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Brasil paga R$ 4 bilhões em contribuições de cooperação internacional

Michel Temer (MDB) discursa na abertura da Assembleia-Geral da ONU, em setembro deste ano - Shannon Stapleton/Reuters
Michel Temer (MDB) discursa na abertura da Assembleia-Geral da ONU, em setembro deste ano Imagem: Shannon Stapleton/Reuters

Guilherme Azevedo

Do UOL, em São Paulo

22/12/2018 04h01

O governo federal voltou a ampliar o volume de recursos da cooperação brasileira para o desenvolvimento internacional, que vinha decaindo sucessivamente desde 2011. Foram desembolsados R$ 4 bilhões em cooperação com organizações e países parceiros entre 2014 e 2016, sendo 80% do total pago no último ano do período.

Os dados constam do mais recente Relatório Cobradi (Cooperação Brasileira para o Desenvolvimento Internacional), de autoria do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), órgão de assessoramento do governo federal. Com dados oficiais de mais de 200 instituições, o estudo apresenta uma espécie de radiografia da participação e influência brasileira no exterior.

Cerca de R$ 3 bilhões da cooperação internacional foram pagos em 2016, já sob o governo de Michel Temer (MDB), e se destinaram exclusivamente a pagamentos de contribuições para a manutenção de organismos, missões e fundos internacionais, como a ONU (Organização das Nações Unidas), a OEA (Organização dos Estados Americanos) e Missões de Paz.

Com os pagamentos, o país saldou grande parte da dívida acumulada principalmente a partir de 2014, quando houve a interrupção total ou parcial dos compromissos obrigatórios e regulares com o sistema ONU e outros sistemas no governo Dilma Rousseff (PT).

"Em 2016, o governo federal acumulava mais de R$ 3,2 bilhões de dívidas com organismos internacionais, pondo em risco a sua participação e o poder de voto em mais de 120 entidades ou iniciativas internacionais", rememora o Relatório Cobradi.

A retomada dos pagamentos no governo Temer reabilitou e normalizou o trânsito do Brasil junto à comunidade internacional.

Recorde em 2016

Conforme a série histórica dos desembolsos a partir de 2005, a contribuição internacional total brasileira foi recorde em 2016, somando R$ 3,1 bilhões, superando a do ano de 2010, quando o governo federal desembolsara R$ 2,4 bilhões (em valores atualizados pelo IPCA de dezembro de 2016). 

Os gastos com a cooperação internacional do Brasil declinaram a partir de então:

  • 2010 - R$ 2,42 bilhões
  • 2011 - R$ 1,38 bilhão
  • 2012 - R$ 1,33 bilhão
  • 2013 - R$ 1,07 bilhão
  • 2014 - R$ 528 milhões
  • 2015 - R$ 389 milhões
  • 2016 - R$ 3,17 bilhões

O coordenador do projeto Cobradi no Ipea, João Brígido Lima, frisa ao UOL que "o Brasil não transfere e não é doador de recursos financeiros para nenhum país". 

A cooperação se caracteriza por uma troca de benefícios. É diferente da doação, que você faz e tchau
João Brígido Lima, técnico do Ipea

O volume de pagamentos com cooperação internacional contempla as contribuições feitas para organismos multilaterais, como a ONU, assumidas em acordos muitas vezes centenários, e também custos com o trabalho e a presença (passagens e estadia) de servidores no exterior.

Os pagamentos de contribuições regulares a organismos internacionais somaram R$ 1,65 bilhão entre 2014 e 2016, respondendo por 41% do total da cooperação internacional no período e sendo a maior origem de gastos. 

A ONU, sozinha, excluindo o sistema de entidades a ela ligado, recebeu R$ 766 milhões do governo brasileiro em 2016, depois de não receber nada em 2014 e apenas R$ 13 milhões em 2015.

Os desembolsos com a rubrica "integralização de capital", isto é, com aportes financeiros do Brasil em fundos de desenvolvimento e em bancos regionais multilaterais, totalizaram R$ 1,4 bilhão em 2016. Em 2014, o governo havia contribuído com R$ 122 milhões e em 2015 nada pagou.

Terceiro item de maior gasto da cooperação internacional, as diárias e passagens de servidores ao exterior alcançaram R$ 190 milhões de 2014 a 2016, representando 5% do total dos pagamentos no período.

Qual a importância da colaboração?

Seria importante essa participação internacional, já que não traz aparentemente nenhum retorno financeiro quantificável? Por que fazer parte de sistemas que geram ônus ao país?

É com essa presença que a gente aparece e se senta nas mesas de decisão do Conselho de Segurança da ONU, mostrando o desempenho obtido nas operações de paz no Haiti, nas presenças de observadores em países da África, por exemplo
João Brígido Lima, técnico do Ipea

"O Relatório Cobradi ajuda a mostrar a presença e a capacidade que nós temos", explica o analista que está há 38 anos no Ipea e há nove anos no comando do estudo.

Para ele, a presença internacional é marco civilizatório do Brasil, posicionamento de quem tem hoje muito a ensinar e a oferecer a qualquer outro país do mundo em certas áreas do conhecimento. E por isso compartilha com generosidade práticas, técnicas e tecnologias que desenvolveu com sucesso, sem que perca de vista a perspectiva do próprio desenvolvimento e soberania. Diferente, portanto, daquele antigo Brasil que tudo precisava trazer de fora, dependente, e pouco tinha a contribuir com o mundo.

"Vou dar um exemplo: o Brasil, quando vai com a Embrapa [Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária] à África e colabora com plantios de algodão, com soluções para a mandioca, alimentos etc., mostra que está preocupadíssimo com 20 doenças que ameaçam a agricultura brasileira", pontua o estudioso do Ipea.

"São ocorrências mundiais, cinco das quais já estão na África. A presença brasileira, ao fazer cooperação, tem um outro objetivo, que é ajudar os países africanos a eliminar essas ameaças, porque, se chegaram à África, estão no Brasil. São doenças que destruiriam nossa fama de celeiro mundial, a nossa agropecuária", materializa.

leite materno - iStock - iStock
Brasil exporta tecnologia de criação e manutenção de bancos de leite humano
Imagem: iStock

As mulheres que doam leite humano

O Relatório Cobradi descreve também a colaboração internacional do Brasil na área técnica. Um dos projetos em destaque é o de compartilhamento sem fins lucrativos da tecnologia de criação e operação de redes de bancos de leite humano, desenvolvida pela Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz).

No Brasil, cita o relatório, cerca de 150 mil litros de leite humano são coletados, processados e distribuídos a recém-nascidos de baixo peso internados em unidades neonatais, prática que tem salvado milhões de crianças da morte. Isso agora é do mundo.

Por meio da cooperação técnica do tipo Sul-Sul, isto é, entre países em desenvolvimento (não é do tipo Norte-Sul, de países desenvolvidos para os em desenvolvimento), o Brasil ajudou a implantar bancos de leite humano em Moçambique, Cabo Verde, Paraguai, Peru, Argentina, República Dominicana, México, Equador, Honduras, Nicarágua, Venezuela, Panamá, Cuba, El Salvador, Colômbia e Guatemala.

No período do relatório, houve aumento do número de bancos em países parceiros: de 79 bancos, em 2014, para 91, em 2016, com o atendimento de 1,6 milhão de mulheres e 394 mil recém-nascidos, além da capacitação de 403 profissionais estrangeiros em todos os processos de trabalho nos bancos. Foram 356 mil mulheres doadoras e a coleta de 103 mil litros de leite humano.

"Falta uma política clara"

Brígido Lima identifica um problema de base da cooperação internacional do Brasil: a ausência de princípios que definam o que e como ela é.

"Para ter uma ideia, só hoje está sendo proposta, e não sei se vai ser aprovada, uma lei que define o que é essa cooperação internacional brasileira. Então eu escrevo um relatório que sai dos meus 38 anos de serviço público." 

Como vou dizer se algo está impedido ou não se não tem regra? Falta uma política de cooperação internacional brasileira
João Brígido Lima, técnico do Ipea

O técnico do Ipea lembra de que a cooperação com outros países é hoje uma atividade de grande proporção e complexidade, que movimenta cerca de 500 unidades brasileiras.

"O que a gente tenta aclarar para a opinião pública é que tem um mundo de organizações que atuam no exterior e estão exigindo uma coordenação mais efetiva, uma coisa mais clara, porque o Ministério das Relações Exteriores sozinho não controla tudo. Isso está faltando."


E com Bolsonaro?

Sobre o futuro da cooperação internacional e da relação do Brasil com organismos internacionais, Brígido Lima minimiza ameaças feitas pelo presidente eleito, Jair Bolsonaro (PSL), de abandonar pactos e acordos.

"Creio que os grandes compromissos multilaterais, com a ONU, contra a fome, por crianças, minorias de mulheres e refugiados, o Brasil não tem como deixar de participar. Mas o Brasil participa de quase 180 organizações e comissões, é um varejo enorme. Creio que aí pode ter alguma racionalidade: 'Opa, espera aí, vamos diminuir'. O novo governo pode fazer isso."