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Ao fazer reformas necessárias, França mostra sua melancolia

Dominique Moïsi

Paris (França)

  • Philippe Laurenson/Reuters

    Motoristas de caminhões de combustíveis fazem fila para abastecer enquanto trabalhadores de refinaria fazem greve em Fos-sur-Mer, perto de Marselha, na França

    Motoristas de caminhões de combustíveis fazem fila para abastecer enquanto trabalhadores de refinaria fazem greve em Fos-sur-Mer, perto de Marselha, na França

Houve um tempo, não muito distante, em que a França exerceu um inegável papel de liderança na construção política da Europa. Claro, a Europa era vista então em Paris como o instrumento para prolongar a "Grandeza Francesa" por outros meios. A França está exercendo hoje novamente o papel principal, mas desta vez no inexorável declínio da Europa? é claro, os franceses não são os únicos a ir às ruas para demonstrar suas frustrações pelo muito adiado processo de reformas. Os gregos também são bons nisso. E os italianos e espanhóis, para não falar nos belgas envolvidos em um divórcio irresponsável - todos estão contribuindo com sua parcela para o processo de decadência. Mas a França continua sendo um caso especial. A "Grande Nação" - como ela se vê e gosta de lembrar aos membros menores da União Europeia, caso eles tenham esquecido - tem um papel único, tanto em termos objetivos como subjetivos. Pois a França é a herdeira da grande tradição estadista encarnada na pompa e glória de "Versalhes", assim como do grande momento histórico que é sua outra face, a "Revolução Francesa". Juntos, eles formam o poder de forçar e o poder de contestar. O que é tão notável no atual turbilhão francês é como ele era previsível em retrospectiva. A dificuldade de se reformar a França - dificuldade, não impossibilidade, pois o processo de reformas provavelmente será efetuado, embora não se saiba a que custo - é produto de uma série de "encontros infelizes". O primeiro encontro é constituído pelo triângulo entre sindicatos muito fracos, um presidente muito impopular e uma oposição amplamente irresponsável. Os sindicatos estão desesperados para não perder sua base e não estão tanto liderando quanto seguindo, com o risco de comportar-se de maneira irresponsável, embora ainda não agindo com radicalismo suficiente para os extremistas. Ao contrário do primeiro-ministro britânico, David Cameron, que é novo no cargo e governa em coalizão com os liberal-democratas, Nicolas Sarkozy parece gasto e rejeitado depois de apenas três anos no poder. Dizer, como fazem seus propagandistas, que o presidente francês é apenas um bode-expiatório para os adversários da reforma é, no melhor dos casos, um exagero. Sarkozy contribuiu de maneira desnecessária e irresponsável para seu próprio isolamento. Ele é rejeitado, no mínimo, tanto por sua "essência" quanto por sua encarnação das reformas muito impopulares mas terrivelmente necessárias. Quanto à oposição, poderia ter-se comportado de maneira unida, clara e responsável. O mínimo que se pode dizer é que ela não o fez, preferindo jogar um jogo populista de esperar para ver, destinado a consolidar seu próprio poder, em vez de defender os interesses do país em longo prazo. O segundo "encontro infeliz" é entre o temor da população e o cinismo das elites. Quando se veem jovens representantes de estudantes secundários na televisão francesa explicando por que eles vão às ruas (para defender suas futuras aposentadorias), somos tomados por uma profunda sensação de fatalismo. Seu temor do futuro, sua falta de confiança em si mesmos, contrastam acentuadamente com a combinação de energia e esperança que caracteriza seus jovens pares chineses e asiáticos. Em vez de ponderar como reabilitar a nobreza do trabalho, os franceses o chamam de "exploração" e defendem desesperadamente seu direito a uma segunda vida - depois do trabalho. Tendo abandonado qualquer esperança de mudar sua primeira vida, eles se agarram à duração da segunda. O problema é que o "medo da população" não é contido ou pelo menos equilibrado pela clareza pedagógica e a coragem das elites. As elites tornaram-se tão terrivelmente cínicas, e de modo tão visível, que é difícil acreditar nelas quando alegam que estão agindo pelo bem público, e não em defesa de seus próprios interesses. Sarkozy, diga ou faça o que quiser, terá dificuldade para ser aceito como um Cincinato moderno, pronto a abandonar o poder para voltar à nobre tranquilidade da vida privada depois de impor as reformas certas a seu país. Mas, para um francês que passa a vida estudando as complexidades do mundo, a França continua sendo um país fascinante. Em nenhum outro lugar, ao que parece, o contraste entre a alta qualidade de vida e o desânimo dos cidadãos é levada a tal extremo. A qualidade dos serviços públicos - com exceção da educação, que vem declinando há algum tempo - é notavelmente alta, do sistema de saúde ao transporte público. E a qualidade de vida nesse país tão grande, diversificado e rico continua notável, embora a França tenha se tornado mais um "lugar para estar" do que um "lugar para fazer". Poucos dias atrás tive a oportunidade de comparar a vida em dois países emergentes, ao viajar de Kazan, capital da república autônoma do Tatarstão, na Rússia, para Marrakech, no Marrocos. é claro que as condições de vida lá não tinham nada a ver com as da França - em todos os sentidos do termo, a vida era muito mais difícil lá do que nesta "Grande Nação". Mas os dois países emergentes tinham algo em comum - um lampejo de esperança. Esse não é o caso da França, país que parece fazer questão de se agarrar a sua "Medalha de Ouro de Melancolia". Esta França é um símbolo e um fator do declínio mais amplo europeu? O problema é algo unicamente francês, que se ergue em forte contraste com a outra Grande Nação, a Alemanha, e oferece um modelo do que a Grã-Bretanha deve evitar ao embarcar no caminho das reformas? (Dominique Moïsi é assessor sênior no Instituto Francês para Relações Internacionais - Ifri e autor de "The Geopolitics of Emotions".)

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