Em livro, Cristina Kirchner lamenta tempos de Bolsonaro: 'Que mundo, Deus'
A ex-presidente e senadora argentina Cristina Kirchner escreve seu livro recém-lançado, sob o título de "Sinceramente", com um misto de revelações e irreverência. Recheia as 594 páginas com relatos e comentários afiados. Muitas vezes a impressão é a mesma de ouvir seus discursos políticos, com argumentações enfáticas e irônicas, que muitas vezes podem ser interpretadas como presunçosas ou agressivas.
O livro se esgotou em diversas livrarias já no dia 25 de abril, quando chegou oficialmente às prateleiras, numa tiragem de 20 mil cópias. Em menos de duas semanas, a publicação já está em sua quinta edição, com 217 mil exemplares impressos. Cristina apresenta "Sinceramente" em evento na Feira Internacional do Livro de Buenos Aires, amanhã à noite.
Antes da página 30, há um relato no mínimo surpreendente. Ela conta que, uma semana antes de assumir, Mauricio Macri, candidato vitorioso na disputa presidencial, teve uma discussão feia com ela. "Gritava e me culpava de querer arruinar a posse dele", descreve Cristina sobre o diálogo telefônico com Macri em dezembro de 2015.
Cristina relata que pensar na foto da entrega da faixa e do bastão presidencial ao adversário lhe "apertava o coração" e diz ter imaginado simplesmente deixá-los sobre o estrado, cumprimentar Macri e sair do recinto. Terminou realmente não participando da cerimônia, já que ela e Macri não chegaram a um acordo sobre horários.
Os holofotes do lançamento ainda vão se confundir com as vésperas de seu julgamento, no dia 21, acusada de desvio e lavagem de dinheiro público por meio dos hotéis que pertencem à família Kirchner na Patagônia. Atualmente, Cristina disfruta de imunidade parlamentar.
O lançamento do livro em ano eleitoral foi interpretado como confirmação de que ela voltará a ser candidata. A impressão foi ressaltada após uma pesquisa de intenção de voto da consultoria Isonomía, que apontou para um cenário de vitória da ex-presidente sobre Macri em segundo turno.
Outro indicativo de pré-campanha são as breves referências de Cristina ao presidente brasileiro Jair Bolsonaro. Ao mencionar direitos adquiridos pela comunidade LGBT na Argentina, lamenta no livro: "Escrevo estas linhas em tempos de Bolsonaro, o novo presidente do Brasil que abjura das minorias e quer persegui-las... Que mundo, meu Deus!".
Em outro trecho, fala sobre fake news como "moeda corrente nas campanhas eleitorais dos partidos políticos de direita em todo o mundo, como ficou demonstrado depois da vitória de Donald Trump nos Estados Unidos ou de Jair Messias Bolsonaro no Brasil".
Bolsonaro, por sua vez, já criticou o que aconteceria com a Argentina --e as terríveis consequências ao Brasil-- se Cristina fosse vitoriosa numa eventual candidatura. "Eu espero que nossos irmãos argentinos se conscientizem. Se o Macri não está indo bem, paciência. Vai lutar para melhorar ou [elege] alguém da linha dele. O que não pode é voltar Cristina Kirchner que, no meu entender, os reflexos serão para o povo argentino e para todos nós", disse em uma transmissão ao vivo no Facebook.
Quando lembro daquelas conversas da Pátria Grande e a necessidade de estar unidos e este presente de destituição e Bolsonaros, de presidentes autoproclamados, de perseguição política e de novos endividamentos com o FMI, me pergunto: em que falhamos? O que é que não vimos? Fomos ingênuos? Como pudemos acreditar que a direita e o neoliberalismo são democráticos?
Trecho do livro "Sinceramente", de Cristina Kirchner
Livro silencia sobre prisão de Lula
Quem embarcar na leitura publicada pela editora Sudamericana, do grupo Penguin Random House, deve sentir falta de paralelos entre a situação judicial de Cristina, alvo de 11 processos na Argentina, e a de Luiz Inácio Lula da Silva, preso em Curitiba há mais de um ano.
O único momento em que o livro se refere explicitamente à prisão de Lula é quando afirma que tanto seu encarceramento como a ordem de prisão do equatoriano Rafael Correa, no ano passado, são "testemunhos irrefutáveis" de "uma campanha de ataque e demonização em escala regional" contra líderes de "processos nacionais, populares e democráticos" que mudaram "favoravelmente" as condições de vida de milhões de pessoas. Dilma é mencionada várias vezes, mas de forma passageira.
No livro, Cristina denuncia o que considera ser uma perseguição judicial e midiática contra ela e sua família. Menciona, por exemplo, uma publicação do jornal Clarín sobre uma suposta conta de seu filho, Máximo Kirchner, nos Estados Unidos. Ressalta que, "convenientemente", o Departamento de Justiça dos EUA demorou mais de 24 meses para informar que a conta nunca existiu.
Para ela, o estresse derivado dessas operações, com o auxílio da imprensa, foi a causa de sua filha, Florencia, desenvolver problemas de saúde. Diz que seus filhos "sempre foram presas" dos meios de comunicação.
O que ameniza a leitura da enumeração de medidas dos governos kirchneristas e das intrigas judiciais expostas por Cristina são seus relatos de bastidores. Ela narra, por exemplo, que no bicentenário da Independência argentina, em 2010, Pepe Mujica chegou bufando ao palco do evento, devido à quantidade de ruas que teve de cruzar e aos apertões de afeto que recebeu do público. Ou quando conta que, após nove presidentes caminharem no meio da multidão durante o evento, "sem segurança", Lula teria comentado: "Isso no Brasil causaria cem mortos".
Sobre Fidel Castro, relata sempre ter se impressionado com a memória e interesse do líder por tudo. "Nada era indiferente para ele, nada era desconhecido e, se ele não sabia, pedia que você explicasse muito detalhadamente e escutava com atenção máxima. Nunca vi ninguém com tanta vontade de saber tudo. Ele desfrutava muito ao escutar o outro", diz.
Uma das principais ausências do livro é a falta de comentários sobre a tragédia de Once, um acidente de trem ocorrido em 2012, durante sua gestão, que matou 51 pessoas e feriu quase 800. O então ministro de Planejamento, Julio de Vido, foi condenado em outubro passado a mais de cinco anos de prisão como "partícipe necessário" de defraudação do Estado por empresários e terminou absolvido por "estrago culposo".
Cirurgia na cabeça
Sobre bastidores curiosos de sua vida, ela conta que, quando teria a cabeça operada para a retirada de um hematoma, desconfiou que o médico, por não sorrir para ela, fosse filho de algum militar acusado por crimes da ditadura (cujos julgamentos foram retomados nos governos kirchneristas). Pediu a sua equipe que o nome do profissional fosse procurado nas organizações de direitos humanos, mas terminou descobrindo que o profissional "extraordinário", diz depois, era apenas tímido.
Guarda suas maiores ironias para os meios de comunicação, principalmente do Grupo Clarín, e para Macri. "Às vezes acho que sem a cumplicidade dos meios de comunicação este governo não existiria", escreve, após Macri dizer que a situação econômica do país se devia a uma "pesada herança" deixada por ela. "Macri é o caos", rebateu ela.
Por enquanto, o presidente argentino não quis saber das críticas da antecessora. Em entrevista a uma rádio local, afirmou que ler "Sinceramente" não está entre suas prioridades.
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