Ex-mordomo do papa Bento 16 enfrenta julgamento histórico no Vaticano

Philippe Ridet

  • AFP

     Paolo Gabriele, ex-mordomo do papa Bento 16 que deu origem ao caso VatiLeaks, deverá responder por furto qualificado

    Paolo Gabriele, ex-mordomo do papa Bento 16 que deu origem ao caso VatiLeaks, deverá responder por furto qualificado

Paolo Gabriele, 46, ex-mordomo do papa Bento 16, que comparecerá às 9h30 deste sábado (29) diante do tribunal do Vaticano por furto qualificado, tem tudo para ser um réu ideal: um servidor devoto da Igreja tomado por uma espécie de loucura redentora. Muito pio, ou até místico, ele se dizia "infiltrado" pelo Espírito Santo. Discreto, ou até apagado, ele nunca se destacou entre os 594 outros habitantes do menor Estado do mundo.

Mas uma raiva muda fervia dentro dele. O soberano pontífice que ele auxiliava das 6h30 da manhã até a noite, ajudando-o a se vestir, servindo suas refeições e o acompanhando no papamóvel, estaria "mal informado" sobre os complôs que estavam sendo tramados pelas suas costas. O Vaticano? "O reino da hipocrisia", ele disse em uma entrevista à cadeia de televisão La7.

"Ao ver o mal e a corrupção em toda parte na Igreja", ele disse, "tive certeza de que um choque, até midiático, seria saudável para recolocar a Igreja nos trilhos certos." Um dos especialistas diagnosticou em sua personalidade "aspectos paranoicos que escondem um desejo não satisfeito de consideração e de afeto".

Fã de histórias de espionagem, "Paoletto" começou a subtrair documentos que passavam por suas mãos, para fotocopiá-los. Depois entrou em contato com um jornalista, Gianluigi Nuzzi, a quem entregou cartas confidenciais e documentos originais sobre episódios recentes da movimentada vida da Igreja, como aqueles relacionados à demissão de Dino Boffo de sua função de diretor do jornal dos bispos "Avvenire", em 2009, ou à transferência-punição em 2011 de Dom Vigano, ex-núncio. Esses vazamentos primeiro renderam a Gianluigi Nuzzi um programa de televisão, depois um best-seller: "Sua Santità".

Logo batizado de "VatiLeaks" pela  imprensa italiana, o caso levou a gendarmaria vaticana a iniciar uma caça ao "corvo" que deverá concluir com a prisão, em maio, de Paolo Gabriele, em cuja casa foram encontrados elementos comprometedores (um cheque de 100 mil euros endereçado ao próprio papa, uma pepita de ouro e uma valiosa edição da "Eneida" de 1581). Cinquenta e quatro dias de cativeiro em uma cela do Vaticano e vários interrogatórios mais tarde, Paoletto confirmou as suspeitas que pesavam sobre ele.

Desse homem que comparecerá ao tribunal juntamente com um técnico em informática italiano, Claudio Sciarpelleti, processado por receptação, não se verá nada, ou muito pouco. O Vaticano, que se vangloria de ter exercido transparência nessa questão, não autorizou nem gravação, nem captura de imagens durante todo o julgamento. Os dez jornalistas selecionados para cobri-lo - dois do "L'Osservatore Romano" e da Radio Vatican, outros oito escolhidos por sorteio para o resto da imprensa - não poderão enviar nenhum tuíte durante as sessões nem usar a primeira pessoa do singular ao informar seus colegas.

"É um julgamento histórico", afirma Gian Maria Vian, diretor do "L'Osservatore Romano", "porque não tem nenhum equivalente na história recente da Santa Sé e por ser totalmente coerente com a vontade do papa de enfrentar todos os problemas da Igreja". "Espero simplesmente", explica Gianluigi Nuzzi, "que Paolo Gabriele nos explique por que, na condição de homem de confiança, ele quis expor os bastidores do Vaticano".

Diante de um colegiado de três juízes laicos, Paolo Gabriele não deverá ter de reconhecer mais uma vez os fatos. Além disso, o julgamento poderá ter somente uma sessão. Embora histórico, ele deverá ser interrompido para dar lugar aos outros eventos previstos para o mês de outubro, tais como a abertura do sínodo dos bispos ou o lançamento do Ano da Fé. Se ele for condenado - ele pode pegar de 4 a 8 anos de prisão - , o réu poderá ser perdoado por Bento 16. "Mas não tão cedo", explicam no Vaticano. "O papa não quer ser suspeito de estar querendo abafar esse caso".

Isso porque, assim como nas histórias de espiões, que tanto enlouquecem Paoletto, o VatiLeaks está cheio de gavetas. O ex-mordomo afirmou que uma rede de "cerca de vinte pessoas em diferentes órgãos" do Vaticano estava envolvida. Uma investigação paralela confiada por Joseph Ratzinger diretamente a três cardeais identificou vários cúmplices, cujas identidades ainda estão protegidas pelas iniciais "X", "W"...

No dia 15 de julho, o website do jornal alemão "Die Welt" publicou uma reportagem de seu vaticanista, Paul Badde, questionando várias pessoas do círculo direto de Bento 16. Paolo Gabriele teria sido apenas um subordinado, um instrumento da luta surda e não menos violenta entre adversários e partidários do influentíssimo cardeal Tarcisio Bertone, número um da secretaria de Estado. Como se não soubesse do que se trata essa história, Paoletto, que aguarda aflito em prisão domiciliar, começou a pintar...

Tradutor: Lana Lim

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