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União Europeia permanece em silêncio enquanto Hungria se desvia do caminho

Walter Mayr

Partidários do primeiro-ministro húngaro Viktor Orbán dizem que ele tem um estilo de liderança rígido, enquanto os críticos advertem da ameaça de conformidade política forçada, anti-semitismo e campos de trabalho. Enquanto isso, a União Europeia não diz nada, aparentemente aceitando o fato que um Estado membro está saindo do controle. Eles saem de casa às 7h da manhã, carregando enxadas, machados e foices, e sobem um dos morros de Gyöngyöspata, uma aldeia produtora de vinho no Norte da Hungria. São quarenta ciganos e seu supervisor. O grupo de homens e mulheres de pele escura, consistindo de jovens e velhos, adolescentes e viúvas, representa o início de um enorme movimento que acontece atualmente na Hungria. Sob o plano do primeiro-ministro Viktor Orbán de renovação nacional e rearmamento moral, mais da metade de todos os desempregados do país estão sendo postos para trabalhar. Os 40 ciganos de Gyöngyöspata, que nem usam o termo mais aceitável, roma, para se descreverem, receberam o trabalho de arrancar os arbustos de hibisco e capinar por quatro meses. Eles fazem parte dos 300.000 húngaros que logo estarão fazendo trabalho “comunitário” sob uma nova lei, que dita que qualquer um que não tenha trabalho por mais de 90 dias seguidos perde o direito ao seguro-desemprego e à participação no sistema de segurança social. Estarão sendo criados “campos de trabalho forçado” aqui, no meio da União Europeia, como escreveu o jornal “Népszava”? Os desempregados de aldeias remotas estão sendo abrigados em campos de trabalhadores em grandes sítios de construção? Ninguém tem que trabalhar contra a vontade, mas todos os que aparecem para trabalhar recebem um salário mínimo, diz Karoly Papp, secretário de Estado do Ministério do Interior responsável pelo programa. O governo ainda está buscando projetos para colocar o exército de desempregados de volta ao trabalho, a um salário mensal de quase 290 euros (em torno de R$ 690). Falam em construção de represas, plantações de árvores e capinas. A equipe em Gyöngyöspata está capinando 16 hectares de terras públicas para criar espaço para a plantação dos “verdadeiros carvalhos húngaros”, como diz o prefeito local, membro do Partido Jobbik, da direita radical. Um homem de 59 anos chamado Pál diz que fica contente com qualquer trabalho, porque precisa de dinheiro, e golpeia o arbusto com sua foice. Como é trabalhador florestal, ele também sabe que serão necessários 80 anos para se ter ali uma floresta de carvalho de verdade. Mas os frutos da planta de hibisco, as raízes que a equipe está arrancando da terra e cortando em pedaços, podem dar 0,50 euros por kg hoje –se fossem colhidos. Um golpe de Estado de cima para baixo As coisas que o primeiro-ministro Orbán e seus amigos do Partido Fidesz estão receitando nem sempre fazem sentido. Uma coisa está clara, porém: eles estão com pressa. O pacote de leis, ordenanças e diretrizes para definir as políticas de trabalho, que Orbán tirou do nada em apenas 15 meses, parecem as minutas de um golpe de Estado de cima para baixo. O conceito de renovação moral e recuperação econômica de Orbán tem muitos princípios: quem não tiver trabalho receberá trabalho; os que já estão trabalhando devem trabalhar mais no futuro, mas sem receberem mais; no interesse da “estabilidade” do país, os que detêm poder hoje devem ter permissão de continuar no cargo pelo máximo de tempo possível, e os que já tiveram o poder e não o usaram em benefício do povo devem ser punidos. Peter Medgyessy, Ferenc Gyurcsáni e Gordon Bajnai, os três primeiros-ministros sociais democratas da última década, sofrem ameaça de prisão. Houve pouca revolta pública, parcialmente porque muitos eleitores acreditam que foram roubados e enganados pelos “esquerdistas”. Gyurcsány deu um discurso em 2006 que mais tarde foi divulgado para a imprensa no qual confessou não ter dito ao eleitorado a verdade sobre a tensa situação econômica, assim como sobre os acordos imobiliários dúbios. Além disso, o fato da falência nacional só ter sido evitada com a ajuda do Fundo Monetário Internacional e da União Europeia pesa no legado do antigo partido socialista governante. A promotoria está até estudando uma forma de acusar os ex-premiers de “crime político” por incorrerem em dívidas, o que não é considerado uma ofensa estatutária hoje. Orbán e seu partido estão lutando incansavelmente nesta e em outras frentes. Eles querem justificar sua missão de reestruturar radicalmente o Estado, com o que eles chamam de revolução das urnas: em abril de 2010, o Partido Fidesz e seu aliado, o Partido do Povo Cristão Democrata (Kdnp), conquistaram mais de dois terços dos assentos no Parlamento. Muito se passou desde então no arquipélago gulache dominado por Orbán. Membros do Fidesz receberam cargos de longo prazo nos corredores do poder, inclusive a presidência, a promotoria geral e o tribunal de contas, assim como altos cargos nas organizações culturais. Os poderes da corte constitucional e do conselho do orçamento foram abreviados, o Ministério da Cultura foi eliminado e há um movimento em curso pela consolidação da mídia estatal, do audiovisual e das universidades. Tudo isso produz funções para homens como Daniel Papp. Como especialista em mídia e co-fundador do partido radical de direita Jobbik, ele só era conhecido dos iniciados. Em abril, porém, o pálido político de 32 anos foi lançado para a posição de editor chefe do escritório de notícias do fundo novo de mídia Mtva. O Mtva é a organização que cobre estações de rádio e televisão, antes independentes, assim como a agência de notícias MTI. Perseguição dos editores na mídia pública da Hungria Papp está sentado em seu escritório, cercado de estantes vazias, no prédio da rede de televisão estatal, onde ele supervisiona mais de 400 editores de notícias. De fato, ele já demitiu um quarto desses editores, e logo haverá mais demissões. O novo editor geral tem uma expressão enganosamente mansa. Quando perguntado por que os melhores jornalistas, particularmente os mais críticos, estão sendo demitidos, Papp e sua porta-voz respondem em uníssono: “Os melhores ainda estão aqui”. Mas o governo Orbán não delineia claramente suas expectativas sobre como devem ser as reportagens? “Isso é algo que devemos rejeitar categoricamente”, diz a porta-voz. “Esta é uma organização de transmissões públicas. Todo mundo aqui trabalha dando o seu melhor, com seu conhecimento e sua verdade”. Perto de 1.000 funcionários das organizações estatais da mídia devem ser demitidos no final do ano, oficialmente por razões econômicas. Eles vão ficar sem emprego em um mercado que já está sendo abalado pelo declínio na receita de propaganda e por uma lei de mídia que entrou em vigor com a benção da UE, após pequenas mudanças e que oferece várias formas de amordaçar os jornalistas com opiniões pouco bem vindas. Poda na democracia húngara Durante a presidência de seis meses do Conselho Europeu pela Hungria, que acabou em junho, Orbán foi criticado por alguns detalhes desta lei de mídia, mas foi apenas isso. De outra forma, ele pôde continuar a podar a estrutura da democracia húngara. Ele também declarou que ia garantir que a Hungria, que não se permitiu ser mandada por Viena em 1848 ou Moscou em 1956, não aceitaria ordens “de Bruxelas” agora tampouco. Todos seus amigos influentes dos maiores partidos europeus –desde o presidente da Comissão Europeia, José Manuel Barroso, e o presidente do Conselho Europeu, Herman van Rompuy, até o presidente francês Nicolas Sarkozy e a chanceler alemã Angela Merkel –têm boa vontade com Orbán. Eles elogiam o premier em vez de chamarem sua atenção. “No que concerne os alemães, eu não notei esforço algum que pudéssemos interpretar como intervenção”, disse Orbán ao lado de Merkel em Berlim, em maio. “Não é papel da Comissão comentar diariamente os desdobramentos políticos dos Estados membros”, diz Tamás Szücs, cidadão húngaro e representante da Comissão Europeia em Budapeste. Ele teria permissão para comentar a legislação que está sendo proposta pelo governo de Orbán, se esta contradisser os valores fundamentais da UE ou acordos pré-existentes? “Sim”, disse Szücs e, após hesitar um momento, acrescentou: “Tenho permissão para comentar, assim que a Comissão tiver uma posição oficial sobre a questão”. Mas a Comissão Europeia não tem uma posição oficial. Durante uma visita à Hungria no final de junho, a secretária de Estado norte-americana, Hillary Clinton, advertiu Orbán contra o abuso de sua maioria de dois terços. O sub-secretário de Estado, Thomas O. Melia, que foi defensor ativo do Partido Fidesz de Orbán há duas décadas, expressou suas preocupações em uma audiência no Congresso americano em final de julho. Poucos dias depois, a embaixadora norte-americana em Budapeste escreveu uma carta aberta expressando preocupações com um sistema “que favorece permanentemente um partido”. Na última segunda-feira (15/8), dissidentes proeminentes da velha guarda, como os autores György Konrad e György Dalos, escreveram uma carta aberta à vice-presidente da Comissão Europeia, Viviane Reding, na qual protestaram contra a decisão do governo Orbán de reconhecer apenas 14 das mais de 300 comunidades religiosas existentes. Quando perguntamos a Szücs, a voz da UE em Budapeste, se sabia alguma coisa sobre a resposta da UE à carta, ele disse: “Não tenho a menor ideia se a carta chegou. Por mais estúpido que pareça, estão de férias em Bruxelas no momento”. Fundos do governo podem ser cortados Gabor Iványi, pastor metodista que também assinou a carta de protesto, claramente não está de férias. Ele explica o que a nova lei significa para ele e para os outros líderes religiosos. O pai de Iványi combateu os comunistas de Kádár pelo direito de existir dos metodistas e agora o filho, homem poderoso com uma barba branca cheia, preside a denominação. Mas Iványi também é anjo guardião dos mais pobres dos pobres do distrito de Józsefváros em Budapeste. Neste bairro de fachadas depredadas, casas arruinadas com grades nas janelas, onde bêbados moram nas calçadas e nos bancos dos parques, passou a ser ilegal dormir ao relento ou procurar alimento nas lixeiras. Para fazer face às novas regras, Iványi dirige um abrigo, um hospital e um prédio chamado “rua aquecida”, onde os sem-teto podem ir se aquecer. Até agora, os metodistas, como denominação registrada, podiam obter fundos do governo para suas instalações. Mas isso vai terminar se a lei nova prevalecer, diz Iványi. Uma foto autografada da Rainha Elizabeth II, do Reino Unido, está pendurada na parede de seu escritório, uma lembrança da viagem de Estado da rainha em 1993, quando ela também visitou a igreja. O pastor acha difícil crer que os novos líderes da Hungria possam impedi-lo de presidir uma comunidade religiosa. Ironicamente, Iványi conta no fim da conversa que oficiou o casamento do atual primeiro-ministro Orbán e batizou seus primeiros filhos –em um apartamento de porão na rua József Madzsar, em Budapeste. “Viktor mudou completamente, de um jovem quase anarquista para um homem conservador nacionalista de direita”, diz Iványi. Nas fotos de seus tempos de estudante, Orbán parece uma pessoa que, apesar de baixa estatura, tem o potencial de botar fogo no país. O professor László Keri lembra-se do que disse para Orbán no final de uma discussão em 1983: “Você e seus amigos são tão agressivos quanto os filhos de Lênin na República Soviética, como (o político comunista húngaro e revolucionário bolchevique) Bela Kun. Deus permita que você nunca se torne primeiro-ministro”. O desejo solene do professor não se realizou. Orbán agora está em seu segundo mandato como primeiro-ministro, enquanto o cientista político Keri perdeu seu cargo de professor em setembro de 2010. O pensador que, quase 30 anos antes, tinha protegido os jovens ativistas rebeldes do Fidesz, foi oficialmente substituído por questões de idade. Keri é fortemente crítico de seu ex-aluno. “O que me preocupa é como o partido e o Estado estão se fundindo aqui na Hungria. Orbán é a versão húngara de Putin, mas há também um paralelo mais antigo: Gyula Gömbös, primeiro-ministro fortemente influenciado por Mussolini nos anos 30”. Quando Orbán elogia o modelo de “trabalho social”, ele está usando a “linguagem dos anos 30”. “O que está acontecendo aqui é uma opereta de ditadura” Para onde vai o país com este governo? “Não acredito que a Hungria esteja se encaminhando para uma ditadura, apesar de talvez ser isto o que queira Orbán”, diz o professor. “Mas nosso povo tende a ser relaxado, e nossa maior contribuição para a cultura europeia provavelmente foi a opereta. O que agora está acontecendo é uma ditadura de opereta”. Muitos intelectuais e críticos dizem que o plano de Orbán de gerar uma transformação intelectual e moral não vai se sair melhor do que todas as outras revoluções nos últimos séculos e que todo movimento de grande escala tende a se perder na natureza flexível do povo húngaro. “As fiscalizações e o equilíbrio entre os poderes estão sendo eliminadas” A autora e filósofa Anges Heller tem sua própria opinião sobre a atual situação da Hungria: “Sob Kádár, tínhamos o comunismo sem comunistas; a partir de 1989, tivemos democracia sem democratas; e pelo último ano, tivemos conservadorismo sem conservadores. é um reflexo da natureza dos húngaros, eternamente escolhidos e mal compreendidos, sentados em seu acampamento e incapazes de se decidir, porque sua maior preocupação é sobreviver no meio dos inimigos que os cercam”. Heller, 82, com seu telefone celular com capa de Mickey Mouse pendurado no pescoço, foi aluna favorita do filósofo Georg Likacs e passou pelo fim da guerra em Budapeste com a mãe. Ela emigrou para os EUA em 1977 e, desde sua volta a Budapeste, enriquece os debates com suas experiências de vida. Enquanto isso, as publicações antissemitas vêm chamando a cidade de “Judapeste”. Não é necessário cheirar o fascismo por trás de cada arbusto, diz Heller. “A pior coisa é que as fiscalizações e o equilíbrio entre os poderes estão sendo eliminados deste país, e a lei dos puxa-sacos começou”. De fato, ela acrescenta, agora os dissidentes até estão sendo tratados como criminosos. As autoridades húngaras estão investigando Heller e alguns de seus amigos filósofos, conhecidos como a “gangue de Heller”, por embolsarem fundos de pesquisa. Mas Heller, sentada em seu apartamento acima da praça Guttenberg, ri das acusações. O que mais preocupa a sobrevivente do terrível regime da versão húngara do Partido Nazista e dos comunistas, é a sensação inquietante que a turma que hoje governa a Hungria o faz sem “responsabilidade” –e sem um sentido de “que o perigo e violência podem eclodir. Orbán é extremamente seguro de si”, diz Heller. “é uma característica típica de ditadores”.

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