Estilhaço de bomba e energia solar: como vivem brasileiros na Faixa de Gaza
Brasileiros que vivem na Faixa de Gaza e esperam autorização para serem repatriados afirmam que, nos últimos dias, sofrem com falta de alimentos, oferta de "água salgada" e imprópria para consumo, celulares carregados em baterias de carro, abastecimentos com energia solar e estilhaços de bombas do lado de fora das janelas.
O que aconteceu
O comerciante Hassan Rabee, 30, saiu de São Paulo para visitar a mãe na Faixa de Gaza no final de setembro e não conseguiu mais sair de lá. Com a intensificação dos bombardeios, ele, a esposa e suas duas filhas vivem agora com outros 18 familiares que vieram do norte de Gaza e se acomodaram na casa da mãe dele, em Khan Yunis, no sul do território.
Rabee afirma que o dia a dia é de sofrimento, mesmo em um local monitorado pela Embaixada do Brasil. "Ir para a rua fazer compras é muito difícil e arriscado. A chance de sair e um bombardeio ocorrer ao lado é grande. A gente fica assustado", diz. "Vocês não estão vendo as coisas como realmente são. Estamos há 20 dias sem energia, bebendo água que não é tratada."
"Os bombardeios estão bem piores, não existe segurança", diz Rabee. Segundo ele, os piores momentos são os bombardeios que ocorrem próximos ao prédio em que estão: "Houve dois bem perto de nós, muita gente ficou ferida e a gente assistiu isso". O embaixador do Brasil na Palestina, Alessandro Candeas, afirmou que as explosões atingem prédios e imóveis ao redor das casas protegidas, assustando a população.
Vimos pela janela bastante gente ferida, as janelas ficaram todas quebradas. Em outro momento, uma casa vizinha foi atacada. Parecia uma chuva de pedaços de concreto vindo em nossa direção. Nos últimos dias, piorou bastante.
Hassan Rabee, brasileiro-palestino na Faixa de Gaza
Crise humanitária
Segundo o embaixador do Brasil em Gaza, os caminhões que chegam ao território são insuficientes para abastecer toda a população. Ele afirma que, hoje, passam menos de 20 caminhões com insumos por dia. Antes do conflito, eram cerca de 200 veículos atravessando a fronteira.
A falta de alimentos, medicamentos e água deixa a população exposta a níveis mais intensos de precarização. Rabee relata que, da última vez em que foi à feira, viu crianças passando fome e pedindo dinheiro. "Havia filas em padarias para comprar pão. Vi muita gente que não conseguiu comprar porque tinha acabado."
O medo dos ataques também afeta o dia a dia das crianças em Gaza. Rabee é pai de duas meninas de 3 e 5 anos. "No começo, falamos que eram fogos em jogos de futebol. Mas hoje elas estão muito assustadas. Quando passam os aviões, elas se escondem atrás do sofá e fecham as janelas. Elas se sentem protegidas com as janelas fechadas."
Antes de a comunicação no território ser cortada, na sexta-feira (27), Rabee disse ao UOL que ele e família estavam ansiosos para deixar o local. "Vivemos todos os dias com a esperança de sair". Depois, a reportagem não obteve mais contato com ele e com os demais brasileiros-palestinos entrevistados.
Rabee se preocupa com a mãe, de 56 anos, e com pessoas mais velhas sem familiaridade com celular e equipamentos tecnológicos. "A comunicação está completamente parada por aqui. Eu consegui ligar a internet. A gente carrega o celular com a bateria do carro, carregamos as coisas com energia solar. Mas é um sofrimento ter que carregar duas baterias grandes".
Repatriação
O fechamento da fronteira do Egito com Rafah, na Faixa de Gaza, e as negociações entre Israel e Egito seriam os principais entraves para a repatriação dos brasileiros-palestinos. "Há duas semanas, [a fronteira] está fechada porque foi bombardeada", disse o embaixador Alessandro Candeas.
A autorização do Egito para a entrada dos brasileiros naquele país também é apontada pelo embaixador como uma dificuldade. "Há uma coordenação de segurança entre Israel e Egito, porque tudo é monitorado, tudo é complexo. Os dois países precisam aprovar a saída de brasileiros e de pessoas de outras nacionalidades".
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Quero receberCandeas disse ainda que o presidente Lula tem conversado com os presidentes de Egito e Israel. "[Esperamos] que esses países entrem em acordo para a saída dessas pessoas", afirmou. Segundo o professor de direito internacional da Faculdade de Direito da USP Paulo Borba Casella, o trabalho da embaixada brasileira demonstra "vontade política de colocar os meios à disposição".
Houve várias tentativas de negociação por parte do governo brasileiro com Egito e Israel para trazer os brasileiros. Mas eles estão presos, literalmente, em uma ratoeira.
Paulo Borba Casella, professor de Direito Internacional da USP
Um dos principais entraves à repatriação é a ausência de autorização do Egito. Casella afirma que o país se preocupa "com pessoas que possam entrar como refugiados".
Mesmo no sul de Gaza, os brasileiros continuam em risco. "Eles veem bombas estourando todos os dias dos lugares em que estão. Essa ordem de Israel para que se desloquem faz com que civis possam se tornar alvos. Israel tem o direito de se defender, de existir. Mas não colocando em risco toda a população da Gaza."
Acolhimento
"São pessoas que enfrentam os mais diversos dramas humanos", diz Ualid Rabah, presidente da Federação Árabe Palestina no Brasil. Segundo ele, muitos chegaram lá sem dinheiro para ter o acolhimento e o aconchego de familiares. A situação é ainda mais dramática entre as mulheres sem recursos para recomeçar a vida.
Rabah disse que está em contato com o governo para discutir a chegada dos brasileiros ao território nacional. "Vamos discutir os elementos mais importantes para que haja um acolhimento dessas pessoas, que estão numa tragédia material e humana."
Após a repatriação, o grupo deve enfrentar ainda dificuldades relacionadas a saúde, habitação e renda. "Esperamos que sejam imediatamente cadastradas no SUS (Sistema Único de Saúde), especialmente as crianças. Precisamos verificar se essas pessoas têm doenças graves para que não fiquem vulneráveis. Para um futuro mais distante, é importante pensar nas condições de trabalho."
Casella, que também coordena o CEPIM (Centro de Estudos sobre a Proteção Internacional de Minorias) da USP, diz que será necessária organização para que não se repitam os mesmos problemas enfrentados pelos refugiados afegãos. "Quem vai garantir um lugar para dormir, quem vai garantir o mínimo de dignidade?", questiona.
Além da gestão da ponta da saída, essas pessoas precisam de um atendimento médico e o mínimo de acolhida. As pessoas querem achar um lugar para trabalhar e viver. É preciso evitar o que aconteceu com os afegãos e se pensar na ponta de chegada.
Paulo Borba Casella, professor de Direito Internacional da USP
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