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China relembra seus tesouros perdidos

Sheila Melvin

  • Greg Baker/AP - 16.jul.2003

    Visitantes caminham em meio às ruínas do antigo Palácio de Verão de Pequim, na China

    Visitantes caminham em meio às ruínas do antigo Palácio de Verão de Pequim, na China

No começo de outubro de 1860, os comandantes das forças britânicas e francesas em guerra contra a Dinastia Qing da China realizaram uma conferência tensa nos portões do Jardim do Perfeito Esplendor – Yuanmingyuan – na periferia ocidental de Pequim. A vitória estava à mão, o imperador havia fugido numa “turnê de caça outonal”, e a reunião dizia respeito ao seu espólio: cada lado temia que o outro ficasse com mais itens saqueados do imenso complexo. Como principal residência de cinco imperadores Qing, Yanmingyuan continha centenas de palácios, templos, livrarias, teatros, pavilhões, capelas, gazebos e galerias cheias de obras de arte sem preço, antiguidades e itens pessoais. Para garantir uma distribuição equânime dessa propriedade imperial, os comandantes concordaram em nomear “agentes de prêmio” para dividi-la. Seguiu-se uma orgia de saques indiscriminados na qual qualquer coisa que não podia ser carregada era destruída. Então, em 18 de outubro, as forças britânicas receberam uma ordem de Lord Elgin – filho do Lord Elgin que retirou os frisos de mármore do Partenon grego – para dar um golpe final, com fogo, como vingança pelas mortes de prisioneiros britânicos e indianos no cativeiro chinês. Como Yuanmingyuan era tão vasto – cerca de cinco vezes o tamanho da Cidade Proibida de Pequim e oito vezes o da Cidade do Vaticano – foi necessária toda uma divisão de infantaria, com quase 4.500 homens, incluindo quatro regimentos e os 15º Punjabis, para atear fogo. Vigas folheadas a ouro ruíram, tetos de porcelana se deformaram, cinzas encheram os lagos e brasas caíram como neve em Pequim, onde as nuvens de fumaça densas eclipsaram o sol. Ao ouvir as notícias, o convalescente imperador Xianfeng vomitou sangue; menos de um ano depois ele estava morto. “Foi um sacrifício de tudo o que era mais antigo e mais belo”, reconheceu Robert McGhee, capelão das forças britânicas que participou, e defendeu, a destruição. “Tudo se foi, mas eu não sei como me desvencilhar disso.” Um século e meio depois, Yuanmingyuan tem um feito semelhante sobre a China que herdou suas ruínas e é incapaz de esquecer sua glória desaparecida e a dessacralização vingativa. “Yuanmingyuan é a vergonha no coração do povo chinês”, diz Que Weimin, professor do Centro de Pesquisa do Patrimônio Mundial na Universidade de Pequim. “E uma lembrança para o mundo inteiro de que uma destruição do patrimônio humano como esta não deve acontecer novamente.” Mas se a China é compreensivelmente incapaz de esquecer Yuanmingyuan, ela tampouco não se decide sobre qual a melhor maneira de preservar sua memória e suas ruínas. O problema – apelidado de “complexo Yuanmingyuan” por alguns analistas chineses – é refletido em debates infindáveis sobre se devem reconstruir, e nas celebrações contínuas do 150º aniversário de sua destruição, que foram do sagrado até o profano. No nível mais baixo da escala houve uma apresentação gratuita chamada “A Lenda de Yuanmingyuan”, que aconteceu nas noites dos finais de semana na área do Yuanmingyuan no verão passado. Encenada pelo Dragão de Pequim na Trupe Céu de Teatro de Sombras e considerada como “educação patriótica” para crianças, a peça alternava teatro de sombras e anões fantasiados representando as tropas invasoras bravamente contidas por moradores locais usando baionetas e kung fu. Os estrangeiros, interpretados pelos anões usando perucas de lã amarela encaracoladas – eram mostrados como bárbaros corruptos e estúpidos que não sabiam nem falar suas próprias línguas. Ansiosos por ajudar o imperador, os bravos habitantes do vilarejo chinês gritavam repetidamente: “Matem os demônios estrangeiros! Matem os demônios estrangeiros!” Na outra ponta da escala estava a exibição de “Sonhos Perturbados nas Ruínas do Jardim”, que mostrou uma coleção surpreendente de fotos tiradas pelo fotógrafo alemão Ernst Olmer em 1873. As 72 imagens de “Sonhos Perturbados” - que foram mostradas no Museu de Arte Mundial de Pequim durante o verão e serão exibidas no Museu de Arte de Xangai por seis meses em 2011 – foram feitas a partir de 12 grandes negativos em vidro rastreados e comprados por Qin Feng, um jornalista e colecionador nascido em Taiwan. As imagens, que acredita-se serem as primeiras fotos existentes de Yuanmingyuan, retratam afetuosamente os “palácios em estilo ocidental” projetados pelos missionários jesuítas Giuseppe Castiglione (Lang Shining) e Michel Benoit (Jiang Youren). Esses edifícios magníficos sobreviveram ao fogo e ficaram em grande parte intactos porque foram construídos com mármore e pedra, em vez da madeira e telhas usadas na maioria das estruturas do Yuanmingyuan. Situados num canto distante dos jardins, eles foram construídos principalmente como pano de fundo para as fontes hidráulicas que agradavam o imperador Qianlong. As imagens de Olmer são de grande valor para os acadêmicos uma vez que a maior parte das ruínas que ele retrata já se foi, e o retorno dos negativos à China foi bastante divulgado. Um catálogo em chinês e inglês das fotos está disponível. Várias mostras mais baratas que acontecem no Yuanmingyuan até 31 de outubro enfatizam a busca dos dos administradores do parque pela recuperação de tesouros próximos e longínquos. O esforço recebeu mais incentivo durante o aniversário bastante divulgado do 18 de outubro – marcado por uma sóbrio evento nas ruínas – quando funcionários do Yuanmingyuan renovaram os pedidos para o retorno de suas relíquias. Para angariar apoio, uma petição foi colocada dentro do parque para que visitantes a assinem até o ano que vem – o primeiro signatário foi o astro de cinema de Hong Kong Jackie Chan, que será o porta-voz da causa. Uma “Exibição de Reparo de Relíquias” permite aos visitantes observarem os arqueólogos juntarem as peças de cerca de 30 mil porcelanas recuperadas do local. Várias dezenas de relíquias reparadas também estão à mostra. Elas incluem pratos amarelos com o selo do imperador Kangxi; McGhee, o capelão britânico, relatou que essa porcelana imperial amarela era guardada “num armário entalhado na parece, cada xícara enrolada em papel macio e num compartimento isolado, por serem julgadas tão preciosas”. Também está em exibição uma pequena coleção de imagens reparadas de Buda. “Tenho certeza de que multidões de coisas como estas foram descartadas e queimadas”, escreveu McGhee, “porque era inacreditável que eram feitas de ouro, e no entanto eram.” No fundo dos jardins há uma mostra que enfatiza o esforço de Yuanmingyuan para rastrear e catalogar eletronicamente as relíquias pilhadas que estão no exterior. Ela inclui vitrines de vidro que, incisivamente, contêm apenas livros de história da arte uma vez que todos os itens mostrados saíram da China. Yuanmingyuan estima que existam 1,5 milhões de relíquias nas mãos de museus e colecionadores privados fora da China, mas alguns acadêmicos chineses questionam a metologia pela qual esses números foram obtidos. Postêres mostram imagens de relíquias de Yuanmingyuan em coleções estrangeiras – o ornamento de ouro, pérola e rubi de um príncipe imperial no Museu da Filadélfia; a armadura de um imperador Qianlong no Museu de Assuntos Militares Francês; e entalhes em jade no Palácio de Fontainebleu. Uma sala inteira é dedicada a fotografias enormes das cabeças de animais do zodíaco chinês que antes adornavam um elaborado relógio de água projetado por Benoit. Os animais cuspiam águas em turnos por duas horas e em uníssono ao meio dia – um dia era dividido em 12 partes chamadas de “chen” na China imperial, cada um tinha como símbolo um animal. O leilão de vários desses elaborados chafarizes no mercado internacional nos últimos anos causou indignação na China e foi visto como uma lembrança ainda maior da humilhação do país pelas mãos estrangeiras. Outra mostra traz relíquias que foram devolvidas a Yuanmingyuan por vários indivíduos e organizações em Pequim. Trata-se principalmente de pedras entalhadas que eram muito pesadas para serem levadas para muito longe, mas podiam ser arrastadas pela cidade. Embora existam várias dezenas de relíquias devolvidas à mostra – como dois peixes de pedra com olhos arregalados, bocas abertas e nadadeiras que foram devolvidos em novembro de 2006 pelo Departamento de Organização do Partido Comunista e o “cidadão Li Shaomo” - muitas mais continuam espalhadas pela cidade. Elas incluem dois terraços de pedra que faziam parte da famosa fonte que alimentava o relógio de água e que agora estão no terreno da Universidade Peking. Por fim, uma perda tão grande quanto a de Yuanmingyuan pede algo que a China nunca superará – e é compreensível. Até McGhee, que continuava insistindo na “dura porém justa necessidade” de destruição, confessou isso. “Adoro me perder na memória, mas não posso fazer com que você veja”, escreveu. “Um homem precisa ser um poeta, um pintor, um historiador, um virtuose, um acadêmico chinês, e eu não sei quantas outras coisas além disso, para lhe dar uma ideia daquilo, e eu não sou nada perto disso. Mas sempre que pensar sobre beleza e bom gosto, habilidade e antiguidade, enquanto eu viver, verei diante dos olhos da minha mente alguma cena daquele lugar, daqueles palácios.”

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