Não estamos inventando, só reconhecendo o que sempre existiu, diz tabeliã que lavrou união estável de trio em SP

Nicolas Bourcier

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As lendas resistem. Entre os índios guarani, Tupã é o nome do deus mítico e todo-poderoso, o criador do Universo e da luz. O Sol é sua morada.

Antes da criação dos humanos, Tupã se casou com a mãe do Céu, a deusa Araci, que então morava na Lua. No dia seguinte à sua união, eles desceram para a Terra para gerar rios e mares, florestas e estrelas. Foi só depois que Tupã criou, com ajuda de argila, água e sangue, o primeiro casal de humanos, uma mulher e um homem, um pouco à sua imagem. Conhecido por ser sedutor e apreciador dos prazeres da carne, Tupã teve muitos filhos. Junto com Araci, eles encorajaram os humanos a viverem em paz, amando e procriando.

Hoje Tupã é o nome de uma pequena cidade brasileira de 65 mil habitantes ao sul do país, entre São Paulo e a fronteira paraguaia, no centro das regiões guarani anteriores à colonização. Uma cidade de aspecto banal, de jovens e universitários, cercada por infinitos campos de soja e cana de açúcar.

Coincidência divina? Tupã acaba de criar um novo gênero de casal: uma união civil entre três pessoas, celebrada por uma agente do poder público. No caso, um homem e duas mulheres do Rio de Janeiro unidos por uma tabeliã da cidade, Cláudia do Nascimento Domingues.

A notícia foi divulgada no final de agosto, três meses após a assinatura desse contrato patrimonial. Como era de se esperar, ela suscitou a ira dos poderes tutelares religiosos, já traumatizados com o reconhecimento, no dia 5 de maio de 2011, da união civil entre dois homossexuais pelo Supremo Tribunal de Brasília.

"Não me cabe julgar se essa situação é correta ou não", declarou Cláudia do Nascimento Domingues, explicando que nada na lei brasileira proibia tal união. "O modelo descrito pela lei corresponde a duas pessoas", ela explica. "Mas em nenhum lugar está escrito que a formação de uma família com mais de duas pessoas é crime. Ao registrá-la, estou somente confirmando que eles se reconhecem como uma família. Não estou casando ninguém, nem lhes conferindo nenhum direito. Isso é da alçada do juiz." E diz ainda: "Essas relações não são novas, elas simplesmente não foram reconhecidas".

Para dizer um mínimo. O trio do rio sofreu várias recusas junto a diferentes tabeliões antes de procurar Cláudia do Nascimento Domingues. Ela mesma criou certa fama enquanto doutoranda na Universidade de São Paulo. Especialista em direito da família, há anos ela se interessa por aquilo que chama de "afetividade múltipla" (ou "poliafetiva") --o fato de amar mais de uma pessoa no mesmo momento. "Não sei se esse termo será o mais adequado", ela explica à rede BBC Brasil, "mas foi o que escolhi para usar em meus estudos".

Nenhuma das três pessoas dessa união de Tupã quis atender aos pedidos de entrevista da imprensa. Sabe-se somente que elas abriram uma conta bancária conjunta, o que, de um ponto de vista estritamente jurídico e processual não é repreensível pela lei. Nathaniel Santos Batista Junior, um jurista que ajudou a redigir o documento dessa união civil, afirmou que a ideia havia sido proteger os direitos das três partes em caso de separação ou de falecimento de um dos parceiros.

"Não estamos inventando nada", diz a tabeliã de Tupã, "estamos só reconhecendo o que sempre existiu". No caso dos três cariocas, ela afirma que eles vivem juntos "há muito tempo e dividem as contas".

É isso. O argumento faz apelo expressamente ao conceito de "união estável", introduzido no código civil brasileiro em 2002. Foi ele que abriu caminho para a decisão do Supremo Tribunal em 2001. Presente na Constituição de 1988 que reconhece como "entidade familiar uma união estável entre um homem e uma mulher", os altos magistrados reconheceram que essa definição de família tinha um "valor de exemplo", mas que não era "completa". Belo exemplo de antecipação!

Com essa decisão histórica --o Brasil é o maior país católico do mundo--, os casais homossexuais em "união estável" conquistaram exatamente os mesmos direitos que os casais heterossexuais. Apesar da recusa dos magistrados do Supremo Tribunal de avalizar o casamento homossexual, alguns juízes brasileiros não hesitaram nos últimos meses em converter uniões civis de pessoas do mesmo sexo em união marital.

Outro sinal dos tempos: um homem homossexual do Estado do Rio Grande do Sul obteve, poucas horas antes do anúncio do ménage à trois de Tupã, um complemento de "auxílio-maternidade", depois de obter o direito de adotar uma criança. Ele havia entrado com um recurso junto às autoridades locais depois que uma mulher lésbica, ela mesma em união civil, recebeu essa ajuda financeira temporária.

"Se vai ser melhor ou pior, isso não tem importância, a maneira como antes consideraríamos uma família não é necessariamente aquela como vamos considerar uma família hoje", acredita Cláudia do Nascimento Domingues. Outros grupos de "afetividade múltipla" teriam entrado em contato com a tabeliã. Os casos envolveriam outro trio, dessa vez composto por uma mulher e dois homens, e um quinteto de dois homens vivendo com três mulheres. Tupã continua a render.

Tradutor: Lana Lim

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