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Temos que ter senso de certo e errado sobre o Islã radical, diz autor de "Versos Satânicos"

Escritor Salman Rushdie posa para foto na divulgação de "Os Filhos da Meia-Noite" no Festival de Toronto - AP Photo/The Canadian Presss, Chris Young
Escritor Salman Rushdie posa para foto na divulgação de "Os Filhos da Meia-Noite" no Festival de Toronto Imagem: AP Photo/The Canadian Presss, Chris Young

Charles McGrath

Em Nova York (EUA)

19/09/2012 10h16

“Joseph Anton”, de Salman Rushdie, é um livro de memórias dos cerca de dez anos que ele passou escondido, sob proteção policial, depois que o aiatolá Ruhollah Khomeini pediu por sua morte em 1989, por seu romance “Os Versos Satânicos” ter sido considerado ofensivo ao Islã. O título do livro, formado pelos primeiros nomes de Joseph Conrad e Anton Chekhov, é o nome que ele usou enquanto estava sob a fatwa. No livro, que é escrito na terceira pessoa, Anton desponta como um personagem que Rushdie trata de modo tanto carinhoso quanto crítico.

O livro documenta cuidadosamente suas lutas políticas durante esse período e seus esforços para que a fatwa fosse suspensa, mas também descreve sua vida pessoal em grande detalhe, incluindo a separação de três casamentos: com Marianne Wiggins, Elizabeth West e Padma Lakshmi. (O primeiro casamento, com Clarissa Luard, terminou em 1987.)

A fatwa foi oficialmente suspensa em 1998, e desde que se estabeleceu em Nova York no início de 2000, Rushdie circula livremente. Na verdade, ele se tornou um frequentador dos lugares mais elegantes da cidade e um “animal de festa”.

Sobre a notícia recente de que uma fundação religiosa renovou a fatwa, ele escreveu por e-mail: “Eu não estou inclinado a aumentar essa manchete feia lhe dando muita atenção”. No mês passado, antes de iniciar uma turnê de três meses para promoção tanto do novo livro quanto da futura versão cinematográfica de seu romance de 1981, “Os Filhos da Meia-Noite”, ele discutiu “Joseph Anton” durante um almoço em um restaurante em Manhattan. O que segue é uma versão editada da conversa.

Isso tudo aconteceu há muito tempo. O que fez você decidir escrever a respeito agora, tantos anos depois?
Foi em grande parte uma questão de instinto. Por muito tempo eu não quis escrever este livro. Eu sentia que seria incômodo reviver emocionalmente aquela época e mergulhar nela. Mas eu sempre soube que teria que fazê-lo. Você sabe como é: se você tem a doença de ser escritor, há uma parte de você, mesmo nos piores momentos de sua vida, há uma parte sentada em seu ombro que diz “É uma boa história!” Foi por isso que mantive um diário naquele período. Eu imaginei que o peso dos eventos, a velocidade dos eventos, a complexidade do que estava acontecendo era tamanha que mesmo com a melhor memória do mundo não haveria como se lembrar de tudo em detalhes.

Por que na terceira pessoa?
Eu sempre achei que não queria que se transformasse em um diário, uma confissão ou um discurso. Eu não queria que fosse um livro de vingança, um livro de acerto de contas. Eu sabia tudo aquilo que eu não queria que fosse, mas não sabia o que queria. Toda vez que tentava, não funcionava e então eu o deixava de lado. Então eu percebi que uma das coisas que eu não gostava era a primeira pessoa, aquele interminável “eu”, coisas acontecendo “comigo”, e “eu senti”, “eu fiz”, “pessoas me disseram”, “me preocupei”. Era absurdamente narcisista. Então, a certa altura, eu pensei: “Vamos ver o que acontece se escrevê-lo como um romance, na terceira pessoa”. E no momento em que comecei a fazer isso, foi como uma espécie de “abra-te sésamo” que me deu o livro.

Esse artifício faz o livro às vezes parecer um romance ou, como você mesmo diz no livro, como um romance ruim de Rushdie, cheio de melodrama e coisas levemente surreais.
Uma das formas como o expressei para mim mesmo foi o de que minha imagem do mundo foi quebrada. Nós todos temos isso –nós todos temos um quadro do mundo em que vivemos, e acho que sabemos que forma ele tem e onde estamos nele. Outra palavra para isso seria sanidade. E então, de repente, ficou muito difícil saber que forma o mundo tinha e onde eu me encontrava nele, como agir. Todas essas decisões que tomamos e de repente eu não sabia nada. Outro nome para isso é insanidade. Eu acho que foi um período em que minha sanidade esteve sob pressão intensa, e eu não sabia o que dizer ou como agir. Eu estava literalmente vivendo dia a dia.

Se “Joseph Anton” é como um romance, não é apenas uma história kafkaniana sobre um sujeito forçado a se esconder. Também é uma espécie de tragicomédia conjugal, sobre um sujeito um tanto desafortunado como marido e amante. Você fornece muitos detalhes, especialmente sobre seu relacionamento com Marianne Wiggins, com quem você é bastante duro. As pessoas podem sentir que parte dos detalhes é desnecessária.
O que é desnecessário?  Eu tenho o tipo de ponto de vista de Rousseau de que se você vai escrever um livro como este –quero dizer, ninguém está fazendo você escrever. Se você vai escrever a respeito, conte o máximo de verdade que puder. Mas eu tentei ser justo. No caso de Elizabeth, ela leu o livro e disse que estava OK. No caso de Padma, eu contei para ela tudo o que estava nele sobre ela. Há uma coisa que ela me pediu para tirar, e eu tirei. E assim por diante. Mas eu não mostrei a Marianne.

Mas o livro também tem uma agenda maior. Ele visa documentar algo importante?
Eu me vi pego no que você poderia chamar de evento histórico mundial. Você poderia dizer que é um grande evento político e intelectual do nosso tempo, até mesmo um evento moral. Não a fatwa, mas a batalha contra o Islã radical, na qual isto foi apenas uma escaramuça. Há argumentos apresentados até mesmo por pessoas de mentalidade liberal, que me parecem bem perigosos, que são basicamente argumentos culturais relativistas: nós temos que deixá-los fazer isso porque é a cultura deles. Minha visão é não. Circuncisão feminina –isso é ruim. Matar pessoas por não gostar de suas ideias –é uma coisa ruim. Nós temos que poder ter um senso do certo e do errado que não seja diluído nesse tipo de argumento relativista. E se não pudermos, nós realmente deixamos de viver em um universo moral.

Quanto tempo o livro levou para ser escrito?
Dois anos e meio. E, considerando que tem cerca de 600 páginas, para mim foi rápido. Mas um livro como este é um pouco mais rápido de escrever, porque você sabe o que aconteceu. Uma das coisas que estavam bem claras para mim desde o início era que eu sabia qual era seu arco. Eu sabia qual seria a primeira cena e sabia qual seria a última cena: eu literalmente saindo e chamando um táxi, o retorno à vida comum, banal.

Você acha que o que aconteceu com você mudou algo?
Alguns dos muçulmanos britânicos agora dizem: “Nós estávamos errados”. Alguns deles por motivos táticos, mas outros estão realmente usando o argumento da liberdade de expressão: “Se queremos poder dizer o que quisermos, ele tem que ser autorizado a dizer o que quiser”. Então acho que aconteceu algum aprendizado.

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Você aprendeu algo útil durante seu tempo escondido?
Eu aprendi direção de contravigilância. Se você está em uma via expressa e deseja saber se está sendo seguido, o que você faz é variar enormemente sua velocidade. Você acelera a 160 km/h, então reduz para 50 km/h e depois acelera de novo. Em uma cidade, você dá muitas voltas contra o fluxo do tráfego. Você dá duas voltas na rotatória. Basicamente, você dirige como um idiota, e se outra pessoa estiver dirigindo como um idiota, há um motivo.

Que conselho você daria a alguém que se visse sob uma ameaça semelhante?
Dois conselhos, na verdade. Um tem a ver com a cabeça, e o outro é prático. A coisa na cabeça é: não faça concessão. É uma questão de autoconhecimento, saber quem você é e por que você fez o que fez. Defenda o que fez. A outra coisa é que se o fizesse de novo, eu me recusaria a me esconder. Eu diria: “Eu tenho uma casa, eu vou para casa. Proteja-me”. (Tradução: George El Khouri Andolfato)