Sozinho, ucraniano resgata família de Mariupol: 'catástrofe humanitária'
Sozinho em seu próprio carro, o ucraniano Oleg, 47, resgatou o filho de 15 anos com paralisia cerebral, a ex-esposa e a mãe dela da cidade de Mariupol, no sudeste da Ucrânia. Ocupada por tropas russas e considerada estratégica na invasão, a cidade é alvo de bombardeios.
"Eu descreveria Mariupol como uma catástrofe humanitária", diz Oleg, que não quis informar o sobrenome, por medo de retaliação. Ele tem medo de ser identificado pelas tropas russas enquanto estiver tentando resgatar outros parentes que ainda estão na cidade.
"As pessoas estão morrendo e quem sobrevive enterra seus entes queridos no mesmo lugar onde mora"
Oleg chegou com os familiares à cidade de Dnipro, 310 km ao norte de Mariupol, na segunda-feira (28), após quatro dias de viagem. O trajeto, em condições normais, leva 4 horas. A presença de minas terrestres prejudicou o deslocamento.
"O trânsito é muito pesado e eu tive que dirigir desviando destas minas. Foi chocante para mim", afirma o ucraniano.
As minas são espalhadas por russos e ucranianos, que tentam assim impedir o avanço inimigo com tanques nas áreas que já controlam. O problema é que também impedem o tráfego de veículos civis, como ônibus com refugiados, ambulâncias ou caminhões de ajuda humanitária.
Na terça-feira (29), a Rússia anunciou um acordo de cessar-fogo nas proximidades de Kiev, prometendo concentrar os ataques na região leste do país. Mariupol é justamente uma das cidades do leste ucraniano e uma das prioridades de Moscou no momento.
Sem um corredor humanitário, os civis que ainda continuam lá não têm chance de escapar.
Parentes sumiram em 2 de março
Até a semana passada, Oleg sequer tinha certeza de que encontraria os parentes vivos em Mariupol. Com a comunicação na cidade bloqueada, não conseguia contactá-los desde 2 de março. Sua chegada causou surpresa, pois os familiares pensavam que ele estava morto.
Eu bati na porta e eles perguntaram: "Quem está ai?" E eu respondi: "eu estou aqui". Eles ficaram em choque, ficaram brancos, não acreditaram. Eu os abracei e disse. "Nós vamos embora agora"
Os preparativos para a viagem levaram cinco minutos, disse. Todos estavam de malas prontas, buscando alguma forma de deixar a cidade. O ucraniano passou cerca de 1 hora ali e planeja voltar amanhã (31), para salvar a cunhada e o sobrinho.
"Duas outras pessoas da minha família ficaram em Mariupol. Eu não poderia tê-los trazido em apenas um carro. Então, vou novamente em breve e espero poder tirá-los de lá também", afirmou.
Ele conta que o bairro onde a cunhada e o sobrinho vivem está sob controle de tropas russas, mas não sabe se estão vivos.
Cães e pombos viram comida
O ucraniano encontrou Mariupol com prédios destruídos, cabos elétricos espalhados pelas ruas, corpos e pedaços de corpos apodrecendo sem que ninguém os recolhesse.
"Minha ex-esposa disse que seus vizinhos estavam pegando cachorros de rua e pombas, pássaros e tinham que comê-los, porque não havia comida em nenhum lugar", afirmou.
Oleg conta que os soldados russos permitem a entrada e a saída de ucranianos que vão a Mariupol resgatar familiares. Entretanto, é preciso se submeter a uma revista. Os homens precisam tirar as roupas para que os soldados possam identificar possíveis tatuagens com símbolos nazistas.
As marcas são muito comuns entre os combatentes do Batalhão Azov. Em setembro de 2014, o grupo conseguiu retomar Mariupol ao lançar uma ofensiva contra os separatistas pró-Rússia.
"Eu não tenho nenhuma tatuagem, mas tive que me despir e precisei mostrar meu telefone, porque eles estão vendo todas as mensagens. Eles viram as galerias de fotos, mas eu tinha apagado tudo antes. Então não encontraram nada que pudesse me comprometer", diz.
Ucraniano comprou carro velho para evitar roubo por soldados russos
Por medo de ter o carro roubado por soldados russos em Mariupol, Oleg comprou um Ford Transit Connect 2004 para chamar menos atenção nas viagens de resgate.
"Estes soldados russos estão se comportando como se eles tivessem ocupado um território. Estão tratando os moradores não como pessoas de uma nação amiga, mas como de uma nação ocupada", afirma o ucraniano.
As tropas ucranianas se encontram cercadas dentro de Mariupol, a 500 metros de distância dos russos, segundo Oleg. Em alguns casos, um lado consegue ver o outro. "Os soldados ucranianos estão raivosos, loucos com os russos. Eles não vão deixar Mariupol, vão combater até o último soldado. Eu vi que eles estão muito motivados e que não vão se render."
Viagem se deu ao som de bombardeios
"Eu ouvi bombardeios o tempo todo, sem parar, e nós estávamos dirigindo muito rápido", diz Oleg sobre a viagem.
De Mariupol, ele seguiu para Berdyansk, também localizada à beira do Mar de Azov. Lá, encontrou um cenário bem diferente.
"Em Berdiansk, você ainda pode comprar comida, alimentos", afirma. "Eu comprei vodka lá, porque não poderia dormir sem isso. Funcionou como sonífero", diz.
De Berdyansk, a família seguiu para o Dnipro, no sudeste ucraniano, destino final da viagem.
"Eles ficaram surpresos, porque não havia nenhum bombardeio em Dnipro. Durante um mês, viveram num inferno total (em Mariupol)." Agora, Oleg planeja mandar seus parentes para a Alemanha, onde vive sua irmã.
Vitória russa pode impedir volta à terra natal
Membros das forças da autoproclamada República Popular de Donetsk também combatem na região e, segundo leg, são ainda piores que as tropas russas, veem a população que busca escapar como traidores, e usam de violência, humilham os civis.
Antes da guerra, Oleg trabalhava para uma agência dinamarquesa que apoia refugiados e nunca havia se imaginado numa situação como a atual.
Se a Rússia vencer esta guerra ou se a Ucrânia aceitar entregar a região leste do país em troca de paz, ele e sua família ficarão permanentemente impedidos de voltar para suas casas — a não ser que aceitem se tornar cidadãos russos.
"Eu sinto como se eles tivessem ocupado minha terra natal. Que minha terra natal tenha sido destruída e tomada por soldados estrangeiros. Agora eu entendo o que meu avô sentiu quando os alemães tomaram sua terra natal"
*Especializado em coberturas de conflitos, o fotógrafo André Liohn reporta ao UOL e à Folha diretamente de Kiev, na Ucrânia, sobre a guerra deflagrada pela Rússia. Com publicações em New York Times, Time e The Guardian, Liohn recebeu o prêmio Robert Capa, um dos mais importantes da fotografia, pela sua cobertura da Primavera Árabe na Líbia, em 2012.
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