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Guerra na Ucrânia agrava conflito de 30 anos entre ex-repúblicas soviéticas

2.mai.2023 - Barreira militar instalada em abril pelo Azerbaijão no corredor de Lachin, única ligação entre a Armênia e Nagorno-Karabakh  - Tofik BABAYEV / AFP
2.mai.2023 - Barreira militar instalada em abril pelo Azerbaijão no corredor de Lachin, única ligação entre a Armênia e Nagorno-Karabakh Imagem: Tofik BABAYEV / AFP

Do UOL, em Ierevan, na Armênia*

20/05/2023 04h00

A guerra entre Rússia e Ucrânia agravou a tensão entre Armênia e Azerbaijão — duas ex-repúblicas soviéticas que, há mais de 30 anos, disputam o território de Nagorno-Karabakh, também chamado de República de Artsakh.

Nagorno-Karabakh é uma região de maioria armênia dentro do Azerbaijão que quer a independência desde o fim da década de 1980, pouco antes do colapso da União Soviética. Em 2020, a Rússia intermediou o cessar-fogo após uma guerra de 44 dias e enviou 2.000 soldados para a região. O objetivo era manter a segurança no território e monitorar o corredor de Lachin, que liga a Armênia a Nagorno-Karabakh.

Focado na guerra contra Kiev desde o ano passado, o governo de Moscou não interveio após uma nova ofensiva do Azerbaijão, em dezembro de 2022 — quando o corredor de Lachin foi bloqueado.

Os Estados Unidos e o Conselho Europeu intermediaram conversas entre as partes envolvidas em maio — mais de quatro meses após o fechamento da via. Ainda não há acordo.

A Armênia tem área e população semelhantes ao estado de Alagoas. São quase 30 mil km² e 3 milhões de habitantes. Duas das quatro fronteiras são fechadas — além do Azerbaijão, o país não tem relação com a Turquia.

O UOL esteve na região e conversou com pesquisadores e políticos da Armênia e de Artsakh, além de especialistas brasileiros que acompanham o impasse no sul do Cáucaso.

A disputa por Nagorno-Karabakh - Carol Malavolta/UOL - Carol Malavolta/UOL
Imagem: Carol Malavolta/UOL

Tensão na fronteira

Em dezembro, ecoativistas fecharam o corredor de Lachin, uma estrada de cerca de seis quilômetros, reclamando da exploração mineral. Desde então, as tropas azerbaijanas passaram a avançar em direção à fronteira com a Armênia.

Autoridades armênias alegam que tecnologia de reconhecimento facial indicou que os manifestantes são, na verdade, militares do Azerbaijão.

Em abril, o Azerbaijão instalou um checkpoint — uma espécie de barreira militar — sob o argumento de que estaria impedindo o transporte de armas. Rússia, Estados Unidos e outros países condenaram a ação por meio de notas oficiais.

Com 120 mil habitantes, a região de Nagorno-Karabakh está isolada. A República de Artsakh afirma que "nenhum veículo de morador" passou pela rodovia bloqueada desde janeiro — apenas da Cruz Vermelha e da missão de paz russa. Diz também que mais de 1.300 pacientes não recebem medicamento adequado desde o começo do bloqueio e a importação de bens essenciais — como alimentos — caiu para 4,8 toneladas, em vez das 63,6 mil toneladas previstas no período.

Governo, moradores e ativistas relatam racionamento de energia elétrica e de gás, além da escassez de alimentos e remédios. Nesta semana, anunciaram que o maior reservatório de água chegou a nível crítico de seca. Em condições precárias de funcionamento, escolas e creches já suspenderam total ou parcialmente as atividades. Cerca de 4 mil pessoas — incluindo 550 crianças — foram separadas de suas famílias.

Garine, 61, tem saudade do filho que mora em Nagorno-Karabakh — a cerca de 70 km de distância. Ela vive em Tegh, na Armênia, e produz lavash — o pão típico do país — junto com outras mulheres da família. "Eu falo com ele, ele tenta me tranquilizar", conta. "Em 1992 [durante a primeira guerra de Nagorno-Karabakh], foi ruim. Mas agora é diferente. A gente sabe que tem drones."

Garine (à esquerda) vive na Armênia e fica preocupada com o filho que está em Nagorno-Karabakh - Luciane Scarazzati/UOL - Luciane Scarazzati/UOL
Garine (à esquerda) vive na Armênia e fica preocupada com o filho que está em Nagorno-Karabakh
Imagem: Luciane Scarazzati/UOL

Desde dezembro, 750 toneladas de doações se acumulam em Goris, perto da fronteira, incluindo presentes de Natal para crianças.
Sergey Gharzaryan, ministro das Relações Exteriores da República de Artsakh, em declaração feita em abril

Decisão na Corte Internacional de Justiça

Em fevereiro, atendendo a um pedido do governo armênio, a Corte Internacional de Justiça, em Haia (Holanda), ordenou que o Azerbaijão libere o trânsito no corredor de Lachin. Mas nada mudou.

Antes, países grandes desafiaram as decisões da CIJ — para especialistas, um país menor e menos relevante não obedecer a Corte e não ser alvo nem de sanções é um mau sinal para a Justiça internacional.

O assunto poderia ser levado ao Conselho de Segurança da ONU, segundo Paulo Borba Casella, professor de Direito da USP e especialista em direito internacional. Mas, hoje, não há movimentação nesse sentido. "A Rússia [que acompanharia mais de perto o conflito] não está em condições de mobilizar outros países agora."

Manifestação lembra o dia da vitória e o dia da libertação de Shushi em Stepanakert, em Nagorno-Karabakh  - Ruben Vardanyan & Siranush Sargsyan - Ruben Vardanyan & Siranush Sargsyan
9.mai.2023 - Moradores de Stepanakert, capital de Nagorno-Karabakh, foram às ruas para marcar o Dia da Vitória da 2ª Guerra
Imagem: Ruben Vardanyan & Siranush Sargsyan

Rússia como principal parceira -- mas distraída

Após o fim da União Soviética, a Rússia e a Armênia continuaram próximas. A Rússia é o principal parceiro comercial da Armênia, segundo o ministro da Economia Vahan Kenobyan, além de ser oficialmente responsável pela missão de paz entre Armênia e Azerbaijão desde 2020.

Calcula-se que cerca de 100 mil russos mudaram para a Armênia por causa da guerra contra a Ucrânia — e esse foi um dos motivos para a aceleração da economia local. Muitos são jovens que trabalham com TI e podem atuar remotamente. Empresas russas também se deslocaram.

Por causa das sanções à Rússia, abriram-se possibilidades de negócios. Relatórios internacionais apontam que países ex-soviéticos e simpatizantes são usados também para burlar as restrições.

A capital Ierevan tornou-se uma cidade mais movimentada, com cafés e restaurantes repletos de jovens de dia e à noite. Dos 3 milhões de habitantes do país, metade vive nessa região.

Em 2022, o PIB da Armênia cresceu 12,6%, enquanto a média global foi de 3,6%. Kenobyan diz que as principais contribuições foram dos setores de TI e de finanças.

Mas enquanto a capital enriquece, os problemas envolvendo Nagorno-Karabakh aumentam. Concentrando gastos e estratégias na guerra contra a Ucrânia, a Rússia deixou de ser mediador ativo no conflito entre Armênia e Azerbaijão. Os armênios dizem que os ataques azeris — do Azerbaijão — ficam mais intensos de acordo com os embates na Ucrânia.

O governo de Baku também ganhou força econômica por causa da guerra da Rússia contra a Ucrânia. Após as sanções a Moscou, o Azerbaijão passou a ser fonte e canal de gás e petróleo aos europeus.

Estados Unidos e Conselho Europeu aproveitaram o espaço para marcar presença estratégica e tentam tomar a frente na negociação da paz.

Os ministros das Relações Exteriores de Armênia, Azerbaijão e Rússia — Ararat Mirzoyan, Jeyhun Bayramov e Sergey Lavrov, respectivamente — se encontraram ontem (19) em Moscou. Lavrov afirmou que a Rússia vai trabalhar para a estabilização no sul do Cáucaso. Mirzoyan destacou que o corredor de Lachin não está sob controle da Rússia, como previa o acordo de cessar-fogo assinado em 2020. Uma reunião com o presidente russo, Vladimir Putin, deve ocorrer na próxima semana.

O impacto da guerra russo-ucraniana em Artsakh é bastante visível porque o Azerbaijão fica mais agressivo quando o lado russo fica mais ocupado na guerra. Vemos que os soldados da missão de paz reagem com mais suavidade às violações do Azerbaijão do que antes da guerra.
Artak Beglaryan, conselheiro do ministro de Estado de Artsakh

Armênios falam em novo genocídio

As fronteiras com Azerbaijão e Turquia são fechadas desde a independência da Armênia, reconhecida em 1991. Em mais de 30 anos, a primeira vez em que a fronteira entre Armênia e Turquia foi aberta foi em fevereiro, após um forte terremoto que deixou cerca de 50 mil mortos na Turquia e na Síria.

Armênia e Turquia têm um passado de confrontos, incluindo o chamado genocídio armênio — quando, entre 1915 e 1923, o decadente Império Otomano, que deu origem à Turquia, promoveu um massacre da minoria armênia. Calcula-se que 1,5 milhão de armênios foram mortos.

O termo genocídio foi criado depois, em 1944, pelo jurista polonês Raphael Lemkin — que o definiu como a destruição de um grupo étnico, sendo crime no direito internacional. A Turquia rejeita o termo e argumenta que estava em guerra.

No mês passado, durante as manifestações em Ierevan pela memória dos mortos nesse episódio histórico, foram estendidas bandeiras de cerca de 30 países que reconhecem o genocídio armênio. O governo brasileiro não o fez — apenas o Senado, em 2015.

A Turquia e o Azerbaijão são parceiros e se consideram "irmãos". Na disputa por Nagorno-Karabakh, o Exército azerbaijano recebeu reforço de armamento turco — o que foi decisivo para a vitória em 2020.

Os armênios afirmam que o Azerbaijão promove novo genocídio agora, ao isolar Nagorno-Karabakh. Em 23 de abril, véspera do dia de memória do genocídio, na capital, o partido nacionalista Federação Revolucionária da Armênia fez um protesto da Praça da República, com discursos inflamados contra o governo e queima das bandeiras da Turquia e do Azerbaijão.

Bares e estabelecimentos de Ierevan exibem as bandeiras dos países inimigos riscadas e também a bandeira de Artsakh estendida e mapas em que Nagorno-Karabakh faz parte da Armênia. Longe dos confrontos, jovens armênios alegam que não estão em guerra, e sim sendo atacados. "O discurso de ódio certamente não é o caminho para a resolução do atual conflito", diz Rafael Balukian, presidente da UGAB Brasil (União Geral Armênia de Beneficência).

Há uma preocupação crescente com a escalada da violência, apesar das negociações. Uma jornalista que vive em Ierevan lembrou que, com o tempo quente, é mais provável que os ataques se intensifiquem — já que o deslocamento no inverno é mais dispendioso.

Manifestantes queimaram bandeiras do Azerbaijão e da Turquia na véspera do dia da memória do genocídio armênio em Ierevan - Davit Hakobyan/UGAB Brasil - Davit Hakobyan/UGAB Brasil
23.abr.2023 - Manifestantes queimaram bandeiras do Azerbaijão e da Turquia em ato pela memória do genocídio armênio
Imagem: Davit Hakobyan/UGAB Brasil

*A jornalista viajou a convite da UGAB Brasil (União Geral Armênia de Beneficência)