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Histórias cruzadas: o encontro da bebê negra devolvida pela família branca e a criança que a substituiu

Amy Roost, esquerda, e Angelle Smith, durante a infância - Arquivo pessoal/NYT
Amy Roost, esquerda, e Angelle Smith, durante a infância Imagem: Arquivo pessoal/NYT

John Eligon

11/12/2017 04h00

Ela cresceu em um subúrbio de Chicago, fã de Hot Wheels, figurinhas de beisebol e o hóquei dos Blackhawks. Um dia, quando seus dois irmãos brincavam com uma bola de futebol no amplo quintal da casa, Amy Roost insistiu em jogar. Eles disseram não, ela suplicou e um deles atirou a bola contra ela com força, fazendo-a cair, em lágrimas.

"Nossa outra irmã era uma menina de verdade", disse um dos meninos. Amy, que tinha cerca de 8 anos na época, ficou atônita com o comentário. Não havia outra irmã, pelo menos era o que pensava.

Ela correu para dentro, encontrou sua mãe fumando sentada à mesa da cozinha e lhe contou o que seu irmão Bobby tinha dito. "É verdade que você teve uma filha antes de mim?", perguntou Amy, que, como seus irmãos, foi adotada recém-nascida.

Marge Sandberg lentamente apagou o cigarro no cinzeiro. "Escute bem", Amy lembra que sua mãe disse, "porque só vou lhe contar esta história uma vez."

Foi por volta de 1970 em Deerfield, Estado de Illinois, e Sandberg contou à sua filha menor um segredo muito bem guardado sobre a opção que a família fez, alimentada pelas tensões raciais da época, que levou uma menina negra e a menina branca que a substituiu a caminhos divergentes.

Décadas depois, as jornadas das duas mulheres contam uma história matizada sobre raça nos EUA, uma que complica as suposições fáceis sobre privilégio branco e dificuldades negras. A vida dá voltas inesperadas, como sugere a história desta família, não importa a raça dos envolvidos. E anos depois não é fácil entender o papel da raça quando se examinam as lições aprendidas. 

Tudo começou em 1959, quando um empreiteiro comprou um terreno em Deerfield para construir 51 casas. Ele disse que venderia uma dúzia delas para pessoas negras.

Essa pequena comunidade a cerca de 50 km ao norte de Chicago tinha passado anos cultivando a imagem da América suburbana de meados do século 20: casas padronizadas, gramados e uma população virtualmente toda branca. Os moradores de Deerfield deixaram claro que queriam proteger a ordem racial. 

Vândalos atacaram duas casas em construção. Alguém queimou uma cruz no gramado de um morador que apoiava o projeto. Um pastor local que defendia o empreendimento recebeu uma carta anônima com ofensas raciais e que lhe dizia para "deixar seus filhos se casarem com um deles e lhe apresentar um belo neto ou neta marrom-escuro", relatou "The New York Times" em 17 de abril de 1960.

Entre os que queriam ver o condomínio construído estavam Marge Sandberg e seu marido, Len, que tinha se mudado para Deerfield com seus dois filhos adotivos em meados dos anos 1950. Len Sandberg, que é judeu, disse que sempre teve simpatia pelos grupos minoritários perseguidos.

Marge Sandberg entrou para um grupo local que apoiava o empreendimento habitacional. Mas os esforços para construir as casas não tinham sucesso; a prefeitura acabou desapropriando o terreno e criando ali um parque. 

Enquanto o assunto da cidade era o projeto habitacional, os Sandbergs falavam em aumentar a família. Eles queriam uma filha. Então contrataram um advogado, que encontrou uma mulher que queria dar sua bebê para adoção. A menina, que eles queriam chamar de Rebecca, nasceu em 19 de abril de 1962, e quando chegou à casa dos Sandbergs, dias depois, eles ficaram surpresos.

Ela era negra.

Imediatamente, disse Len Sandberg, ele pensou nas cruzes queimadas e em xingamentos racistas, na revolta da comunidade com a perspectiva de negros se mudarem para lá. As adoções inter-raciais eram muito menos comuns naquela época. 

"Eu disse naquela altura que não ia seguir em frente", disse Len, hoje com 89 anos.

Sua mulher protestou vigorosamente. Ela chorou, chamou o pastor da igreja unitarista que eles frequentavam para tentar convencê-lo a mudar de ideia. Len não se abalou.

"Eu pensei: 'Meu Deus, como você vai criar uma criança neste bairro, com o modo como as pessoas se sentem sobre isso?'", disse Len, dono de uma próspera fábrica. "Simplesmente não seria bom para ela."

Os Sandbergs devolveram a criança. Alguns meses depois, adotaram uma menina branca, que chamaram de Amy.

Enquanto a família seguia sua vida, o impacto do que ela fez perdurava. Marge Sandberg, que morreu de câncer em 1997, fez anotações em seu diário dizendo que pensava na menina todo mês de abril, o de seu aniversário. Os Sandbergs acabaram se separando e divorciando. A família conversava sobre o que aconteceu.

O pai de Amy Roost, Len Sandberg, que em 1962 se opôs ao desejo de sua esposa de adotar uma criança negra em sua casa em La Jolla, Califórnia - JENNA SCHOENEFELD/NYT - JENNA SCHOENEFELD/NYT
O pai de Amy Roost, Len Sandberg, que em 1962 se opôs ao desejo de sua esposa de adotar uma criança negra em sua casa em La Jolla, Califórnia
Imagem: JENNA SCHOENEFELD/NYT

Mas Roost começou a pensar no segredo da família novamente em 2012, depois que Trayvon Martin, um adolescente negro, foi assassinado por um vigia de bairro na Flórida, provocando um debate nacional sobre disparidades raciais nos EUA. Roost se perguntou se a menina que seus pais devolveram teria acabado na parte ruim da divisão racial.

Roost, hoje com 55 anos, formou-se em ciência política na Universidade George Washington e trabalhou como assessora de imprensa no Capitólio, como administradora de universidade e como escritora bolsista de organizações não governamentais.

Ela se tornou jornalista independente e, usando suas habilidades de repórter, decidiu encontrar a mulher que seus pais haviam abandonado. Roost documentou essa busca para uma reportagem que irá ao ar no podcast Snap Judgment da WNYC.

Roost escavou os registros de adoções e de nascimentos de Illinois, procurou na internet e acabou encontrando a mulher: Angelle Kimberly Smith. Era 2015, e Roost telefonou para Smith, nervosa sobre o que ela poderia dizer.

Amy Roost e Angelle Kimberly Smith atualmente - Jenna Schoenefeld/The New York Times - Jenna Schoenefeld/The New York Times
Amy Roost e Angelle Kimberly Smith atualmente
Imagem: Jenna Schoenefeld/The New York Times

A conversa não transcorreu como Roost havia imaginado.

"Ela foi realmente tranquila a respeito", disse Roost.

Depois que os Sandbergs desistiram dela, Smith tinha ido para um casal amoroso, Harry e Ruth Smith, que eram negros. Seu pai tinha uma papelaria. Ele também estava muito envolvido com uma loteria marginal, com tentáculos que chegavam ao mundo político da cidade e ao crime organizado, disse ela. Sua mãe era uma dona de casa. Sua criação, segundo Smith, foi confortável e carinhosa, em um bairro de classe média na zona sul de Chicago. Ela frequentou uma escola primária particular. 

Mas a tragédia a atingiu quando Harry Smith morreu de infarto, quando a menina tinha só 8 anos.

Angelle e sua mãe seguiram em frente. A mãe cuidava da papelaria e os amigos as tratavam como parentes.

"Fui criada por pessoas que realmente me amavam e me queriam", disse Smith, hoje com 55 anos.

Quando se tornou adulta, ela mudou-se para Los Angeles, atraída pela perspectiva de uma vida glamourosa. Mas encontrou problemas.

Apesar de sua vida familiar estável, Smith disse que foi atraída por círculos liberais onde as drogas eram comuns. Ela ficou viciada em cocaína, segundo disse, tornou-se uma sem teto e foi presa por roubo a residência. Teve quatro filhos, dois deles enquanto vivia nas ruas, e perdeu a custódia de todos. 

Smith acabou reorganizando sua vida. Tirou um diploma, começou a trabalhar online para os diplomas de bacharel e mestrado e trabalhou como conselheira. Em 2007, todos os seus filhos estavam de volta à sua vida. Ela queria saber mais sobre quem ela era, por isso procurou seus pais biológicos, listados como Neal Gordon e Juanita Green em sua certidão de nascimento, mas nunca os encontrou.

Mas a vida deu tantas voltas que quando ela ouviu falar em Roost sentiu que poderia enfrentar tudo. Reagiu à notícia de que tinha sido rejeitada por uma família branca dizendo a Roost que não sentia mágoa e não gostaria de ter sido criada por pais brancos em um bairro branco.

Com o tempo, as duas construíram um relacionamento, conversando sobre os bons e os maus lugares aonde a vida as levara. Elas falaram abertamente sobre se teriam percorrido trajetórias raciais estereotipadas --a menina branca atingindo o sucesso com o apoio de uma rica família branca; a menina negra lutando com o desespero.

Essa narrativa desgastada, afinal, estava longe da realidade. Smith se perguntou se realmente teria sido melhor se os Sandbergs a tivessem mantido.

Do modo como via a coisa, disse Smith, a raça nunca pareceu um fator muito determinante em sua vida. Ela foi à escola com crianças brancas e gozou de alguns dos mesmos benefícios que elas, desde sua educação à casa de férias da família. Sentia-se feliz por ter crescido em um bairro de maioria negra, e não em Deerfield, onde provavelmente teria enfrentado discriminação, segundo disse. 

"Não havia nenhuma pessoa de cor naquela comunidade", disse Smith, acrescentando que "quando os brancos têm de lidar com os negros, eu acho que há uma percepção enganosa de quem nós somos, o que representamos".

Quando Roost soube do que Smith tinha passado como adulta --prostituindo-se para pagar as contas, vivendo no famoso MacArthur Park em Los Angeles--, ela pensou como sua própria vida tinha sido diferente e como a decisão de fundo racial de seus pais teria impactado as duas.

Ao comparar sua vida com a de Smith, Roost disse acreditar que sem enfrentar o racismo sua família pôde se sair bem financeiramente, permitindo que ela estudasse na faculdade e tivesse empregos estáveis. Parecia o privilégio branco, disse ela. 

Mas também percebeu que suas suposições sobre a vida de Smith não soavam exatamente verdadeiras. 

"Quando eu soube que ela havia sido adotada por uma família negra, pensei que sua vida provavelmente não fora tão boa quanto a minha", disse Roost.

Mas Roost suportou seus próprios momentos tumultuados, apesar de desfrutar as férias no exterior e as festas de Natal luxuosas que a riqueza da família lhe permitia. Um parente a atacou sexualmente. Com seus pais divorciados quando ela tinha 10 anos, sua relação com o pai se distanciou e o alcoolismo de sua mãe complicou seu relacionamento. 

"Você pode olhar para isso e pensar: 'Oh, a criança branca provavelmente teve a melhor infância nesse subúrbio chique'", disse Roost. "Mas então você retira as camadas e vê que foi uma infância horrível."

Se tivesse experimentado a infância de Roost, disse Smith, é provável que tivesse caído no vício de drogas mais rapidamente.

Essas possibilidades, porém, são um pequeno consolo para Len Sandberg, o homem que não quis ficar com uma menina por causa da cor de sua pele.

"Foi uma decisão difícil e eu me senti culpado", disse ele. "Tenho vergonha de mim mesmo. Não sei se tomei a decisão certa ou errada. Revendo tudo agora, neste momento, sinto que foi errada."

Quando ele se encontrou com Smith, dois anos atrás, pela primeira e única vez, em um restaurante em La Jolla, na Califórnia, ela correu até ele e o abraçou. 

"Muito obrigada", Smith disse que murmurou em seu ouvido. 

Ele perguntou por que estava lhe agradecendo.

"Sei que você lutou com isto durante tantos anos, mas você fez a coisa certa", Smith lembra que lhe disse, acrescentando que ele pareceu visivelmente aliviado. "Eu vi 50 anos de culpa e vergonha escorrerem dele."