Gaza: '45 pessoas abrigadas, comendo um pão por dia e achando água no chão'
O professor palestino Rafat Alnajjar, 28, está há dias com dificuldades de receber notícias da família desde que os bombardeios começaram na Faixa de Gaza. Morando no Brasil há três anos, Rafat conta que a família quase não consegue se alimentar e tentam sobreviver com o mínimo.
"Eles estão comendo um pão por dia porque não tem muito. Tentam encontrar água no buraco do chão, mas não dá conta para todo mundo, não dá para tomar banho nem lavar nada, é só para beber mesmo"
O professor afirma que os parentes não conseguem falar com ele com frequência, já que não há luz elétrica e nem internet estável na região.
"Eles não conseguem carregar o celular e não tem como se conectar no wi-fi. Até isso foi cortado. Às vezes, eles conseguem carregar o telefone com a bateria de carros e utilizam os dados móveis para avisar que estão vivos. Eles estão em casa, no norte de Gaza, porque realmente não tem mais para onde ir", disse ele ao UOL.
Na sexta-feira (13), após impor um cerco total a Gaza cortando luz e água, Israel ordenou que população deixasse a área norte do território, onde está a família de Rafat. No entanto, o professor diz que eles permaneceram na cidade por falta de alternativa. "Não tem lugar para ficarem no sul de Gaza, não tem condução. Não tem como eles saírem de lá."
Segundo Rafat, que tem 10 irmãos, a casa dos pais hoje abriga cerca de 45 pessoas. Dessas, 12 são crianças com menos de 7 anos.
"Alguns familiares tiveram a casa bombardeada e estão se refugiando com os meus pais. Uma tia do meu pai morreu em um desses ataques. Ela e todos os filhos que estavam na casa. Uma tia minha, irmã da minha mãe, também teve a casa bombardeada, mas graças a Deus ela não estava no momento e conseguiu sobreviver. Agora, ela se mudou para a nossa casa", conta ele.
Ainda que esteja abrigando dezenas de pessoas, o apartamento onde moram os pais de Rafat é composto apenas por dois cômodos, uma sala e uma cozinha. "Meu primo mandou uma mensagem para mim dizendo que queria deitar direitinho, esticar o corpo para descansar, mas que não consegue porque tem muita gente."
Em São Paulo, onde reside desde 2019, Rafat permanece com o celular em mãos na expectativa de receber notícias da família. "Eles dizem que estão bem, mas que em qualquer momento podem ir embora desse mundo. Estão carregando o coração nas mãos."
A quilômetros de distância, o professor relata noites mal dormidas repletas de preocupação.
"Quando tudo começou, eu passei mal. Fiquei sem comer, sem dormir, com muito medo. Mas depois o corpo foi acostumando. Teve um dia que só consegui dormir às 4h da manhã e acordei às 7h para saber se tinha notícias deles. É complicado ficar longe e não conseguir fazer nada para eles. É muito difícil também acompanhar as notícias porque vejo o mundo inteiro contra eles, mesmo que sejam eles quem estão sendo assassinados. Isso machuca tanto quanto as bombas."
Até agora, Rafat já se despediu de pessoas queridas incontáveis vezes.
Já perdi muita gente, entre familiares e amigos. Não consigo contar o número de pessoas que morreram. Rafat Alnajjar
Trazer a família para o Brasil, por sua vez, não parece uma possibilidade palpável. "Para eles saírem da cidade de Gaza, não tem condução. Para onde vão sair? Quem vai pagar? Além disso, eles não têm condições de arcar com os custos de uma passagem para o Brasil - e nem eu. Isso dói demais. Tenho irmãos mais novos que precisam estudar. Até o momento, não apareceu nenhum tipo de ajuda, nem de governos, nem de ninguém."
Vinda ao Brasil
Rafat é formado em matemática e educação, e deixou Gaza no final de 2019, na expectativa de construir uma nova vida. "Não escolhi o Brasil, foi o Brasil que me escolheu", diz ele, que não tinha planejado como destino o país sul-americano.
O professor cruzou a fronteira com o Egito pela passagem de Rafah, onde hoje brasileiros aguardam liberação para serem repatriados. "Para conseguir sair da Faixa de Gaza, um milagre tem que acontecer", diz ele.
Rafat afirma que o tempo de espera para conseguir aprovação para deixar o local pode durar meses — seja para uma viagem de férias ou imigração. "Fiquei cerca de um mês esperando a minha vez e depois quase cinco dias na fronteira passando papel de um lado para outro. Quando atravessei, levei 18 horas para chegar no Cairo em um trajeto que, normalmente, duraria 5 horas, mas a cada quilômetro era parado pelas autoridades."
No Egito, Rafat permaneceu um mês e depois embarcou para a Turquia, onde ficou um ano e meio antes de vir ao Brasil. "Não conhecia ninguém aqui, não sabia nada sobre o país. Foi complicado. Aí consegui alcançar alguém que fala meu idioma e comecei a receber orientações de como funcionavam as coisas. Comecei a minha vida do zero."
Atualmente, Rafat trabalha como professor de árabe e caligrafia. Desde que deixou Gaza, ele não pôde mais rever a família.
Israel x Hamas
Cerca de um milhão de pessoas tiveram de abandonar suas casas na Faixa de Gaza desde o início da atual guerra entre Israel e o grupo extremista Hamas, segundo a Agência da ONU para os Refugiados Palestinos (UNRWA).
O último levantamento da instituição, publicado na quarta-feira (18), indica que 3 mil pessoas foram mortas em Gaza e outras 12,5 mil ficaram feridas. Os dados foram disponibilizados pelo Ministério da Saúde da Palestina. Na Cisjordânia, há registro de ao menos 61 mortes de palestinos.
Em Israel, os ataques do Hamas causaram a morte de 1,3 mil pessoas e deixaram outras 4.229 feridas, de acordo com o OCHA (Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários). O colunista do UOL Jamil Chade divulgou que ao menos 199 israelenses e estrangeiros estão sendo mantidos em cativeiro em Gaza. A mãe de uma das vítimas, a jovem Mia Schem, que aparece em vídeo como refém do Hamas, pediu ajuda para trazê-la de volta.
Ontem, a proposta costurada pelo Brasil para que fosse estabelecida uma pausa humanitária em Gaza foi derrubada em reunião do Conselho de Segurança da ONU após veto dos Estados Unidos. O texto teve apoio de 12 dos 15 países que compõem o comitê.