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O desafio de decidir a quem alimentar: brincando de Deus com um orçamento limitado

Uwe Buse

O Programa Alimentar Mundial da ONU tenta impedir que os mais pobres entre os pobres passem fome. Mas seu orçamento diminuiu durante a crise à medida que os países doadores estão mais concentrados em seus próprios problemas econômicos. Funcionários de ajuda humanitária enfrentam a desagradável tarefa de decidir quem recebe alimento – e quem não recebe. John Aylieff levou um tiro uma vez em Burundi, no leste da áfrica, de um atirador que estava em pé na beira da estrada no meio do nada. Aylieff só sobreviveu porque seu motorista foi com o veículo direto para cima do atirador. Aylieff também perdeu uma colega no Burundi. Ela foi obrigada a ficar em pé na frente de seus assassinos e foi executada. Ele testemunhou a morte de crianças, incluindo bebês que morreram de fome na sua frente. Ele também viu idosos morrerem de fome, tanto homens quanto mulheres, e viu mulheres chorando e implorando por comida – isso há apenas meia hora. Aylieff estava sentado num tronco de árvore no chão, num vilarejo quente e úmido no noroeste de Bangladesh. O vilarejo consistia em cabanas precárias feitas de galhos e palha. à esquerda do vilarejo há um caminho. Durante a enchente, os moradores passavam as noites dormindo ao longo do caminho. à direita do vilarejo fica o rio, onde as águas continuaram subindo dia após dia. Cheio de esperança Cinco homens e mulheres, velhos e frágeis, estavam agachados no chão em frente a Aylieff. Eles o haviam visto – um homem bem alimentado vestindo jeans e tênis, com pouco cabelo e um rosto suave – chegar no vilarejo com o Toyota Landcruisers branco e uma equipe de quatro homens. Eles lhe deram as boas-vindas, convidaram-no para suas cabanas e ofereceram-no um lugar no tronco da árvore – e então olharam para ele, cheios de esperança. Eles não conheciam Aylieff. Na verdade, nunca tinham-no visto antes, mas eles sabiam que ele já havia levado arroz para eles antes: um saco inteiro de 50 quilos para cada morador. "Somos gratos por isso", disse a mulher no meio do grupo. Seu nome é Alif Jan, viúva de um trabalhador temporário. Ela tem quatro filhos e muitos netos, e é a corajosa do grupo, talvez porque seja a mais desesperada. Ela dispensa as formalidades e vai direto ao ponto: "quando você nos trará arroz de novo?" Aylieff se volta para seu intérprete, e então olha para Alif Jan e diz: "eu não sei". Ele diz isso calmamente, não com indiferença, mas também sem muita emoção. Uma distância considerável existe entre ele e a mulher no chão. Mendigando água de arroz A resposta de Aylieff é incompreensível para os homens e mulheres agachados à sua frente. Eles veem os dois Landcruisers e os homens que acompanham Aylieff. Como alguém que se comporta como um príncipe não consegue dar-lhes arroz? Alif Jan olha para Aylieff, levanta suas mãos vazias e diz: "por favor". Aylieff não precisa de seu intérprete para entender a palavra. Ele levanta os ombros, sacode a cabeça e diz: "sinto muito". Mas a mulher sentada a seus pés continua determinada. Eles dizem que ninguém comeu nenhum arroz nos últimos dias. Eles mendigaram água de arroz, a água que outras famílias usam para cozinhar seu arroz, e comeram folhas de bananeira. Eles têm vergonha de dizer isso para um homem que poderia ser seu filho. No final de suas vidas, depois de passar mais de 50 anos trabalhando nas plantações, é humilhante que eles tenham que implorar um saco de arroz para este homem. "Por favor", diz Jan. Com lágrimas nos olhos. "Sinto muito", repete Aylieff. "Não nos sobrou nada para distribuir." O intérprete traduz, e Aylieff ouve as mulheres chorarem. Ele deixa o vilarejo pouco tempo depois. Ele foi lá para checar o progresso de um projeto anterior, e agora está sentado em seu veículo, com as janelas fechadas, enquanto os moradores se despedem. Eles ficam ao longo do caminho, formando uma parede de corpos magros. Os homens e mulheres ficam ali parados, quase imóveis e inconcebivelmente magros, olhando para o interior do veículo. Aylieff olha para eles em silêncio. Sensação de culpa Aylieff trabalha no combate à fome há 18 anos, tentando transformar o mundo num lugar melhor. Cidadão britânico, ele se formou em literatura alemã e tinha intenção de se tornar professor, mas então sua vida foi para uma direção totalmente diferente. No início dos anos 90, Aylieff assistiu a reportagens de TV sobre a fome na Etiópia. Sentindo-se culpado por ter uma vida abastada, ele logo esqueceu os clássicos alemães e voltou sua atenção para ajudar os outros. Ele queria fazer o máximo possível, para fornecer alívio direto e rápido para os pobres do mundo. Ele retirou sua poupança, voou para a Etiópia e importunou os funcionários de organizações de ajuda até que oferecessem a ele uma vaga de estágio. Hoje ele está com 42 anos, é casado com uma tailandesa e tem um filho. Quando questionado sobre seus primeiros anos em campo, ele respondeu: "eu me impressionava muito na época". Aylieff ficou na Etiópia por dois anos. Depois ele foi para Burundi, e depois para a Coreia do Norte, Sri Lanka, Afeganistão e Iraque. Ele organizou carregamentos de alimentos para mais de um milhão de refugiados depois do genocídio em Ruanda, e negociou com os generais no Chifre da áfrica. Ele teve que convencê-los de que só estava entregando comida e que não poderia fornecer barcos a motor e metralhadoras. Exceto por dois anos, Aylieff trabalhou todo o tempo para o Programa Alimentar Mundial da ONU (WPF, na sigla em inglês), a maior organização humanitária do mundo. Atualmente ele é o vice-diretor regional do WPF para a ásia.  

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