Exclusivo para assinantes UOL

A relação entre EUA e Inglaterra é especial demais para palavras

Roger Cohen

Em Londres (Inglaterra)

  • Revista Adega

    O presidente Barack Obama brinda com a Rainha

    O presidente Barack Obama brinda com a Rainha

A visita de Estado do presidente Obama a este país provocou muita agonia neurótica sobre se os laços britânico-americanos ainda eram especiais ou meramente essenciais e, se este fosse o caso, como. A rainha, em uma rara reação à opinião pública, calou a agitação. Ela declarou que o relacionamento era “testado, provado e –sim– especial”.   Caso encerrado: ninguém discute com a rainha. Ninguém também discute com os funcionários americanos de protocolo. O presidente transmitiu o quanto considera o relacionamento especial ao conceder relevância zero à União Europeia em um discurso ao Parlamento, que enalteceu o Ocidente, da Magna Carta até a Otan na Líbia. Foi uma reinterpretação ousada da história recente. Mas não há modo mais certo de convencer os conservadores britânicos de que eles e sua ilha são especiais.   (O brinde de Obama à rainha, no Palácio de Buckingham, também foi especial. Ele cometeu uma gafe nos acordes iniciais de “Deus Salve a Rainha” –o hino nacional– antes de perceber a indiferença fria da rainha enquanto ele erguia sua taça no meio do hino. Um morder de lábio de arrependimento, de intensidade quase clintoniana, ocorreu instantaneamente após um segundo “à rainha”, murmurado ao final do hino. Aqueles pobres funcionários de protocolo devem ter se contorcido.)   No dia seguinte sob o teto de madeira de Westminster Hall, um local que dá a impressão de que a Magna Carta recebeu cobertura nos jornais de ontem (“Magna Carta é Assinada!”), Obama descreveu a liderança britânico-americana como central para o futuro do mundo. De novo a Europa foi deixada de lado por “les anglo-saxons”. As relações entre os Estados Unidos e a União Europeia são tão distantes de especiais quanto a Grécia está da solvência ou Luxemburgo de empolgação.   é claro, o laço entre os Estados Unidos e o Reino Unido é especial. De fato, não é exatamente um relacionamento, mas um continuum.   A transferência de controle imperial provou ser suave o suficiente para preservar uma influência britânica desproporcional no mundo, por meio do irrequieto primo americano. O poder foi passado por osmose para forjar o precioso mundo anglo-americano.   Pessoas como Piers Morgan, Christiane Amanpour e Anna Wintour cruzam o oceano, assumem programas de TV e revistas sem nem mesmo precisarem mudar de língua, e o restante do mundo corre atrás, adotando um inglês simplificado, a terrível língua franca global. Eu vi George Clooney em um restaurante daqui outra noite, e posso relatar que ele parecia especialmente em casa, até mesmo quando foi recebido com desalento ao pedir um “early bird special” (jantar servido antes do horário tradicional).   Alguns especiais não atravessam o oceano.   Quanto ao tema do continuum, há todo esse lance Nova York-Londres. é difícil saber onde Nova York termina e Londres começa. As duas cidades improvisam em um riff global semelhante. Na verdade, elas são as únicas duas cidades globais.   Paris é paroquiana em comparação, presa na contemplação de sua beleza estática, e Berlim tem ópera e uma história sobrecarregada, mas não tem dinheiro. Quanto a Mumbai, Xangai e São Paulo, elas estão “crescendo em saltos”, como Obama disse sobre as potências emergentes, mas adolescentes são assim mesmo.   Não, apenas Nova York e Londres estão disputando mano a mano o título de maior cidade do mundo. Ambas possuem o espectro completo: da ciência à medicina, das finanças às artes. Ambas são vertiginosamente abertas ao mundo. Elas não têm complexos históricos, como Viena ou Roma. Elas atraem dinheiro porque o dinheiro busca continuidade e o Estado de direito. Elas são supercentros de redes globais. Elas são confiantes em seu brilhantismo, piscando uma para a outra de um lado a outro do oceano, London Eye ao Chrysler Building: “Olhe para mim, veja como sou especial”.   Conceder o prêmio é difícil. As pessoas se divertem em Londres. Elas bebem. Elas riem. Elas não passam o jantar falando de dinheiro, imóveis e em que escola Caleb, de 3 anos, passou por um teste e conseguiu entrar. A conversa vive. Há pouco da invasão e competitividade de Nova York que murcha a alma.   Mas também há menos intensidade; e intensidade –pense em “Potsdamer Platz” de Kirchner antes de Berlim ter expulsado os judeus– define a supermetrópole magnética. Londres ainda se importa em algum nível com de onde você veio –seu charme e maldição. Apesar de haver muito poder em Londres, há ainda mais do outro lado do oceano, em um país ainda jovem. E assim eu opto por Nova York, estruturada para o futuro.   No continuum anglo-americano, entretanto, isso pouco importa. E há obstáculos na travessia do oceano. O dia começa aqui com suco de laranja “with bits” (com pedaços), em vez de “pulp” (polpa), você então deve “alight” (descer, desmontar) do ônibus no “argy-bargy” (disputado) “pavement” (calçamento) muito estreito de Londres, onde você provavelmente trombará com alguns “tossers” (idiotas), que “are not really your bag” (não são do agrado), até que uma cerveja te deixa “sorted” (animado), “no worries” (despreocupado), e uma segunda “wipes away the cobwebs” (tira as teias de aranha), permitindo que você volte para casa de bom humor, apesar de “knackered” (acabado).   Obama cruzou habilmente esse campo minado linguístico e, em um discurso fora isso desinteressante sobre a Anglo-America e a liberdade (é hora, eu diria, de dar uma trégua às praias da Normandia), notou que ele, o presidente do país mais poderoso do mundo, é “neto de um queniano que serviu como cozinheiro no Exército britânico”.   Isso é especial. Isso fala de abertura e dinâmica, fundações da vitalidade do relacionamento especial. Nada é mais digno de ser defendido. A travessia do Canal da Mancha continua sendo mais distante do que a do Atlântico.

UOL Cursos Online

Todos os cursos