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Para piratas somalis, roubos em alto mar são muito lucrativos para serem recusados

Horand Knaup

Em Hargeisa (Somália)

  • Efe

    Militares espanhóis interceptam embarcação de supostos piratas somalis, no oceano Índico

    Militares espanhóis interceptam embarcação de supostos piratas somalis, no oceano Índico

Há centenas de piratas cumprindo penas de prisão no norte da Somália. Mas para cada pirata preso, há vários outros indivíduos dispostos a ocupar o lugar deixado vago por ele. Uma visita a uma prisão de piratas demonstra que, apesar dos riscos, muitos somalis ainda estão sendo atraídos para o mar devido aos sonhos de pagamentos de resgates, vingança e reputação. Omar Abdullahi, 45, conhecia as rotas das embarcações de patrulha. Ele conhecia o equipamento da guarda costeira e sabia que os seus funcionários recebiam um magro salário de US$ 45 (32 euros) mensais. Era isso o que ele também ganhava, apesar de chefiar a base de Las Qoray. No mar, ele constatava com que facilidade os piratas, nos seus barcos velozes, escapavam das embarcações da guarda costeira. E, em terra, ele via como os piratas eram capazes de comprar carros caros e casas luxuosas. Finalmente, Abdullahi decidiu que já sofrera o bastante. Em 2007, após 14 anos de serviço, ele deixou a guarda costeira da Somalilândia, uma república que fica ao longo da costa norte da Somália, e que declarou a sua independência em 1991. Na época, ele poderia ganhar mais trabalhando como pescador. Atualmente, Abdullahi está em uma prisão em Berbera, uma cidade litorânea da Somalilândia, aguardando que o seu caso vá a julgamento. Em 23 de março último, os seus ex-colegas da guarda costeira o prenderam, juntamente com seis comparsas, em um barco dotado de um sistema de GPS em vez de redes de pesca. Membros da guarda costeira alegam tê-los visto jogando os seus fuzis AK-47 e lança-granadas-foguetes no mar antes de serem detidos. Segundo a acusação, eles são piratas e atacaram navios petroleiros e de transporte de contêineres. O coronel Ahmed Ali é o comandante da unidade da guarda costeira em Berbera. Ele diz que o seu ex-colega passou algum tempo em Eyl, a base dos piratas na costa leste do país. “Nós sabemos que ele ganhou muito dinheiro lá”, diz Ali, acrescentando que o dinheiro não foi obtido com a pesca. “Se fosse pescador, ele teria ido pescar na sua região de origem, e não aqui”, explica Ali. A prisão de Berbera é um prédio escuro construído pelos turcos no século 19. Abdullahi responde às perguntas com frases evasivas. Ele insiste que é pescador e que tem cinco filhos para sustentar. E ele alega receber US$ 200 por mês como pescador, o que é bem mais do que ganha um membro da guarda costeira. Uma nova prisão para os piratas Abdullahi é apenas um dos cerca de 350 supostos piratas que estão em prisões na costa norte da Somália, tanto na Somalilândia quanto na vizinha Puntlândia. Na Somalilândia, em particular, as autoridades estão ansiosas por combater a pirataria com maior intensidade. Com o forte apoio da União Europeia, a Organização das Nações Unidas (ONU) construiu uma nova prisão em Hargeisa, a capital da Somalilândia. As duas organizações investiram cerca de US$ 1,5 milhão no centro de detenção, no qual se encontram atualmente 88 presos, entre suspeitos e piratas condenados. A pirataria tornou-se um problema caro para esta nação marítima. De fato, um estudo recente revelou que a pirataria na costa da Somália e no Oceano índico já deu à comunidade global um prejuízo de quase US$ 10 bilhões. O estudo mostrou também que os resgates médios pagos pelos navios sequestrados subiram de US$ 150 mil para US$ 5 milhões entre 2005 e 2010, e que houve um número recorde de 98 ataques piratas somente entre janeiro e março deste ano. E existem também outros custos: o fato de os navios deixarem de operar, a mobilização de belonaves de vários países, a necessidade de que navios petroleiros e cargueiros façam desvios longos para evitar as zonas perigosas, os processos judiciais e o encarceramento dos piratas. E, agora, empresas de segurança ocidentais descobriram um novo setor empresarial com a pirataria – no valor de milhões de dólares. Alguns dos serviços oferecidos por essas firmas são o estabelecimento de contato e a negociação com os piratas, o apoio aos parentes dos sequestrados e a entrega dos resgates. De vez em quando as coisas não correm conforme o esperado, conforme ocorreu recentemente, quando autoridades somalis prenderam três britânicos, dois quenianos e um norte-americano no aeroporto de Mogadíscio. Quando revistaram as bagagens do grupo, as autoridades somalis encontraram US$ 3,6 milhões em dinheiro vivo, uma soma que deveria ter sido paga pelo resgate de dois navios capturados no ano passado pelos piratas. Os resgates são “um tipo de imposto” Um dos detentos que se encontra na nova cadeia em Hargeisa é Ahmed Muhammed Adam, da cidade portuária de Bosaso, em Puntlândia. Ele foi preso em 17 de abril de 2010, juntamente com seis comparsas. Assim como todos os outros suspeitos de pirataria encarcerados em Hargeisa, Adam alega que é apenas um pescador que trabalha arduamente, e que não tem nenhum vínculo com a pirataria. O motor do seu barco quebrou, e Adam diz que ficou à deriva, afastando-se da costa da Somalilândia em direção ao oeste. Ele conta que foi então que uma fragata estrangeira localizou o seu barco e passou as suas coordenadas para a guarda costeira. Adam foi condenado a 15 anos de prisão. Apesar das suas negativas, Adam forneceu informações surpreendentes sobre a atividade da pirataria. “Quem se lançar ao mar estará assumindo um risco”, diz ele. “E a maioria dessas pessoas sofrerá uma derrota”. Ele acrescenta que, antes de se tornar um negócio lucrativo, a pirataria era uma maneira de lutar contra os navios estrangeiros. Na verdade, o negócio tornou-se tão lucrativo que os altos riscos envolvidos não assustam mais as pessoas. Ele diz também que ninguém deixará de praticar a pirataria porque pessoas como ele veem os resgates como “um tipo de imposto”. Atualmente, muita gente esta morrendo ao largo da costa da Somália, e somente algumas vítimas são identificadas. Em meados de maio, soldados norte-americanos em um helicóptero mataram a tiros quatro piratas somalis quando estes tentavam abordar o super petroleiroo alemão Artemis Glory. A tripulação do navio já tinha repelido vários ataques quando o helicóptero decolou do contratorpedeiro estadunidense USS Bulkeley, e veio em socorro dos alemães. Nos últimos meses, houve alguns episódios similares. Mas eles ainda não contribuíram em nada para reduzir o número de ataques piratas. Ao contrário, conforme afirma o pirata Adam: “Toda vez que morrem 20, sempre há outros 20 para substituí-los”. Os esforços internacionais sob o ponto de vista dos piratas Adam diz também que os piratas utilizaram parte dos seus lucros para adquirir melhores equipamentos. “Eles atualmente possuem embarcações velozes que são capazes de escapar de qualquer navio de guerra”, afirma o pirata. Ele acrescenta que o prestígio obtido pelos piratas com uma captura bem sucedida é enorme. “Quem trouxer um resgate para casa se tornará um intocável”. Sendo assim, não é de se admirar que os piratas que tiveram sucesso em capturar um navio tenham tanto apoio em terra. “Os principais clãs e famílias também estão envolvidos”, diz Adam. “Todos eles”. Ele acrescenta que o Estado não tem mais qualquer influência em Hobyo, um grande centro pirata na costa leste da Somália. “Um ministro recentemente quis conversar com os clãs”, recorda Adam. “Mas ele se deparou com sérias dificuldades já no seu caminho para Hobyo”. Adam está também convencido de que o Estado não tem poder para conter a pirataria. “Na década de noventa, essa atividade ainda poderia ter sido erradicada. Mas a situação mudou. Agora é muito tarde. Os resgates se tornaram muito altos”, explica ele. Lavagem cerebral dos jovens Outro prisioneiro que está em Hargeisa é Ahmad Muhamad Jama. Este homem de 30 anos de idade alega ser um simples pescador e diz que o seu barco tinha simplesmente saído da rota. Embora ele alegue jamais ter encontrado qualquer pirata, Jama afirma que os apoia “moralmente”. Ele também parece estar surpreendentemente familiarizado com o funcionamento da pirataria como negócio. “é muito difícil acabar com essa atividade”, explica ele. “As pessoas são obrigadas a vingar os irmão ou o pai todas as vezes que estes são mortos no mar”. Ele também compara a riqueza advinda da pirataria a uma “lavagem cerebral dos jovens”. De fato, os piratas tornaram-se heróis para vários jovens somalis. Um dos prisioneiros em Hargeisa é Muhammed Yussuf Abdia, de 18 anos de idade, que foi condenado a um ano de prisão por ter atacado o seu pai com um facão. O jovem não esconde o seu desejo de tornar-se um pirata – o “comandante de uma unidade”, nada menos do que isso – assim que for libertado. O seu modelo é Farah Ismail Illie, um dos chefões não oficiais da prisão de Hargeisa. Conversas com os prisioneiros em Hargeisa revelam até que ponto a situação se agravou. Geralmente não há testemunhas dos encontros entre navios de guerra, piratas e os navios mercantes que são os seus alvos. Jama alega ter perdido três parentes. Ele diz que eles saíram ao mar para pescar. “Depois disso, nós nunca mais os vimos”, conta ele. “Somente os destroços do barco foram parar na costa”. Ninguém sabe se o barco foi vítima de um acidente ou se foi atacado por um navio de guerra estrangeiro. “Muitos nunca mais retornam”, diz Adam, companheiro de prisão de Jama. Os prisioneiros de Hargeisa também fornecem um retrato mais nítido da forma como as frotas estrangeiras operam. As tripulações de navios de guerra de todo o mundo preferem prender a menor quantidade possível de piratas. Em vez disso, eles detém os barcos suspeitos e, caso os piratas não tenham ainda se jogado ao mar, os militares confiscam armas, escadas de abordagem de navios e equipamentos de GPS. às vezes eles destroem os motores de popa dos barcos. E algumas vezes fornecem comida e água aos piratas. Um caso famoso envolveu o contratorpedeiro russo Marshal Shaposhnikov. Em maio de 2010, o navio deteve dez somalis depois que estes atacaram um petroleiro russo. Os russos apreenderam as armas e os instrumentos de navegação dos piratas e forneceram a estes um pouco de comida e de água. A seguir eles foram deixados à própria sorte a 600 quilômetros da costa. Os piratas nunca mais foram vistos. Os pescadores lucram com a pirataria Um outro pirata que está preso em Hargeisa conta a história de um navio de guerra russo que deteve o barco dele, marcou-o com tinta, removeu o motor de popa e passou as coordenadas da embarcação para a guarda costeira, que precisaria apenas recolhê-los. Os piratas não são os únicos que lucram com esse negócio próspero; os pescadores também estão se dando bem. Yussuf Muhammed Ahmed, o líder de 39 anos de idade da associação local de 500 pescadores, está no píer de Berbera. “No que diz respeito aos nossos rendimentos, os piratas são uma boa notícia. Se não fossem eles, nós não teríamos nada”, diz Ahmed. Ele explica que os piratas obrigaram as frotas pesqueiras da Espanha, da índia e da Itália a deslocarem-se para outros lugares. O pescador explica que atualmente eles capturam uma quantidade de peixes muito maior do que cinco anos atrás. Somente as populações de peixes de água profunda ainda não se recuperaram. Na pequena área militar do porto, o comandante da base, coronel Ahmed Ali, exibe os membros da sua guarda costeira. O grupo tem uma aparência muito estranha, usando botas bastante gastas e uniformes que não combinam, fabricados no Ocidente e na antiga União Soviética, e tripulando embarcações das quais os piratas podem fugir com facilidade. Com 400 homens e dez embarcações à sua disposição, Ali tem a missão de garantir a segurança de uma faixa costeira de quase mil quilômetros de extensão. Ele prefere não dizer nada sobre as peças de reposição que nunca chegam, a falta de combustível e os salários que sempre chegam com atraso. Ali sabe o que os jornalistas desejam ouvir. “A pirataria é uma calamidade”, diz ele. “Mas se realmente quisermos combatê-la, nós precisaremos de melhores radares para as nossas embarcações, um melhor treinamento e embarcações velozes de verdade”. A seguir, ele acrescenta: “Em vez de gastar bilhões de dólares com a compra de navios de guerra, a comunidade internacional deveria investir em nós. Isso seria bem mais barato”.

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