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O Titanic e o fim de uma era

Roger Cohen

Em Londres (Inglaterra)

  • AP File Photo

    Foto de 10 de abril de 1912 mostra registro do começo da viagem do Titanic

    Foto de 10 de abril de 1912 mostra registro do começo da viagem do Titanic

Eu estava outro dia em um trem lotado, na hora do rush, quando meus olhos viram uma manchete em um dos tabloides gratuitos que ajudam a passar o tempo no Metrô: “Cardápio do último almoço do Titanic deverá chegar a 100 mil libras em leilão”.   é muito dinheiro por um cardápio, mas parece não haver limite para o fascínio pelo Titanic. De fato, eu me vi me inclinando para ler o que os passageiros da primeira classe, da viagem inaugural de Southampton a Nova York, comeram em 14 de abril de 1912, há um século no mês que vem.   Havia cockie leekie (uma sopa de galinha e alho-poró); ovo a l’Argenteuil (ovos mexidos com pontas de aspargos), torta de vitela e presunto; anchovas norueguesas; língua de boi enlatada; costeletas de carneiro grelhadas com purê de batata, batata frita ou assada; e pudim de creme. A bebida recomendada: um chope gelado de Munique.   De algum modo tudo isso era cativante, vislumbrado no metrô de Londres cem anos depois. Eu podia ver Ruth Dodge de San Francisco, a esposa de Washington Dodge, um banqueiro bem-sucedido, mãe de Washington Jr., guardando o cardápio em sua bolsa, uma pequena lembrança, como ela deve ter pensado na ocasião, de um intervalo feliz.   Eu digo “intervalo feliz”, mas é claro que não posso ter certeza disso, mesmo antes do desastre atingir o grande transatlântico e transformar aquelas costeletas de carneiro em algo mais.   Se aquele foi ou não o último almoço dependeu muito do gênero da pessoa. Apenas 33% dos homens da primeira classe sobreviveram, em comparação a 97% das mulheres da mesma classe. “Mulheres e crianças primeiro” significava algo. A taxa geral de sobrevivência para os homens foi de 20%, contra 74% para as mulheres. Quanto mais baixa a classe de viagem, mais baixas eram suas chances.   Mas é claro que esses números são um produto de uma visão retrospectiva. Os Dodges não tinham ideia do que estava prestes a lhes acontecer; nenhuma das mais de 2.200 pessoas a bordo tinha. A vida, como notou Kierkegaard, é vivida olhando para a frente, mas entendida olhando para trás –se você ainda estiver por aqui para compreendê-la.   Olhar para trás para a carga condenada do Titanic --os ricos com vidas bem-sucedidas, e os humildes seguindo para o Novo Mundo à procura de uma-- é como olhar para velhas fotos em preto-e-branco. Acima de tudo, nos chama a atenção quão efêmeras são as expressões, tão cheias de vitalidade no momento; e a brevidade das próprias vidas. Foi Roland Barthes que observou que, “quer o sujeito tenha ou não morrido, toda fotografia é essa catástrofe”.   No caso do Titanic, a catástrofe veio com uma rapidez inconcebível. Qual seria, eu me perguntei naquele trem de metrô lotado, a explicação para esse fascínio? Em parte é essa rápida transição de rotina ronronante para uma desorganização em pânico, o mesmo no Titanic há um século quanto nas Torres Gêmeas há uma década, com contagens regressivas semelhantes do impacto até a implosão deixando uma hora ou duas para reflexão agonizante, e a forma como isso nos recorda do turbilhão sempre à espreita atrás da ordem. O Titanic era inafundável. Logo, seu destino prova que nada é.   Talvez o cardápio sugira outro fator em nosso fascínio. O Titanic afundou no final de uma era e às vésperas da catástrofe na Europa.   Hoje, a própria linguagem --“cockie leekie”-- evoca o crepúsculo da era eduardiana, antes do estouro da Primeira Guerra Mundial e da Revolução Bolchevique, e antes dos choques de classes e ideologias que os vários deques do Titanic buscavam manter sob controle. Esses choques se tornariam o coração trágico do século 20. No jantar na primeira classe naquela noite o sétimo prato era pombo assado sobre folhas de agrião: é o bastante.   Hoje, no início de outro século novamente marcado pela guerra, nós não sabemos quão longe o evento de 2001, que mudou a era, lançará sua sombra. Mas de novo, como na confusão no Titanic, nós temos pessoas tentando conjeturar as conjeturas de pessoas que também não sabem, e o potencial para desastre em pelo menos uma região do mundo é real.   Neste aniversário há novas séries de TV e livros sobre o Titanic. O filme de James Cameron será relançado em 3D. é difícil ligar o rádio em Londres sem ouvir Celine Dion. Há cruzeiros memoriais --alguns com 50% de desconto!-- partindo de Nova York e Southampton até o local onde 1.517 almas foram perdidas (muitas, assim como nas Torres Gêmeos, sem deixar qualquer traço).   Eu não tenho dúvida de que em 2101 haverá um frenesi semelhante de comemoração do 11 de Setembro, fornecido a qualquer dispositivo de sua escolha ou mesmo diretamente ao seu cérebro, por meio do chip em seu antebraço. Não me incomoda o fato de que não estarei lá para ver.   Theodor Adorno, o sociólogo alemão, comentou que memória é a única ajuda que resta aos mortos.  “Eles falecem e ingressam nela”, ele escreveu, “e se toda pessoa morta parece como alguém que foi assassinado pelos vivos, então ela também é como alguém cuja vida eles devem salvar, sem saber se o esforço será bem-sucedido”.

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