Liberação de cassinos racha aliança de evangélicos com o centrão: 'Vício'
A oposição ferrenha da bancada evangélica à legalização dos jogos de azar no Brasil rachou a relação da direita e do centrão no Congresso.
O que aconteceu
Sempre alinhados em temas morais, como drogas e aborto, deputados evangélicos e do centrão se dividiram sobre a liberação dos jogos de azar. Enquanto os evangélicos votaram contra, o centrão votou com governistas e aprovou o texto na CCJ (Comissão de Justiça e Cidadania) do Senado depois de já tê-lo aprovado na Câmara.
Ao defender a proibição de apostas, a bancada apela para a moral cristã, cara ao eleitor evangélico. "Mesmo que a Bíblia não proíba os jogos de azar e bebida alcoólica, os fiéis são instruídos a se afastarem de ambientes assim", explica Raquel Sant'Ana, antropóloga e pesquisadora evangélica na Universidade Federal do Rio de Janeiro.
"É uma questão profundamente moral", disse ao UOL senador Eduardo Girão (Novo-CE), membro da Frente Parlamentar Evangélica. "Leva pessoas ao vício, que por sua vez leva muitos ao suicídio, destruindo famílias", diz.
Não se trata de medo de perder evangélicos, diz o senador Magno Malta (PL-ES), também da Frente Evangélica. "A questão é que a igreja é um 'hospital, e teremos mais doentes para tratar", disse ao UOL. "Mas o receio é que o Brasil se torne um paraíso para a contravenção."
Em ano eleitoral, a bancada evangélica não vai apoiar a liberação de cassinos. "Sempre será bom para a bancada se posicionar sobre o que seus eleitores consideram a defesa da moral cristã", diz o cientista político da USP Vinicius do Valle, diretor do Observatório Evangélico. "Se votasse pela legalização, opositores ou pastores poderiam explorar essa contradição, impactando a opinião dos fiéis sobre esses políticos."
Eleitores evangélicos já respondem a esse apelo em suas redes de contato. "Esta semana circularam muito as notícias sobre pessoas viciadas em aposta, como a enfermeira que desapareceu porque estava viciada no jogo do tigrinho", diz a antropóloga, que monitora grupos evangélicos no WhatsApp e Telegram. "Eles compartilham a informação sempre com alguma frase, como 'precisamos ficar atentos'."
Reverberou muito a ideia de que é preciso temer os danos dos jogos de azar. Isso move a pauta da família, gera coesão.
Raquel Sant'Ana, pesquisadora
Muitos religiosos se identificam mais com a moral cristã do que com a teologia. Muito do que faz a igreja é construir um jeito 'certo' de viver.
Raquel Sant'Ana, pesquisadora
Bancada ganha até quando perde
O plano do bloco é manter o tema em debate pelo máximo tempo possível. Depois de passar na CCJ, o projeto estava pronto para votação no plenário do Senado, mas uma manobra da bancada evangélica obrigou o texto a passar por nova rodada de discussões.
A ideia é levar o projeto para debate em outros colegiados. O senador Eduardo Girão (Novo-CE) quer que a proposta passe por três comissões: a de Assuntos Econômicos, a de Direitos Humanos e a de Segurança Pública. Já o presidente da Frente Parlamentar Evangélica, senador Carlos Viana (Podemos-MG), pediu uma audiência pública.
"A nossa estratégia é que a população tenha conhecimento do que está sendo proposto", afirmou Viana ao UOL. "Quem defende quer aprovar rapidamente, sem alarde, porque sabe que gera impacto. Nós queremos mais discussão."
Newsletter
PRA COMEÇAR O DIA
Comece o dia bem informado sobre os fatos mais importantes do momento. Edição diária de segunda a sexta.
Quero receberManter o assunto em debate nacional deve ajudar candidaturas evangélicas nas eleições municipais. As lideranças evangélicas no Congresso serão cabos eleitorais de candidatos a prefeito e vereadores na eleição de outubro. "Essa é uma pauta fácil de vocalizar e conquistar apoio de uma base eleitoral", diz a especialista.
A bancada também surfa em outros temas de costumes também em evidência. As recentes discussões sobre a PEC do Aborto por Estupro e a descriminalização do porte de maconha também foram explorados pela direita, especialmente a evangélica.
Até as derrotas nas discussões sobre a PEC do Aborto e do PL dos jogos de azar podem significar vitória nas urnas. "Eles não perderam [a disputa] porque conseguiram pautar a sociedade, levar essa discussão para fora da igreja", diz o diretor do Observatório Evangélico.
Perderam no macro, mas se colocaram com o eleitorado deles como uma referência no combate a esses temas.
Vinicius do Valle, cientista político
Furando a bolha
Após o racha, a bancada quer avançar sobre o eleitorado conservador que votou pelas legalização das apostas. "Não é só por princípios religiosos que a bancada é contra os jogos de azar", diz Viana. "É uma questão de segurança pública: cassinos também trabalham com dinheiro vivo, o meio mais fácil do crime organizado lavar dinheiro."
Viana nega que o posicionamento da bancada mire as eleições de outubro. "Os assuntos [drogas, aborto e apostas] se acumularam por coincidência. A bancada sempre foi uma frente de princípios: compromisso pela vida, pela não liberação das drogas e agora pela não liberação do jogo."
Sobrou até para bolsonaristas. Embora não seja político, o pastor Silas Malafaia acompanhou presencialmente a votação do projeto na CCJ do Senado. Antes, passou nos gabinetes dos senadores para convencê-los a barrar a proposta.
Depois do resultado, ele disparou contra conservadores que votaram pela liberação dos jogos. "Aquela direita vagabunda que se vende. Uma direita que se vende por cargos não é direita", afirmou Malafaia à colunista Letícia Casado, do UOL.
Uma das vítimas foi a ex-ministra de Bolsonaro Tereza Cristina (PP-MS). "A senhora foi eleita com o voto do povo que apoia Bolsonaro e agora está fazendo o jogo do governo Lula (...) não merece o voto do povo de Mato Grosso do Sul", disse em uma rede social. Tereza precisou se defender: "Nunca compactuarei com a exploração da boa fé dos brasileiros e sou contrária a misturar política com religião", disse.
Outro alvo foi o senador Márcio Bittar (União Brasil-AC). O pastor disse que viu o senador prometendo votar contra o projeto em uma ligação no viva voz com Bolsonaro. "Prometeu votar contra o texto e não compareceu à sessão", afirmou. Bittar respondeu que votará no plenário e que Malafaia "exagerou na patrulha ideológica". "Eu achava que a patrulha era uma arma apenas da esquerda", provocou.
Essas acusações geram engajamento. Os portais de notícias evangélicos e redes de WhatsApp compartilham essas declarações.
Raquel Sant'Ana, pesquisadora
Bancada conhece seu eleitor
Dependentes de drogas e jogos são socorridos pelas igrejas nas comunidades. "São as igrejas evangélicas que estão com as famílias de baixa renda, resgatando de vícios, criminalidade e desenvolvendo a disciplina", diz o cientista político. "Eles ajudam no cuidado de crianças e são rede de apoio para conseguir emprego. Cumprem um papel de motivação, assistência emocional, simbólica e até material."
Junto com os jogos vêm outras atividades ilícitas que afetam principalmente os mais pobres: vício e dívida geram violência dentro de casa e problemas familiares. Isso mobiliza os evangélicos.
Vinicius do Valle, professor
Cuidar dessas pessoas é a coisa mais comum em nossas igrejas. Tem muita gente que perde patrimônio em apostas mesmo antes da legalização.
Carlos Viana, senador
'Brasil vai arrecadar R$ 22 bi'
O relator do projeto, senador Irajá (PSD-TO), defende ganhos financeiros para o Brasil. Ele disse na CCJ que os jogos hoje ilegais movimentaram até R$ 31,5 bilhões em 2023. Os investimentos depois da aprovação poderiam chegar a R$ 100 bilhões, gerar 1,5 milhão de empregos e elevar a arrecadação anual em R$ 22 bilhões para estados, municípios e União, segundo o projeto.
O governo vê o projeto com bom olhos. O PL chegou a ser listado como uma das medidas para compensar a desoneração da folha de pagamento de 17 setores da economia. A possibilidade acabou descartada pelo líder do governo no Senado, Jaques Wagner (PT-BA), para quem a arrecadação com jogos só aparecerá no médio e longo prazo.
Lula disse que vai sancionar se o projeto passar no Senado. "Eu não acredito no discurso de que 'se tiver cassino, o pobre vai gastar tudo que tem'. O pobre não vai ao cassino, o pobre vai trabalhar no cassino", disse ele à rádio Meio Norte, no Piauí.
Jaques Wagner votou a favor na CCJ. "O governo não firmou posição. Eu votei a favor porque não acredito em nada proibido como solução de nada", comentou.
Poucos magnatas gananciosos ganham rios de dinheiro e favorecem a lavagem do dinheiro do crime organizado enquanto milhões de pessoas perdem muito.
Eduardo Girão, senador
Deixe seu comentário
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Leia as Regras de Uso do UOL.