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Mesmo após incêndio no Flamengo, jovens pobres ainda sonham virar jogadores

Leandro Gomes, o Maradoninha, de 11 anos, mostra sua habilidade com a bola, no Rio de Janeiro - Dado Galdieri/The New York Times
Leandro Gomes, o Maradoninha, de 11 anos, mostra sua habilidade com a bola, no Rio de Janeiro Imagem: Dado Galdieri/The New York Times

Tariq Panja e Manuela Andreoni

No Rio de Janeiro

08/04/2019 20h09

Christian Esmério ia dar certo, sua família tinha certeza disso.

Ele tinha 15 anos e era alto, um jogador de futebol com um sorriso fácil que revelava sua habilidade entre as traves do gol. Já se falava em contratos, e em comprar uma casa para os pais, que tinham aplicado toda a sua poupança no sonho de que seu filho fosse o próximo grande jogador de exportação --o próximo Ronaldo, Ronaldinho ou Neymar.

Leandro gomes, o Maradoninha - Dado Galdieri/The New York Times - Dado Galdieri/The New York Times
Leandro Gomes, 11, o 'Maradoninha' mostra habilidade com a bola no Rio
Imagem: Dado Galdieri/The New York Times
Agora seu pai estava envolto em uma nuvem de dor, diante de um prédio de escritórios no centro do Rio, cercado de advogados. Dias antes, Christian havia morrido queimado em um incêndio no centro de treinamento juvenil de um dos mais famosos times de futebol da América do Sul, o Flamengo. Ele foi um dos dez jogadores mortos.

As mortes levantaram o véu da maior linha de produção internacional de jogadores, e perguntas abrangentes sobre um aparelho brutal que mastiga um número incontável de jovens brasileiros para cada estrela que cria.

O mundo do futebol no Brasil é povoado por diversos atores, alguns atraídos pela glória, mas quase todos pela possibilidade de sair da pobreza, talvez até se tornar muito ricos.

Há os meninos, é claro, e suas famílias. Há os investidores e os intermediários, que percorrem o país de dimensões continentais em busca de prospectivos jogadores que podem ter apenas 9 anos. E há os times, muitos em estado financeiro tão degradado que só a venda do último astro os impede de afundar.

Os lucros de se investir sabiamente, e cedo, mesmo que em um único jogador, podem chegar a dezenas de milhões de dólares. Nesse ambiente especulativo, jovens atletas talentosos, alguns deles crianças, são comprados e vendidos como qualquer outra matéria-prima. No Brasil, os melhores são até chamados de "pedras preciosas".

Na noite do incêndio no Flamengo, 8 de fevereiro, mais de duas dúzias de meninos, a maioria de famílias pobres, e todos esperando realizar um sonho, dormiam em um dormitório do clube.

Em um país obcecado por futebol, o Flamengo se orgulha de ser o time mais popular, com uma riqueza invejada por rivais em toda a América do Sul. Mas a adoração e o poder, ao que parece, podem ter permitido que o Flamengo escapasse durante anos de qualquer censura real pelo tratamento que dava aos meninos sob seus cuidados.

Em 2015, promotores do Estado do Rio de Janeiro processaram o Flamengo pelas condições em seu centro de treinamento. Os promotores citaram falhas na proteção às crianças, declarando as condições "ainda piores que as oferecidas atualmente aos delinquentes juvenis".

Autoridades da prefeitura emitiram uma ordem para fechar a instalação em 2017, mas ela não foi efetivada, limitando suas sanções a dezenas de multas.

Nos últimos anos, o Flamengo gastou milhões para atualizar sua academia de jovens. No ano passado, autoridades do clube se gabaram de que as novas instalações seriam as melhores do Brasil.

Mas o dormitório que abrigava 26 meninos adormecidos na noite do incêndio era uma estrutura improvisada, feita de seis contêineres de aço emendados. Nunca tinha sido inspecionada, segundo autoridades locais.

Um menino que estava no quarto de Christian disse aos investigadores que sua porta emperrou quando ele tentou sair. O menino consegui escapar entre as grades da janela. Mas Christian, um goleiro robusto de 1,87 metro, não conseguiu. Quando os socorristas o resgataram, seu corpo estava tão carbonizado que ele só pôde ser identificado pelos registros dentais.

Perto do sonho

As ruas de Xerém, a cerca de 50 quilômetros do Rio, estão cheias de garotos de todas as idades vestidos com camisas vermelhas, verdes e brancas, as cores do clube de futebol Fluminense.

Até que o time construísse seu complexo de treinamento lá, Xerém era pouco mais que um charco, segundo moradores. Mas hoje é o lar de jogadores e famílias cujas vidas giram em torno do clube.

Entre eles, no início deste ano, estava um garoto de 11 anos apelidado de Maradoninha, por causa da semelhança com o ex-craque argentino Diego Maradona. Mesmo nesta cidade extremamente competitiva, Maradoninha chamava a atenção.

Dois anos atrás, um caçador de talentos do Fluminense viu o menino, cujo verdadeiro nome é Leandro Gomes Feitosa, jogar em um campeonato local e procurou sua família. Ele tinha apenas 9 anos, e a lei brasileira não permite que os clubes de futebol hospedem menores de 14. Mas se a família fosse para o Rio, disse o "olheiro", o Fluminense o treinaria.

Um grupo de empresários locais ofereceu o dinheiro, por uma porcentagem dos rendimentos futuros, e a família se mudou de Palmas, a mais de 1.900 quilômetros de Xerém, para perseguir o sonho. Quase todas as famílias que vivem em sua comunidade de 26 casas enfileiradas têm uma história parecida, segundo o pai de Maradoninha, Evandro Feitosa.

Maradoninha talvez não tenha idade suficiente para o ensino médio, mas sabe que o futuro de sua família está ligado à sua habilidade com a bola de futebol. "Se Deus quiser", diz ele, "vou ser um grande jogador para ajudar minha família em Palmas, minha família aqui e os necessitados."

A probabilidade de conseguir isso é pequena. Menos de 5% dos jogadores promissores no Brasil chegarão a ser profissionais, segundo a maioria das estimativas. Menos ainda ganharão um salário decente no esporte. Um estudo publicado pela Federação Brasileira de Futebol em 2016 concluiu que 82% dos jogadores do país ganhavam menos de R$ 1.000 por mês.

E para Maradoninha e sua família as perspectivas ficaram ainda mais distantes recentemente: o Fluminense o dispensou.

Sejam quais forem as probabilidades, ou as dificuldades, há histórias de jogadores de sucesso suficientes para alimentar as esperanças de meninos e famílias que têm pouco mais com que sonhar. Há Neymar, o produto de um bairro humilde nos arredores de São Paulo. Há Rivaldo, Ronaldo e Romário, três ex-vencedores da Copa do Mundo.

E mais recentemente há Vinicius Jr., um atacante vistoso que saiu das fileiras juvenis do Flamengo. Ele treinava no mesmo campo que os dez meninos mortos no incêndio, e então começou a viver o sonho: em 2017, quando tinha 16 anos, o Real Madrid da Espanha aceitou pagar 45 milhões de euros (cerca de R$ 193 milhões) por seus direitos.

Todos esses jogadores, e centenas de outros, surgiram da fábrica de futebol do Brasil para praticar seu ofício nos maiores palcos do mundo.

Em seus primeiros dias no esporte, os pais de Christian usaram tudo o que tinham e emprestaram de amigos e vizinhos para financiar seu sonho. Em 5 de março, quando completaria 16 anos, ele deveria assinar seu primeiro contrato profissional no Flamengo. Seu sonho, depois de anos de preparação, iria se realizar.

Ele morreu quatro semanas antes do aniversário.

Vídeo mostra momento do incêndio no Ninho do Urubu

Band Sports