Duas Ucrânias? Analistas avaliam mudança de estratégia da Rússia na guerra
Uma divisão territorial na Ucrânia, com duas zonas de influência separadas, uma do Ocidente e outra da Rússia, passou a ser considerada uma possibilidade para o fim do conflito que já se estende por mais de cem dias, completados nesta semana. O próprio chefe da Inteligência militar ucraniana, o general Kyrylo Budanov, já admite a chance de separação.
A ideia vem ganhando força desde o fim de março, quando a invasão russa à Ucrânia completou um mês.
Foi então que a Rússia aparentemente mudou de estratégia: após anunciar o fim da "primeira fase" do que ainda classificam como "operação militar especial", os russos deixaram o cerco a Kiev e se retiraram de fronts abertos ao norte da Ucrânia. A ofensiva russa passou a focar no que o governo de Vladimir Putin chama de "libertação completa do Donbass", no leste ucraniano.
Ali, a Rússia tem obtido avanços importantes. Com ganhos rápidos no sul, conseguiu criar um corredor terrestre entre a Crimeia —que era ucraniana, mas foi anexada por Putin em 2014— e as repúblicas separatistas de Donetsk e Luhansk —reconhecidas como independentes pelos russos dias antes do início do conflito.
Há, no entanto, uma relevante resistência ucraniana em locais, como a cidade portuária de Mariupol, que atrasam os planos russos. Em tese, tornam difícil a ideia de criar uma "Ucrânia Oriental", como especulou o general Budanov e que, segundo analistas, seria uma saída possível para encerrar a guerra.
Mas, afinal, por que a Rússia mudou de estratégia? É mesmo possível que a Ucrânia aceite perder parte de seu território?
Mudança de rota
Para Carlos Gustavo Poggio, doutor em Relações Internacionais e professor da FAAP, a alteração nos planos da Rússia ocorreu devido à maneira como a guerra progrediu, com mais resistência do que Putin imaginava.
Claramente, ele [Putin] não ficou satisfeito. Me parece óbvio para todo mundo hoje que a expectativa que o Putin tinha de conseguir um ganho rápido na Ucrânia, provavelmente derrubar o [Volodymyr] Zelensky [presidente ucraniano] e colocar alguém favorável ao Kremlin, se baseou numa percepção equivocada do povo ucraniano
Carlos Gustavo Poggio doutor em Relações Internacionais e professor da FAAP
De acordo com Poggio, a população da Ucrânia não vê com bons olhos a invasão russa e a resistência surpreendeu os militares. "Agora, o que se fala na Rússia é que o povo inteiro ucraniano é fascista, que o fascismo não está só na hierarquia superior do governo. Isso é perigoso, porque aí você passa a ter um discurso genocida, justificando toda sorte de barbaridades cometidas na Ucrânia."
Além disso, para o professor, a reação do Ocidente foi também mais forte do que Putin poderia antecipar. "A Rússia veio para a guerra com a cabeça em 2014", diz, em referência ao evento de anexação da Crimeia há oito anos. Na época, a reação da comunidade internacional havia sido muito mais amena do que agora. Atualmente, múltiplas sanções financeiras vêm sendo aplicadas à Rússia por parte dos Estados Unidos e da União Europeia.
Pedro Costa Júnior, cientista político e pesquisador da USP afirma que a Rússia jamais deixou clara qual seria sua estratégia na Ucrânia. Para ele, não se pode descartar que o cerco à capital, Kiev, tenha sido uma tática diversionista, usada para desviar as atenções do real plano russo: atacar o sul e o leste.
"Você sempre sabe o que o [Joe] Biden e o [Anthony] Blinken [respectivamente presidente e secretário de Estado dos EUA], e, portanto, também o Zelensky, o que todos eles vão fazer nas próximas 24 horas", diz Costa Júnior. "O Putin não, você não sabe. Ele tem esse trunfo na mão. Como todo mundo estava naturalmente de olho em Kiev, ele foi tomando todo o Donbass."
Vale lembrar que a capital ucraniana tem ligações históricas com a Rússia. Bombardeá-la, portanto, teria um custo alto para Putin.
O pesquisador destaca ainda que, enquanto a preocupação ocidental se voltava a Kiev, os russos atacavam Mariupol, faziam a conexão entre o leste e o sul do país, incluindo a região da Crimeia, e garantiam uma saída para o Mar Negro.
Duas Ucrânias?
Para Costa Júnior, a criação de uma Ucrânia pró-Rússia "nunca saiu da boca do Kremlin". Ele aponta que o governo de Putin já deixou claro que deseja um reconhecimento da Crimeia como parte do seu território. Mas mesmo isso é complicado, já que implicaria Zelensky ter de ceder à Rússia.
Outra questão complexa gerada pelos russos gira em torno da independência das repúblicas autoproclamadas de Luhansk e Donetsk no leste da Ucrânia, mais próximas culturalmente à Rússia. Segundo Costa Juínior, ela implicaria uma concessão que Zelensky também não parece estar disposto a fazer.
Não seria um prêmio de consolação, mas sim uma vitória clara e expressiva do Putin, e uma derrota clara do Ocidente, especialmente da Casa Branca e do governo Biden, que já passa a impressão de ser um governo fraco
Pedro Costa Júnior, cientista político e pesquisador da USP
Para os EUA, portanto, seria interessante estender a guerra o máximo possível, desgastando as forças russas. Por isso mesmo, o pesquisador diz que uma divisão territorial na Ucrânia, se ocorrer, seria "a muito longo prazo".
Por outro lado, Poggio afirma que Putin precisa "desesperadamente" de algum tipo de ganho político que permita a saída da guerra e a declaração de "qualquer tipo de vitória". "Ele percebeu que o que está mais ao alcance dele, militarmente, nesse momento, é se assegurar dessas regiões em que a Rússia já tem algum controle, cortar o acesso da Ucrânia ao Mar Negro, e ocupar uma parte da Ucrânia, já que não foi possível ocupar o país como um todo. E aí, eles vão adaptar a narrativa."
Guerra de ocupação
O professor avalia que o presidente russo cometeu um erro ao deflagrar uma guerra de ocupação, um tipo de combate historicamente marcado por resistências de guerrilhas, que ele define como "o maior pesadelo das grandes potências".
São exemplos desse "pesadelo" as resistências populares à ocupação dos EUA no Vietnã, nos anos 60, e à ocupação da União Soviética no Afeganistão, nos anos 80. O próprio governo de Putin já chegou a passar por situação parecida na república russa da Chechênia, num conflito interno que durou nove meses e, depois, teve mais nove anos de insurgência e rebelião.
"Para o ocupado, a guerra é existencial. Para o ocupante, a guerra é um custo militar e político, que muitas vezes não se está disposto a aceitar", afirma. Poggio diz ainda que, para haver uma divisão em duas Ucrânias, uma ocidental e outra oriental, isso dependeria do reconhecimento da comunidade internacional, que, segundo ele, não virá.
"Essas regiões permanecerão, do ponto de vista do direito internacional, como regiões ocupadas, território ucraniano ocupado militarmente pela Rússia."
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.