Suspeito de espionar para Israel, pássaro fica dias sob custódia no Líbano
Benjamin Barthe
-
Jack Guez/AFP
Abutre recebe cuidados em hospital para animais selvagens próximo a Tel Aviv, Israel
Imagine um cineasta que cisme em cruzar o roteiro de "Os Pássaros", de Hitchcock, com o de "OSS 117", a paródia de filmes de espionagem com Jean Dujardin, e que tenha decidido filmar esse improvável script em uma das fronteiras mais perigosas do Oriente Médio.
A história seria sobre um pássaro acusado de espionagem, um vilarejo árabe e uma reserva natural israelense, com o Hezbollah em segundo plano e os capacetes azuis da ONU no papel do detetive de coração grande. Não parece muito certo que um thriller rural como esse fosse ter grande audiência, no entanto essa é uma história mais do que verdadeira.
No final do mês de janeiro, moradores de Bint Jbeil, um vilarejo ao sul do Líbano, notaram em suas colinas uma ave de rapina de ar suspeito. O animal, com uma envergadura de cerca de 2 metros, levava etiquetas numeradas em suas asas e uma pequena antena atravessando sua plumagem.
Sem hesitar, os libaneses pegaram o suspeito e o submeterem a uma revista. Eles descobriram um pequeno aparelho eletrônico, preso perto de sua cauda e, mais intrigante ainda, um anel em uma de suas patas, no qual se lia a inscrição "Tel Aviv Univ Israel".
Seria um pássaro-espião a mando da "entidade sionista"? Durante alguns dias, foi o que muitos pensaram. No sul do Líbano, uma região que apoia a milícia pró-iraniana do Hezbollah, situada muito próxima do inimigo israelense, não se brinca com a segurança. Então pelo menos enquanto era feita a investigação, o animal ficou contido. Mas logo a notícia de sua captura chegou até a reserva natural de Gamla, no planalto do Golã, um território sírio ocupado por Israel desde 1967, alguns quilômetros mais ao sul.
Uma cena de pastelão
Ao verem as fotos publicadas por um site libanês, onde aparecia a ave com o bico e as garras amarradas, os seguranças se assustaram: aquele era um animal deles, um grifo ou abutre-fouveiro, uma espécie ameaçada de extinção no Oriente Médio e alvo de um programa de reintrodução, pilotado pela Universidade de Tel-Aviv.
O pitoresco prisioneiro de Bint Jbeil crescera na Espanha antes de ser confiado há um mês à reserva de Gamla. Obviamente pouco familiarizado com a geopolítica local, ele se aventurou em território hostil.
Enquanto isso, seus raptores reconheceram o óbvio: a ave de rapina não estava em uma missão. O pequeno aparelho colocado sob sua plumagem era um simples transmissor, que permite que os ornitólogos de Tel-Aviv acompanhem e rastreiem seu protegido, não uma câmera ou gravador em miniatura. Então tomaram a decisão de soltar o animal.
Contada dessa forma, a história pode lembrar um pastelão. Mas isso seria abstrair rápido demais o contexto. Bint Jbeil tem alguns motivos para desconfiar de seu vizinho. Durante a guerra de 2006 entre Israel e o Hezbollah, a cidade foi parcialmente arrasada pela artilharia do primeiro.
Os soldados do "partido de Deus", emboscados em túneis, tiveram então a impertinência de resistir contra as unidades de elite das forças armadas de Israel. Até o último minuto do conflito, foguetes foram atirados contra a Galileia. Para o estado-maior israelense, o lugar deveria ser punido. E foi. Assim como no filme de Alfred Hitchcock, onde uma nuvem de pássaros assassinos ataca um pequeno porto tranquilo da Califórnia, uma chuva de morteiros se abateu sobre Bint Jbeil.
Os dez anos que se seguiram foram mais calmos, mas, traumatizado pela semi-derrota de seus homens, Israel colocou todo o sul do Líbano sob escuta. Aparelhos de espionagem são descobertos com frequência, escondidos no meio do mato, nos arames farpados da fronteira e até mesmo, uma vez, incrustados em um rochedo de mentira.
Para evitar que esses "dedos-duros" sejam apreendidos, o Exército israelense não hesita em destruí-los à distância, o que às vezes resulta em feridos. Redes de colaboradores também foram desmanteladas e espiões foram desmascarados, até mesmo dentro do Hezbollah.
A propensão dos residentes do sul do Líbano à espionite aguda é produto derivado dessa guerra não declarada. Esse reflexo de defesa é ainda mais firme pelo fato de que os canhões são despertados em intervalos regulares, e durante algumas horas, morteiros voam acima da fronteira, reacendendo o trauma da guerra de 2006. Em seguida a Finul, a Força Interina das Nações Unidas no Líbano, intervém, contata as duas partes e traz de volta uma tranquilidade frágil.
Foi assim que terminou o caso do falso espião penado, com os capacetes azuis o buscando em Bint Jbeil antes de o levarem de volta ao planalto do Golã. Mas a história não conta se, depois desses reveses, o abutre azarado pediu para ser repatriado para a Espanha.
Tradutor: UOL
Receba notícias do UOL. É grátis!
Veja também
- Trabalhadores palestinos são vistos com suspeita nos assentamentos israelenses
- A caçadora de nazistas Beate Klarsfeld recebe cidadania israelense
-
- 'Não queremos árabes com nossas garotas judias': a polêmica patrulha nacionalista que age nas ruas de Jerusalém
- Israel envia migrantes africanos indesejados a outros países, aponta investigação da BBC