Nova Lei de Migração emperra concessão de vistos e deixa estrangeiros no país irregulares
Um papel com a mensagem de que a Polícia Federal não está abrindo processos de visto por conta da nova lei de migração, seu nome, a data e um carimbo. Essa é toda a garantia que a uruguaia Luísa tem de que poderá circular livremente no Brasil a partir desta semana.
Há quatro anos pesquisando no país, a doutoranda não consegue renovar seu visto de estudo porque ainda não existem regras claras de quais são os documentos necessários para ter a sua permanência mantida. A diferença, em relação aos últimos anos em que fez o mesmo pedido, é a Lei de Migração 13.445, que entrou em vigor no final de novembro e substituiu a legislação existente até então.
O problema é que, efetiva há pouco mais de três meses, a lei não tem regulamentação para determinar como muitas das autorizações devem ser feitas.
"É surreal", conta a química que, desde janeiro, já foi diversas vezes à superintendência regional da Polícia Federal em São Paulo, sem solução para seu caso.
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A nova lei é considerada um avanço em relação ao estatuto anterior, criado em 1980, ainda durante a ditadura militar, pois não considera mais o imigrante uma ameaça à segurança nacional e, segundo especialistas, pauta-se pelos direitos humanos. Contudo, neste momento, ainda não há a lista de documentos e processos para a regularização de boa parte dos casos.
A situação é dramática para quem tenta trazer a família ao país ou já vive no Brasil e precisa atualizar sua autorização. Com pouca informação e normas ainda a serem publicadas, os estrangeiros vão da Polícia Federal ao Ministério do Trabalho, ao consulado de seus países, tentam falar em números de Brasília, enviam e-mails e sentem-se perdidos na burocracia.
"Nós reconhecemos que não é um problema da Polícia Federal, que está de mãos atadas. Os maiores culpados são os ministérios [da Justiça, do Trabalho e de Relações Exteriores], que deveriam fazer as normativas", afirma João Chaves, coordenador de migrações da Defensoria Pública da União, em São Paulo.
Os ministérios de Relações Exteriores, da Justiça e do Trabalho afirmam que o governo está fazendo esforços para normalizar a situação, mas não informam data para que o problema seja resolvido. Desde novembro, o Ministério do Trabalho publicou 23 resoluções sobre o assunto, em muitas delas há a previsão de que parte das normas seja regulada por novo ato normativo.
No meio dessas mudanças, os estrangeiros ficam perdidos, sem clareza dos documentos que precisam reunir e com medo dos problemas de estar irregular, entre eles, o pagamento de multa e a dificuldade para resolver questões administrativas, como abrir uma conta no banco ou realizar um casamento.
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A DPU de São Paulo atende anualmente cerca de 1.700 estrangeiros que precisam de visto, residência ou permissão de refúgio. O defensor conta que, desde novembro, aumentou o fluxo de pessoas que procuram o órgão por não conseguirem respostas sobre vistos e pedidos de residência.
Após ter filas na sua porta, sobretudo de senegaleses, no início de fevereiro, a DPU fez uma audiência pública com a Polícia Federal e o Ministério de Relações Exteriores para comentar os problemas e pedir paciência. O defensor lamenta, no entanto, que não havia representantes do Ministério do Trabalho e da Justiça para dar mais explicações.
Quando estiver completamente implementada, a nova lei deve facilitar a regularização e pedidos de residência e trabalho. Enquanto não é, há um limbo administrativo.
"De abril a novembro [quando a lei já tinha passado no Congresso, mas ainda não estava em vigor], o esperado era que todas as normas e regras fossem preparadas para poder funcionar, mas isso não aconteceu", diz Chaves.
Sem prorrogação
A jornalista Larissa tenta visto para continuar no Brasil, onde trabalha há cinco anos. Sem saber o que fazer, a Polícia Federal do Rio pediu para que ela reúna documentos conforme a lei antiga como se os procedimentos não tivessem mudado.
Esse também tem sido o procedimento adotado para pedidos de residência e de reunião familiar, "sem termos nenhuma certeza de que isso vai dar certo", afirma a consultora de vistos Marta Mitico, da BR Visa e presidente da Associação Brasileira de Especialistas em Migração e Mobilidade.
Enquanto aguarda-se a publicação de portarias, segundo o Ministério da Justiça, esse procedimento tem sido adotado para alguns casos para que o imigrante possa receber o protocolo. "No caso de ser necessária a complementação de documentos em virtude de eventuais novas exigências, os requerentes serão notificados a assim o fazer", afirma a pasta.
Até o momento, não há, por exemplo, atos normativos para renovação de vistos ou reunião familiar. Os atos encontram-se em fase final de análise, segundo o Ministério de Relações Exteriores e do Trabalho, no entanto não foi dada uma data para a solução.
Temos tentado fazer pressão, como sociedade civil, para que isso seja resolvido o mais rápido possível. Mas essa insegurança jurídica que milhares de pessoas estão vivendo por ficar irregular é inadmissível."
Letícia Carvalho, assessora da Missão Paz
Labirinto burocrático
Desde 2014 no Brasil, o francês Florian, que trabalha em um instituto de pesquisa estadual de São Paulo, voltou este ano à Polícia Federal para refazer seu visto temporário. Lá, foi informado que com a nova lei, deveria fazer seu pedido no Ministério do Trabalho (MTb). Ao pedir informações no telefone do trabalhador, foi enviado ao escritório da Pasta na zona oeste de São Paulo, onde indicaram que ele apenas seria atendido no centro da capital paulista. No escritório central, avisaram que o processo ainda não estava consolidado mas que deveria ser feito pelo seu empregador.
No site do Ministério da Justiça, informações desatualizadas confrontam as indicações do Ministério do Trabalho. Há mais de uma semana, ele vai de órgão em órgão, faz reuniões com pessoas que trabalham com relações internacionais e tenta respostas dos órgãos oficiais em um labirinto cuja saída parece estar mais longe do que suas duas semanas de visto regular.
Se não o fizer no prazo legal, como explicou o Ministério do Trabalho à reportagem, ficará em situação irregular.
"Tenho um bom trabalho e uma pesquisa importante a terminar, mas estou perdendo tempo precioso meu e de outras pessoas com essas questões administrativas apenas porque não previram a transição de uma lei", conta o físico.
O tempo que a regularização deve levar é outra questão perturbadora e sem previsão. Segundo o Ministério do Trabalho, o Conselho Nacional de Imigração já publicou 23 resoluções e "não está poupando esforços para publicar as resoluções normativas ainda pendentes". No entanto, a pasta afirma que o processo depende de ampla discussão com conselheiros e outros atores do processo migratório. "Desse modo, não é prudente que sejam feitos marcos temporais determinados."
Na audiência pública realizada no dia 9 de fevereiro em São Paulo, os representantes da Polícia Federal explicaram que o agendamento está interrompido enquanto não houver regulamentação suficiente. No caso do Ministério do Trabalho, o pré-cadastro no site Migranteweb está sendo feito para pedidos de residência nos casos em que já há norma.
"Tememos que haja um efeito avalanche depois disso, ou seja, um acúmulo muito grande de pedidos, e que depois vá levar meses para ser regularizado", diz João Chaves, da DPU.
Só no caso de permissões de trabalho, o MTb concedeu 38.658 registros a estrangeiros em 2016, sendo 27,3 mil deles temporários, de acordo com o relatório do Observatório de Migração de 2017. A maior parte deles em São Paulo e no Rio de Janeiro.
O número é só parte dos que devem a partir de agora buscar o órgão, que agora deverá conceder residência para trabalho ao estrangeiro que está no Brasil. Pesquisadores, professores universitários, atletas e jornalistas, por exemplo, deverão também pedir à pasta sua autorização para trabalhar em território brasileiro, de acordo com duas das 23 resoluções já publicadas.
De 2010 a 2016, 99 mil pesquisadores, professores, atletas e voluntários, que antes usavam o Visto Temporário do tipo 1, estiveram no país. No mesmo período, 5.444 jornalistas entraram no Brasil com visto temporário para sua profissão.
Risco de multas
Outra preocupação dos estrangeiros, sobretudo daqueles em situação de vulnerabilidade, são as multas que podem ter de pagar pelo tempo irregular. A nova lei aumentou os valores e o decreto não deixa claro qual é a sanção diária. Para pessoa física, o decreto prevê multas de R$ 100 a R$ 10 mil --o texto anterior limitava a sanção em menos de R$ 900.
"A meu ver, é uma multa abusiva e não tem critérios objetivos de determinação. O decreto deixa a cargo do agente da Polícia Federal avaliar a situação da pessoa", afirma Lívia Lenci, assessora jurídica da Missão Paz, ONG que acolhe migrantes e refugiados. Lenci comenta que na regra anterior, a multa era por dia, e agora isso não está claro.
"Já peguei multa de uma pessoa que estava há anos irregular que era de R$ 7 mil, e casos de turistas que ultrapassaram menos de duas semanas e foram multados em R$ 1.100."
Para quem tem condições de pagar uma passagem para fora do país, os consultores têm indicado uma viagem internacional para que o visto que deixará de ter validade seja substituído por um visto de turismo.
O "jeitinho" administrativo não é adequado e nem garantia de que a situação será considerada legal no país, posto que turistas não podem, por exemplo, trabalhar no Brasil.
Perguntada sobre a cobrança da multa, a Polícia Federal informou que seus agentes devem seguir a lei. De acordo com o Ministério da Justiça, os valores cobrados poderão ser "restituídos, desde que após apresentadas e comprovadas as razões que levaram à impossibilidade de regularização por falta da Administração, seja o auto de infração cancelado".
Para quem busca informações
- As resoluções normativas sobre trabalho estrangeiro publicadas até o momento podem ser encontradas nesta página do Ministério do Trabalho.
- Para assuntos técnicos sobre o sistema Migranteweb, envie e-mail para migranteweb@mte.gov.br
- Para dúvidas gerais sobre residência para trabalho, mande e-mail para imigrante.cgig@mte.gov.br
* Os nomes dos estrangeiros foram trocados a pedido dos entrevistados, que temem sanções no momento em que se tornam irregulares no país
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