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Especialistas negam possível caso de canibalismo com alemão na Polinésia Francesa

Philip Bethge

  • Reprodução/Daily Mail

    Stefan Ramin e Heike Dorsch em um dos locais paradisíacos que visitaram antes do episódio de suposto canibalismo

    Stefan Ramin e Heike Dorsch em um dos locais paradisíacos que visitaram antes do episódio de suposto canibalismo

No início de outubro, os restos carbonizados de um aventureiro alemão foram descobertos em uma fogueira em uma ilha do Pacífico Sul. A mídia sensacionalista rapidamente retratou a morte como um possível caso de canibalismo em Nuku Hiva, uma ilha historicamente conhecida pelo sacrifício humano. Os moradores, porém, ficaram ofendidos e os especialistas dizem que tais mortes são algo de um passado muito distante. Todas as peças parecem se encaixar. Há o paraíso no Pacífico Sul; há o ilhéu com a tatuagem no peito; há o agradável aventureiro alemão e, finalmente, a terrível descoberta de carne humana carbonizada. Será que os moradores comeram o turista alemão, que estava dando a volta no mundo em um veleiro? Deborah Kimitete sacode a cabeça desgostosa, incapaz de entender a confusão que se abateu sobre sua comunidade nos últimos dias. “Estamos revoltados e magoados”, diz a vice-prefeita da ilha de Nuku Hiva, a maior das ilhas Marquesas da Polinésia Francesa. “O que eles fizeram com essa história é racismo; é um insulto a todos os polinésios”. Kimitete está com uma blusa de algodão branca e o cabelo preso em um rabo de cavalo. Esculturas em madeira decoram seu escritório no prédio municipal de Taiohae, capital da ilha. A pequena cidade é cercada de montanhas íngremes com picos dentados cobertos de vegetação verde exuberante. Demora mais de duas horas para ir dali até o ponto no vale Hakaui onde Stefan Ramin, de 40 anos, morreu. Restos carbonizados em uma fogueira Ramin, velejador de Haselau, cidade próxima a Hamburgo, teria saído para caçar cabras no dia 9 de outubro com o morador local Henri Haiti, 31. De acordo com a companheira de Ramin, Heike D., 37, Haiti voltou sem Ramin e a levou para a floresta e tentou estuprá-la, antes de fugir. Ossos carbonizados, pedaços de carne e dentes depois foram encontrados nos vestígios da fogueira. Eram os dentes de Ramin. Desde então, tudo mudou em Nuku Hiva. Uma unidade especial da polícia francesa, com 17 membros (as ilhas Marquesas são territórios franceses) está procurando Haiti, que está foragido, escondido na mata desde o crime. Enquanto isso, a comunidade enfrenta acusações de ser um grupo de canibais de sangue frio. “As pessoas estão com medo”, diz Kimitete. “Coisas assim normalmente não acontecem nesta ilha”. Nuku Hiva tem apenas cerca de 2.900 habitantes. Há um voo por dia para a ilha, de Papeete, no Taiti. A principal cidade, Taioahae, tem um hotel, duas igrejas, uma escola e algumas poucas lojas. Em meados de setembro, o casal alemão –ela é professora de ioga e ele era consultor de administração- ancorou perto da ilha. Eles vinham velejando pelos oceanos do mundo desde 2008. Ele foi picado pela paixão de velejar cedo na vida e ganhou do pai seu primeiro barco quando tinha 16 anos. O catamarã de alumínio de 14 metros que os dois alemães chamaram de sua “pequena casa na água” nos últimos três anos e meio chama-se “Baju”. Os velejadores escreveram em seu site que o barco estava equipado para descobrir os “paraísos mais remotos da Terra”. Agora, está nas suaves ondas do Pacífico perto de uma praia local. Preparação para o festival local O que de fato aconteceu naquele dia, em que Ramian pediu ao morador da ilha que o acompanhasse em uma caça às cabras, como os turistas fazem frequentemente na ilha? Houve um acidente nas montanhas? Os dois homens brigaram? Não há testemunhas, e o suposto assassino só encontrou-se com Heike D. mais tarde. O alemão Joseph Jaffé conversou com Heike D. Ele se ofereceu como intérprete quando a polícia local tentou questioná-la, e ela estava em estado choque. Mas ele não tem permissão para contar nada sobre o interrogatório. De fato, Jaffé, etnologista e linguista, preferiria não ter nada a ver com a questão. Jaffé está em Nuku Hiva por outro motivo. Para os ilhéus, a história tenebrosa acontece em um mau momento. Eles estão ensaiando para o maior evento cultural das ilhas em anos, e Jaffé é um dos organizadores. Os ilhéus planejam celebrar Mata Va’há, o Festival Olhos Abertos, entre os dias 15 e 18 de dezembro. “Esperamos reviver a cultura tradicional do lugar”, diz Jaffé. “é um novo tipo de busca por identidade”. Cerca de 2.000 dançarinos e músicos são esperados na ilha. O som grave dos tambores vem do centro comunitário perto da prefeitura, onde os moradores estão dançando a Haka Manu, ou “dança do pássaro”. Homens fortes estão batendo os pés a um ritmo poderoso, segurando o U’u, o porrete do guerreiro tradicional das ilhas. Muitos dos dançarinos são tatuados. O suor brilha em seus torsos nus. Sacrifícios humanos do século 19 O fugitivo Henri Haiti também prezava as tradições. E ele também é grande e tatuado. Mas isso faz dele um canibal, como especulou o tablóide alemão “Bild”? Jaffé conhece bem os preconceitos. “Os europeus gostam de dividir o mundo entre bons e maus”, diz o acadêmico. Para os turistas, a história do canibalismo é uma “obsessão”. “Houve sacrifícios humanos aqui”, diz o etnologista. “Não há dúvidas sobre isso.” Mas, acrescenta, tudo isso aconteceu há muito tempo. Além disso, muitas histórias de canibalismo já eram exageradas na época. A.P. Rice, antropólogo americano, descreveu o culto do sacrifício humano das ilhas Marquesas há mais de um século. De acordo com Rice, comer o corpo era considerado um “grande triunfo” entre os ilhéus. Os nativos primeiro quebravam as pernas e braços dos prisioneiros para que não pudessem correr nem se defender. No final, as vítimas eram colocadas em espetos e assadas. O autor americano Hermann Melville, que escreveu “Moby Dick”, também ajudou a criar a imagem de nativos selvagens sanguinários. Após uma viagem a Nuku Hiva, ele escreveu um romance com base em suas experiências, “Typee”. Na obra de 1846, ele descreve um “bacia de madeira curiosamente entalhada” na praça da aldeia. Quando Melville levanta a tampa, ele vê partes de um esqueleto humano, os “ossos ainda úmidos”. “Teoria do Canibalismo” não está sendo levada em conta Mas quanto disso é lenda e quanto é verdade? Certamente não há mais sacrifícios humanos hoje. “A cultura tradicional marquesa foi extinta há mais de cem anos”, diz Jaffé. O último caso de sacrifício humano que se conhece aconteceu em 1880, de acordo com ele. O povo do lugar começou a ser batizado a partir de meados do século 19, e quase foi extinto como resultado de epidemias e do ópio trazido por pessoas de fora. Com a redução da população, seus costumes tradicionais também desapareceram. Em 1842, havia cerca de 12.000 habitantes em Nuku Hiva. Em 1934, só havia 634. Em Taiohae, o Sol agora está se pondo por trás das montanhas entrecortadas, formando desenhos no verde escuro na densa vegetação cobrindo as encostas. A polícia está se aproximando do fugitivo. Foi encontrada uma área na qual um homem vinha dormindo perto de um campo de caça onde comida foi roubada. Haiti, contudo, ainda não tinha sido capturado até o final da semana passada. Ele conhece trilhas de caçadores e cavernas escondidas nas montanhas onde pode dormir sem risco de ser detectado. O ilhéu é acusado de tentativa de estupro, sequestro e homicídio. O único aspecto do caso que está claro é que o corpo de Ramin foi queimado. “A teoria do canibalismo não está sendo levada em conta em nossa investigação”, diz o promotor José Thorel. O pai de Ramin e um amigo foram para Nuku Hiva no final da semana para se despedirem. Pouco após o crime, o pai da vítima, Erwin Ramin, enviou um email ao organizador do festival Mata Va’há. “Temo que vão cancelar o festival”, diz Erwin Ramin. “Pedi que não o cancelassem. Essas pessoas estão tentando reconquistar sua cultura”. Traduzido do alemão por Christopher Sultan e do inglês por Deborah Weinberg

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