para poder depositar o dinheiro a tempo. Mesmo assim, as caixas quase sempre são entregues um ou dois dias depois do previsto, o que aumenta a ansiedade e a incerteza.
Alexandra Flores, uma técnica em informática e moradora desta comunidade, sente falta do tempo em que se ocupavam de outras coisas e falavam sobre viagens, felicidade, jogos de beisebol, os presentes de dezembro e as comilanças com os vizinhos.
Hoje vivo lembrando tudo o que eu podia comer e que hoje falta na minha geladeira
Alexandra Flores
A saudade não é estranha na Venezuela. Quando se presta atenção às conversas de seus moradores, não importa de que camada social, região ou contexto, muitas giram em torno de comida.
No ônibus, na sala de espera de um hospital, na porta da escola esperando a saída dos filhos, na fila para comprar nos mercados e até no preâmbulo de reuniões de empresas, as pessoas comentam os preços que viram dos produtos de primeira necessidade e o que devem fazer para conseguir os dois ou três pratos do dia.
Se você carrega sacolas de supermercado e nelas se pode ver algum produto difícil de conseguir, não estranhe que algum desconhecido o pare para perguntar onde o encontrou. Quase todos parecem observar o que os transeuntes levam nos pacotes, e as pessoas não têm problema em iniciar uma conversa sobre o assunto com estranhos.
Venezuelanos que emigraram e estiveram visitando Caracas no Natal notaram essa mudança.
As pessoas não falam de outra coisa que não seja comida
Ángel Briceño, engenheiro venezuelano que mora no Chile
"Esse é o resultado da política econômica socialista que nos impuseram, que fracassou na União Soviética e em Cuba e que leva o ser humano ao mais básico de sua razão de ser: conseguir comida, remédios e serviços básicos. Nós brigamos pelo pouco que há", afirma a economista Alicia Sepúlveda.
A especialista diz que esse estado de angústia e a incerteza de não saber se vai conseguir o que comer levaram os venezuelanos a procurar alimentos durante o tempo que poderiam dedicar a criar, produzir e inovar.
Mulheres atrás do pão
As conversas sobre nutrição da família tendem a ser entre mulheres. Há depoimentos de pessoas que dizem que suas mães não têm outro assunto de conversa, e que quando lhes telefonam o tema da alimentação ocupa boa parte da comunicação familiar.
As venezuelanas vivem diariamente como aquela imagem da vida selvagem, em que as leoas saem para procurar comida para seus filhotes.
Na sexta-feira, de manhã bem cedo, foi revelador o cumprimento entre duas vizinhas no elevador de um condomínio na paróquia de Candelaria, em Caracas:
"Como vai?"
"Bem, pensando no que vamos comer hoje. Vou sair para ver o que consigo."
Assim começam as manhãs. As filas de clientes diante dos supermercados, mercados populares, armazéns e centros de abastecimento do governo, à procura de alimentos subsidiados da cesta básica, são formadas principalmente por mulheres.
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De diversas idades, mães e avós, das camadas mais pobres, amanhecem de pé em aglomerações de pessoas que se formam nos arredores das lojas para tentar comprar um ou dois produtos.
Só podem comprar esses alimentos por preço baixo um dia por semana, de acordo com o final do número da carteira de identidade. Os preços no mercado paralelo são tão altos que elas não têm alternativa.
Nelly Montañez é uma delas. Sua terminação no documento de identidade é 1, e ela pode comprar nos locais de seu bairro na primeira e terceira semanas do mês, mas às vezes não chega antes que os produtos acabem; então deve se conformar em comprar mandioca ou banana.
Para esta aposentada da Seguridade Social, o conteúdo da caixa do Clap dura duas semanas, se o complementar com vegetais e verduras.
2013 foi seu pior ano: a diabetes a fez perder 35 quilos em quatro meses. Desde então não pôde trabalhar nem recuperar massa muscular. Ela belisca a própria pele e conta que em sua casa compram proteínas uma vez por mês.
Fazemos uma comida só e a dividimos nas três porções do dia, para mim e para minha filha
Nelly Montañez
Ela vive com uma pensão de 248 mil bolívares (cerca de R$ 24), que pode gastar em um quilo de farinha de milho, um de macarrão e um litro de óleo, se conseguir adquiri-los pelo preço tabelado. "Se eu não faço fila na frente de um supermercado, não posso comer, porque essa aposentadoria não dá para nada. Mas a verdade é que estou esgotada."
Controles não funcionam
Nas gôndolas há muito pouco para vender, porque não há produção. "O aparelho produtivo foi destruído", diz Alicia Sepúlveda. "Há controle de preços e de câmbio da moeda, expropriaram terras e intervieram nas fábricas, mas também não as fizeram produzir. Não há mais incentivos para os empresários, aniquilaram sua capacidade de gerar riqueza e eles acabaram sendo concessionários do governo."
A economista acrescenta que as soluções apresentadas pelo Executivo venezuelano só representam mais controle social "sobre a redistribuição de algo que não geram".
Neste mês se completaram 15 anos de férreo controle dos preços. Em 6 de fevereiro de 2003 foi publicada a primeira lista dos 45 bens e 7 serviços que foram declarados de primeira necessidade e com preços máximos de venda ao público. Desde então foram anulados e se criaram leis e instituições que atuariam com o fim de proteger os consumidores.
Inclusive, em janeiro de 2014, mediante um decreto-lei, foi estabelecida uma margem de lucro máxima de 30% para todo comerciante de produtos na Venezuela.
"O controle de preços causou desestímulo da produção e com a falta de alimentos e os preços artificialmente baixos o que aumentou foi a corrupção", afirma Sepúlveda, que também coordena o Observatório Econômico e Legislativo, criado diante da opacidade do governo com os indicadores econômicos.
Também não se resolveu o problema da falta de acesso da população aos víveres.
A escassez de produtos e o excesso de demanda geraram uma inflação anual nos produtos, com preços controlados ou não, acima de 10% entre 2003 e 2012, segundo dados do Banco Central da Venezuela.
Em janeiro deste ano, a inflação alcançou 84,2%, mas a acumulada do último ano está em 4.068,2%, segundo a medição feita pela Assembleia Nacional, à falta de indicadores oficiais.
O Observatório de Gasto Público de Cedice, que acompanha 61 bens e serviços, apontou que em janeiro a inflação só dos alimentos chegou a 96,01%, mas houve produtos de consumo de massa nos quais houve uma alta muito maior, como é o caso das asinhas de frango (764,28%), sardinhas (439,32%) e bananas (305,41%).
Por esse motivo, Arelis de Arguinzone não para de falar no assunto. Ela é faxineira em dois condomínios na zona leste da capital. Chega ao trabalho antes de o sol nascer. Assim que cruza a porta e responde ao cumprimento, comenta enquanto sorve com vontade um café preto: "Nesta semana comemos quase todos os dias inhame --refogado, frito, em purê. Já odeio inhame. Mas é que não conseguimos comprar nada, e isso é o que temos plantado no quintal de casa."
Arelis mora em Vargas, o Estado costeiro mais próximo de Caracas. Viaja à capital três vezes por semana, para limpar residências. Demora mais de duas horas para chegar, às vezes mais. O que paga em passagens é mais de um quinto do que ganha. Junta essa quantia com a aposentadoria que recebe do Estado e não é o suficiente para viver.
Ela não consegue trabalho em Vargas, e não tem alternativa além de continuar viajando. "Se não, morremos à míngua. O pouco que se encontra está caríssimo, e a caixa não chega nunca."
A caixa do Clap os une
A cesta de alimentos distribuída pelos Clap é o bem mais valorizado nas zonas populares na Venezuela. Contém produtos escassos nos supermercados e que só são obtidos no mercado paralelo por preços superiores ao triplo do marcado nas embalagens.
O programa foi criado em abril de 2015, mediante decreto presidencial, para implementar um novo sistema de distribuição de víveres, dirigido pelas comunidades e no qual não existe a cadeia de comercialização. A indústria vende diretamente ao governo o que este não importa de outros países. "O objetivo é evitar a especulação, a usura e a estocagem de produtos essenciais", segundo comunicado oficial do governo.
A última caixa que chegou ao subúrbio de Ruperto Lugo, em Caracas, por exemplo, continha 4 quilos de cereais, 2 de farinha de milho ou trigo, macarrão e arroz, 1 de leite e 1 de açúcar, 2 litros de óleo, 4 latas de atum, molho de tomate e maionese.
Cada família deve pagar, desde janeiro, 25 mil bolívares (cerca de R$ 2,50) por essas combinações, mas isso pode custar no mercado regular ou mediante vendedores ilícitos, o que representam 2,5 salários mínimos integrais de 797.510 bolívares (cerca de R$ 80).
A população beneficiada é de 10 milhões de famílias registradas, segundo dados fornecidos pelo Centro Nacional dos Clap, que recebem uma lista determinada de produtos, nos quais não se podem escolher os itens e pelos quais se deve pagar em espécie. Apesar das críticas que o modelo recebeu por parte dos próprios beneficiários, a maioria da população que tem acesso a compra porque é a única maneira de obter alimentos essenciais. É tal a dependência do fornecimento desse subsídio, que o assunto também ocupa a rotina e as conversas dos habitantes.
Esse benefício deveria ser distribuído a cada 21 dias, mas as 225 famílias que o recebem em Ruperto Lugo chegaram a esperar três meses.
O grupo local que administra a logística do Clap neste setor é formado por seguidores fiéis do chavismo. O salão onde se reúnem semanalmente já foi um lugar para festas. Ao entrar, vê-se um retrato de dois metros de altura do ex-presidente Hugo Chávez, e ao lado um de Simón Bolívar, de iguais dimensões.
Yenni Navarro é uma das que recebem os alimentos com preço subsidiado no bairro. É professora e coreógrafa de dança tradicional. Usa sempre alguma roupa vermelha. Em seu pescoço, pendura uma placa de metal que tem gravado um desenho dos olhos do ex-presidente Chávez.
"As caixas do Clap são um esforço do governo para contrabalançar a especulação dos comerciantes e a guerra econômica que os empresários declararam ao presidente", afirma. Ela destaca a qualidade e o preço módico dos produtos.
Alexandra Flores, sua vizinha, pelo contrário, acredita que os produtos que chegam às zonas populares do país são "as sobras" dos países com que o governo tem convênio: México, Panamá, Brasil, Bolívia e República Dominicana.
Na primeira vez que o benefício chegou a Ruperto Lugo, muitos governistas criticaram os opositores que o compraram, mas Alexandra garante que a fome não distingue partidos políticos nem ideologias:
Não importa se você é chavista ou opositor; todos temos as mesmas necessidades. Trabalhamos como burros, mas o dinheiro não chega nem para comer
Alexandra Flores
Conta em tom de brincadeira que um de seus clientes, em vez de presenteá-la com uma garrafa de vinho no Natal, lhe deu batatas, tomates e cebolas.
No final de 2017 e início deste ano, parecia um paiol de pólvora prestes a explodir nas regiões. O Observatório Venezuelano de Conflitos Sociais registrou nos primeiros 11 dias de janeiro 386 protestos, 5 mortos, 107 saques ou tentativas de saque a fazendas, lojas e caminhões que transportavam alimentos.
A maioria das manifestações de rua foi por comida, boa parte delas originadas em dezembro, por causa dos presuntos que o governo ofereceu para as festas natalinas, boa parte dos quais não chegou ao país.
Na tentativa de facilitar o acesso da população aos alimentos, em 5 de janeiro a Superintendência Nacional para Defesa dos Direitos Socioeconômicos (Sundde) ordenou que 26 redes de supermercados baixassem os preços aos valores praticados em 15 de dezembro.
Uma multidão inundou as lojas, e as gôndolas ficaram vazias. Nessas condições, os comerciantes se recusaram a repor a mercadoria. Desde então a escassez piorou.
Desde 8 de janeiro os produtores foram limitados a movimentar carne, leite e queijo fresco fora dos Estados de Guárico, Apure, Cojedes e Barinas, sob a condição de que vendam aos governos locais entre 10% e 30% do que produzem por preços mais baixos. Essa medida, que foi questionada pela Federação de Pecuaristas, logo teve um impacto em mais escassez e altos preços desses produtos.
Substituir a queixa por projetos
Na medida em que a crise se agravou e foram diminuindo as opções para escolher alimentos, os venezuelanos substituíram as emoções de alegria por medo, tristeza, raiva e desespero, segundo a psicóloga social Yorelis Acosta.
"O aturdimento, o estado de confusão, o luto e a reclamação social é o que se expressa. O que se escuta é o intercâmbio de tragédias particulares, ficaram para trás os sonhos e projetos."
A especialista e pesquisadora do Centro de Estudos do Desenvolvimento da UCV conta que a situação não só ocupa as conversas, como também os sonhos, porque, diz ela, alguns pacientes sonharam que faziam fila diante do supermercado para comprar comida.
Ela aponta que essa "patologia social é generalizada", também afeta os que têm maior renda, e se aguça no interior do país, onde a distribuição de alimentos é mais precária.
"Isso é um sinal de alarme. Esse comportamento de reclamação social afeta nossa percepção do futuro. Devemos estar conscientes de que esse discurso, em que predomina a narrativa de que não há saídas, fomenta o pessimismo, o desespero e afeta nossa capacidade de sonhar acordados", concluiu.
*Colaborou María Jesús Vallejo
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