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O que está acontecendo no Chile? Especialistas explicam

Ana Carla Bermúdez

Do UOL, em São Paulo

21/10/2019 13h47Atualizada em 22/10/2019 11h22

O Chile vive uma onda de protestos violentos, com confrontos entre manifestantes e policiais. As manifestações tiveram início contra um aumento na tarifa do metrô, mas logo passaram a contestar as políticas do governo de Sebastián Piñera.

Em cinco dias, 15 pessoas morreram e pelo menos 2.600 foram detidas. Prédios foram incendiados, e estabelecimentos comerciais, saqueados. Em Santiago, mais de 10 mil soldados do Exército passaram a patrulhar as ruas por ordem de Piñera, que decretou estado de emergência e toque de recolher nas principais cidades do país.

O presidente chileno, que há cerca de um mês classificou o país como um "oásis de paz", afirmou na noite de ontem que o Chile está em "guerra".

Especialistas apontam a desigualdade socioeconômica, a privatização e a baixa qualidade dos serviços públicos (entre eles, os sistemas de transporte e previdência) como fatores que explicam os protestos no Chile. Entenda, em três pontos, o que está acontecendo no país:

Aumento da tarifa do metrô e a "gota d'água"

Convocados inicialmente pelas redes sociais, os protestos começaram por conta do aumento nos bilhetes do metrô em Santiago, que subiram o equivalente a R$ 0,20 para os horários de pico —a tarifa, com o aumento, é equivalente a R$ 4,73 (em São Paulo, ela é de R$ 4,30; no Rio, de R$ 4,60).

Em resposta ao aumento da passagem, manifestantes depredaram estações de metrô na capital e promoveram entradas em massa sem pagar a passagem, pulando as catracas de acesso às plataformas de embarque.

Maurício Santoro, professor de relações internacionais da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), diz que a alta no preço foi "simplesmente a gota d'água em um mal-estar econômico mais amplo".

Segundo ele, esse "mal-estar econômico" está relacionado a um contraste entre o crescimento econômico nos últimos anos e a realidade de problemas estruturais do país, como a desigualdade social e a baixa qualidade dos serviços públicos.

"Tudo isso vai se acumulando e chega um momento em que explode", afirma o professor, que aponta ainda similaridades entre os protestos de hoje no Chile e as manifestações contra o aumento da passagem de ônibus no Brasil em 2013.

'Estamos em guerra', diz presidente chileno após manifestações violentas

AFP

Andras Uthoff, professor da Faculdade de Economia e Negócios da Universidade do Chile, afirmou em entrevista ao blogueiro Leonardo Sakomoto que os protestos também podem ser relacionados à privatização dos serviços públicos.

"É uma manifestação contra o abuso que tem significado a privatização de serviços públicos com cobranças que a grande maioria não pode pagar, ficando excluída de bons serviços de saúde, educação, transporte, moradia, água, luz, energia", disse.

Aos gritos de "basta de abusos" e com o lema que dominou as redes sociais "ChileAcordou", os manifestantes criticam o modelo econômico do país, com acesso à saúde e à educação praticamente privado, elevada desigualdade social, aposentadorias baixas e alta do preço dos serviços básicos. A manifestação não tem um líder definido e nem uma lista precisa de exigências.

O Chile é o país mais desigual entre os membros da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico). Em 2015, o país tinha um coeficiente Gini, que mede a desigualdade de renda em uma escala de zero a 1 (quanto mais alto, maior é a desigualdade), de 0,51. A média dos países da OCDE é de 0,32.

Administrado pela empresa estatal chilena Metro S.A., o metrô de Santiago é considerado um dos sistemas de transporte mais modernos da América Latina. Hoje, o metrô de Santiago tem sete linhas e 136 estações.

Com 140 km de extensão, a rede é a maior da América do Sul e a segunda maior da América Latina, ficando atrás apenas do metrô da Cidade do México. O metrô de São Paulo, por exemplo, tem uma rede de 97 km de extensão.

Escalada de violência, Exército nas ruas e estado de emergência

Em meio aos protestos na sexta-feira (18), além das depredações a estações de metrô, prédios como a sede da Enel (empresa de energia elétrica do Chile) e do Banco do Chile foram incendiados. Houve ainda confrontos com a polícia, que estabeleceu um perímetro de segurança na sede do governo.

No início da noite de sexta, o presidente Piñera anunciou o fechamento do metrô. Ele também invocou a Lei de Segurança do Estado —legislação que prevê penas mais duras a quem causar danos ou impedir o funcionamento de estabelecimentos públicos e privados de serviços básicos.

Os protestos, no entanto, continuaram, e na madrugada de sábado (19), Piñera decretou estado de emergência em Santiago e outras cidades do país.

O Exército passou a patrulhar as ruas em uma tentativa de controlar pontos estratégicos, como centrais de abastecimento de água, eletricidade e cada uma das 136 estações de metrô. Foi a primeira vez desde a volta da democracia no Chile, em 1990, que militares voltaram às ruas no país.

Nas noites de sábado e domingo, o governo chileno também decretou toque de recolher nas principais regiões do país. Mesmo assim, os confrontos e distúrbios permaneceram durante a madrugada.

Apesar de recuo no aumento, protestos continuam

Logo no sábado, Piñera anunciou que mandou um projeto para o Congresso suspendendo o aumento na tarifa do metrô. Mas o recuo não foi suficiente para interromper as manifestações.

"Chega um momento, quando as pessoas percebem o tamanho que esse movimento de protestos assumiu, em que muita coisa acaba vindo à tona. Os próprios manifestantes descobrem a sua capacidade de influenciar a agenda pública, a condução da política", avalia Santoro.

"Acho que muito dessas dificuldades de longo prazo vão ser colocadas na rua agora: as ansiedades do povo chileno com relação a emprego, a desigualdade e à má qualidade dos serviços públicos", analisa o especialista.

Em Santiago, apenas uma linha do metrô está aberta e os serviços de ônibus estão sendo subsidiados. O presidente Sebastián Piñera se reunirá hoje com líderes de partidos políticos para falar da situação do país e tentar encontrar uma saída. Há receio de que os protestos possam ser ampliados com greves e novas mobilizações.