Tragédia do voo AF 447

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Dois anos após a queda, acidente com o voo AF 447 permanece "misterioso"

Gerald Traufetter

  • Charles Platiau/Reuters

    Análise inicial do gravador de dados do voo do avião aponta para erros cometidos pelos pilotos. Mas também foram levantadas questões sobre os sistemas de controle automático do A330

    Análise inicial do gravador de dados do voo do avião aponta para erros cometidos pelos pilotos. Mas também foram levantadas questões sobre os sistemas de controle automático do A330

O voo AF 447 da Air France levou apenas três minutos e meio para mergulhar 11 mil metros para dentro do Atlântico, há dois anos. Uma análise inicial do gravador de dados do voo do avião aponta para erros cometidos pelos pilotos. Mas também foram levantadas questões sobre os sistemas de controle automático do A330. Tudo parecia um voo de rotina, há dois anos. O Airbus A330 estava voando em sua altitude de cruzeiro sobre o Oceano Atlântico e tinha acabado de ultrapassar uma área de leve turbulência. O capitão do voo, Marc Dubois, deixou a cabine de controle para descansar um pouco. O copiloto Pierre-Cédric Bonin, cuja esposa era passageira a bordo da aeronave, disse à tripulação: “Em dois minutos devemos entrar em uma área que vai balançar um pouco mais do que agora”. As palavras exatas do copiloto fazem parte do relatório preliminar do acidente do voo AF447 da Air France divulgado pela agência de investigação de acidentes de aviação francesa, BEA, na sexta-feira (27). O relatório, seco e quase inteiramente livre de comentários, fornece um retrato dos últimos três minutos e meio do voo, antes de ele mergulhar no Atlântico matando todas as 228 pessoas a bordo. A expectativa em torno do relatório com base na análise inicial das caixas pretas era alta. Tanto o gravador de dados quanto o gravador de voz do Airbus, que se acidentou no dia 1º de junho de 2009, foram encontrados no solo oceânico a uma profundidade de 4.000 metros no início de maio. “Acidente misterioso” A queda do A330 deixou milhões de passageiros em torno do mundo desconfortáveis. Como era possível um jato de passageiros simplesmente sumir enquanto atravessava o oceano? O acidente lembrava o desaparecimento de navios sem deixar vestígio em alto mar nos séculos idos. Será que as caixas pretas finalmente resolveriam o mistério? Foi apenas muito mais tarde, depois de horas de silêncio nas comunicações via rádio e bem após a hora marcada para o avião completar a travessia do Atlântico, que foram enviados jatos para procurar o Airbus desaparecido. Até mesmo investigadores experientes foram pegos de surpresa com a calamidade. “Este é um acidente misterioso”, disse Peter Golez, ex-diretor do Conselho de Segurança de Transportes Nacionais em Washington. Ele o classificou na mesma categoria de desastres como o da ilha de Tenerife em 1977, com 583 mortes, o mais mortífero na história da viagem aérea. Na quarta-feira desta semana, famílias das vítimas –de 32 países- devem se reunir em Paris e no Rio de Janeiro para marcar o segundo aniversário do acidente. A reunião vai ocorrer quando o véu que cobriu o acidente de mistério talvez esteja lentamente se dissipando. O relatório de quatro páginas da BEA fornece respostas a várias das questões mais prementes que o acidente deixou para trás –e levanta igualmente muitas questões adicionais. O drama começou às 2h10m5s da manhã no horário de Greenwich: sem aviso, o piloto automático e a auto-impulsão desligaram. O relatório não diz a razão. Mas os investigadores têm uma explicação: os três medidores de velocidade do lado de fora da aeronave, conhecidos como sensores de pitot, congelaram. Situação perigosa Subitamente, o voo de rotina tornou-se um pesadelo. “Estou com os controles”, disse o copiloto Bonin aos colegas. Neste ponto, o avião deu uma guinada para a direita e Bonin rapidamente procurou corrigir e puxar o nariz da aeronave. Seu colega informou: “Perdemos as velocidades.” Deve ter ficado claro para ambos que estavam, subitamente, em uma situação extremamente perigosa. Na altitude de cruzeiro do avião de 11 mil metros, manter uma velocidade precisa é crítico. Apenas 15 km por hora mais rápido ou lento, e o avião pode perder a sustentação. Com uma margem de erro tão pequena, os pilotos chamam esta altitude de “coffin corner” (canto do caixão). E logo a cabine de comando foi cortada pela advertência: “Estol! Estol!” A advertência vem de uma voz sintética e é acompanhada por um alarme tão alto que os passageiros da classe executiva atrás da cabine de comando devem ter ouvido. Em tais momentos, contudo, o barulho de fora do avião é o que anuncia o desastre. O som do vento desaparece e apenas os lamentos agudos das duas turbinas são ouvidos dentro da cabine. Especialistas em aviação sabem que esse barulho significa que as asas do avião não estão mais fornecendo sustentação suficiente. Neste momento da sequência de eventos, as opiniões dos especialistas divergem em torno da resposta a mais fundamental de todas as perguntas: quem foi o culpado pela morte das 228 pessoas a bordo do voo? Um debate acalorado irrompeu entre a fabricante do Airbus e outros especialistas. O relatório preliminar não dá respostas claras. Erro sério Os pilotos reagiram às advertências de estol com impulso máximo –exatamente o que pedem os manuais de treinamento. Mas eles também puxaram o nariz do avião para cima. é uma coisa intuitiva a se fazer, mas na aeronáutica é um erro sério. A impulsão aumentada por si própria pode resultar na elevação do nariz da aeronave, e os fabricantes reconhecem o problema. Em um Telegrama de Operação de Voo do dia 12 de maio de 2010, a Airbus removeu a instrução de impulsão máxima de seus manuais de voo. Mas por que o copiloto Bonin iria puxar o nariz para cima e vez de empurrar para baixo? Logo o ângulo do avião no ar tornou-se perigosamente alto. Uma explicação para a elevação da ponta anterior do A330, contudo, também pode ser fornecida por uma linha do relatório da BEA referindo-se ao estabilizador horizontal ajustável. Situado no rabo do avião perto dos flaps que controlam a inclinação do avião, o estabilizador horizontal também ajuda a controlar a estabilidade horizontal do avião. De acordo com o relatório preliminar do BEA, o estabilizador horizontal mudou de três graus para 13, quase o máximo. Assim, forçou o avião a uma subida cada vez mais íngreme. Ele “permaneceu nesta posição até o fim do voo”, observa o relatório. A Airbus não considera a leitura extraordinária e aponta para os esforços do copiloto de erguer o nariz. Erro da Airbus? Contudo, Gerhard Hüttig, professor do Instituto de Aeronáutica e Astronáutica da Universidade Técnica de Berlim, considera o alto ângulo do estabilizador horizontal uma falha do sistema de controle de voo eletrônico do Airbus. Hüttig, ex-piloto, chama o incidente de “um erro de programação com consequências fatais”. “Não ia importar o quanto a tripulação tentasse empurrar o nariz do avião para baixo, não teria a menor chance”, diz Hüttig. Ele está exigindo que toda a frota de Airbus A330 fique em terra até que o fenômeno seja explicado. O relatório da BEA, em sua forma atual, somente fornece o ângulo do estabilizador, mas não explica o motivo. O relatório meramente indica que foi neste momento que o capitão Marc Dubois voltou à cabine. Exatamente quais ordens ele emitiu não faz parte do relatório de sexta-feira. Mas, segundo fontes que conhecem a investigação, ele disse o seguinte: “é um estol. Reduza a impulsão e nariz para baixo!” Essa ordem teria sido correta se a situação não estivesse perdida. Nesta hora, o jato, que estava apontando fortemente para cima, já estava perdendo altitude vertical a um ritmo de 200 km por hora. Os passageiros, que antes estavam sendo pressionados contra os encostos de seus assentos, agora ficaram presos em seus assentos apenas pelos cintos de segurança. “Neste instante, eu teria temido por minha vida, mesmo que estivesse na cabine de passageiros”, disse um piloto de A330 após ler o relatório da BEA. Que o avião estava em queda livre teria sido claro para todos a bordo. O nariz do avião apontou para o céu a um ângulo de 16 graus. “Isso é mais do que imediatamente após a decolagem”, disse o piloto.  Tarde demais Em seu relatório, a BEA só publicou declarações de pilotos que contêm informações sobre questões técnicas. “Não tenho mais indicações”, disse o copiloto Bonin, por exemplo. Um minuto e meio depois do início da queda livre, ele disse: “Vamos chegar ao nível de cem”. Isso significa que o avião está a apenas 300 metros acima do nível do mar. Os últimos minutos do voo AF447 devem ter sido especialmente trágicos para o capitão Dubois. As regras estipulam, é claro, que o capitão pode descansar na área traseira nesta fase do voo. Mas por que ele não permaneceu na cabine até que eles tivessem ultrapassado a tempestade? Quando voltou, o piloto experiente reconheceu imediatamente a situação e deu os comandos corretos. Mas nesta altura era tarde demais para mudar qualquer coisa, segundo a suspeita do especialista em aviação Hüttig. De fato, o relatório da BEA documenta os esforços feitos após a volta do capitão para baixar o nariz do avião. Quarenta e um segundos antes do impacto, os dois copilotos estavam empurrando os controles. Então, Bonin grita desesperadamente: “Vai, você tem os controles”. Faltavam apenas 30 segundos para o fim. Mas por que todos os esforços dos comandantes na cabine de controle foram em vão? O avião não reagia mais aos comandos enquanto caía? Ou será que o estabilizador horizontal, que estava quase totalmente desviado em 13 graus, continuou a forçar a elevação do nariz do avião? A Airbus nega veementemente que os controles automáticos do avião pudessem ter funcionado contra os comandos dos pilotos. Se a suspeita se provar verdadeira, porém, então o software teria que ser substituído em mais de mil aeronaves dos modelos A330 e A340. Os custos seriam de centenas de milhões de euros. Recomendações insuficientes De qualquer forma, o engenheiro de voo Hüttig, que também está assessorando as famílias das vítimas em relação a questões técnicas, está preocupado com a descrição do estabilizador horizontal a 13 graus. Isso é consistente com o comportamento que ele observou em um simulador da Air France A 330 em Paris há alguns meses, quando ele replicou a situação junto com outros pilotos. “O fenômeno é impressionantemente similar”, diz ele. Será que foi realmente o estabilizador que condenou os pilotos? Em teoria, eles poderiam tê-lo ajustado –sua posição pode ser alterada manualmente usando uma manivela perto dos niveladores de impulsão. Mas, como observa Hüttig, primeiro a pessoa teria que saber que o estabilizador estava desviado. Hüttig salientou que a Airbus publicou uma explicação detalhada do comportamento correto no evento de estol na edição de janeiro de sua revista de segurança interna. “E aí, subitamente, eles mencionam o ajuste manual dos estabilizadores”, diz ele. Ainda não se sabe quem se provará certo no final das investigações. Mas já está claro que nenhum indivíduo terá sozinho toda a carga da responsabilidade. Os pilotos poderiam ter estabilizado o avião se tivessem reagido diferentemente. Mas a companhia aérea provavelmente também não tinha os preparado adequadamente para tal situação. Similarmente, as recomendações da Airbus foram insuficientes. Tudo isso está escrito nos arquivos das autoridades francesas que investigaram o acidente do A330. “Até hoje”, as deficiências “não foram retificadas”, dizem os especialistas. Se os sensores de velocidade falham, há um efeito “particularmente enganoso” nos modelos da Airbus, dizem os especialistas, apontando para o alto grau de automação da cabine de comando. “Se os computadores de controle, que de fato devem fornecer mais segurança, fracassam, então os sistemas automáticos podem se tornar um perigo”, diz William Voss, presidente da Fundação de Segurança de Voo. Sem risco à segurança A fabricante Thales tinha consciência das consequências catastróficas da falha nos sensores de velocidade no início de 2005. Na época, a empresa francesa concluiu que tal falha poderia “causar sérios acidentes aéreos”. No total, há 32 casos conhecidos nos quais tripulações de jatos A330 ficaram em dificuldade por causa de falha nos sensores de velocidade. Em todos os casos, os aviões tinham os sensores de pitot da Thales, significativamente mais propensos à falha do que o modelo rival de uma fabricante americana. Contudo, nenhuma das partes responsáveis interveio na situação. Em 2007, a Airbus meramente “recomendou” que os sensores fossem substituídos. A Air France, portanto, preferiu não executar o trabalho caro –e teve até bênção oficial para isso. A Agência de Segurança em Aviação Europeia escreveu que “não via risco à segurança que exigisse a modificação obrigatória dos tubos de pitot da Thales”. A carta foi enviada no dia 30 de março de 2009, quase dois meses antes do voo AF447 terminar tragicamente. Em seu relatório do acidente, os investigadores da BEA observaram o fim das gravações às 2h14m28s do dia 1º de junho de 2009: “Os últimos valores gravados foram de uma velocidade vertical de 10.912 pés/min”. Em outras palavras, o avião da Air France atingiu o Atlântico a uma velocidade de quase 200 km por hora.

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