Decisão da Fifa de autorizar uso do véu em competições oficiais pode significar retrocesso
Jean Philippe Acensi
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Ali Jarekji/Reuters
O uso do véu foi liberado para jogadoras de futebol. Como os outros esportes vão reagir?
A decisão da Fifa (Federação Internacional de Futebol) de autorizar as mulheres a usarem o véu em competições oficiais, a alguns dias da abertura dos Jogos Olímpicos de Londres, é uma medida histórica, excepcional e sem precedentes cujas consequências deverão ser avaliadas, sobretudo sobre a convivência entre diferentes comunidades em nossas cidades, particularmente na França. Ao mesmo tempo, a primeira participação de uma atleta saudita nesses Jogos Olímpicos mostra uma forte vontade do mundo árabe de propor, ou de impor, um outro projeto de sociedade através do esporte e da mulher.
Esses grandes acontecimentos terão repercussões certas, tanto nas práticas esportivas e no espaço público (associações, escolas...) quanto na própria condição da mulher. Essas decisões podem também agravar as tensões existentes nos bairros franceses e europeus, entre as comunidades, as mulheres e os homens, em um contexto de ascensão do nacionalismo e do comunitarismo. Com isso, a Fifa está dando aos militantes extremistas uma chance excepcional, através do futebol, de apresentar um contra-projeto de sociedade com uma visão retrógrada da mulher.
Lembremos que o espaço esportivo é um lugar de abertura onde os símbolos religiosos não têm lugar, onde sua força reside justamente na diversidade dos praticantes (origens e níveis). Cabe então imaginar quais serão as consequências dessa decisão dentro dos clubes de futebol. A possibilidade de amanhã usar um véu, de forma mais ou menos obrigatória, marcará uma diferença notória entre praticantes e tornará complexo o espaço único de encontros que ainda hoje o clube representa. Um presidente de clube de futebol do subúrbio de Lille, onde um quarto dos membros é de origem magrebina, me explicou recentemente: "Com essa regra, haverá uma grande pressão sobre o clube por parte das famílias ou de grupos externos para que jovens meninas possam jogar com o véu, o que tornará delicado o trabalho dos educadores".
Os defensores dessa regra, como o presidente do COI (Comitê Olímpico Internacional), Jacques Rogge, apresenta o argumento da ampliação da prática entre as mulheres no mundo muçulmano. Mas de que prática estão falando? A que nos propõe o secretário do Esporte do reino da Arábia Saudita, que anuncia que, para participar dos Jogos Olímpicos, toda atleta deverá se comprometer a respeitar três regras: a primeira condição é de que ela esteja vestida segundo as normas da sharia que proíbe a nudez, a segunda, que ela tenha a autorização de um parente próximo, e que ela esteja acompanhada dele.
O que vai acontecer na França? O espaço público tem sido continuamente colocado sob pressão nos últimos anos. Quer se trate dos pedidos de horários reservados às mulheres nas piscinas ou de clubes comunitários que estão ressurgindo, o fator religioso tem estado cada vez mais presente no ambiente dos clubes. Futuramente, os pedidos e as pressões junto às direções de esportes nas cidades poderão ser feitos dentro de diferentes locais tais como clubes esportivos, associações, ou até estabelecimentos escolares, onde os adolescentes apoiados por adultos poderão se valer dessa medida da Fifa.
Como os outros esportes vão reagir? Essa regra poderia de fato inspirar outras federações internacionais... Por que a Federação Internacional de Handebol, que organizará o próximo mundial no Qatar, em 2015, não tomaria uma medida parecida? Uma diretora de um clube de handebol do subúrbio parisiense ressaltou, entre outras coisas, que suas atletas, quando voltaram de um estágio no Mali, começaram a usar o véu, sendo que não o faziam antes.
Estaríamos assistindo tristemente a um considerável retrocesso na emancipação das mulheres que até hoje era preservada em ambientes esportivos? "Estamos perdendo a batalha da universalidade do esporte. Por trás dessa decisão se escondem o desprezo pelas mulheres e a supremacia do dinheiro", acredita Annie Sugier, presidente da Liga do Direito Internacional da Mulher.
Frente a essa situação de emergência, militantes da convivência entre diferentes comunidades, educadores, pais, pensadores e líderes devem se unir para propor alternativas a essa regra no mínimo preocupante. Caso contrário, as práticas esportivas poderão se tornar um espaço controlado por uma propaganda que defende um modelo de sociedade de um novo gênero, bem distante de nossos valores de liberdade, igualdade e fraternidade.
Tradutor: Lana Lim
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