Flagrado em atos de corrupção, mercado de construção vira alvo de empresas estrangeiras
O quadro de corrupção no segmento de construção pesada do Brasil, revelado e combatido pela Operação Lava Jato, poderá transferir o mercado nacional de grandes obras de infraestrutura para empresas estrangeiras.
Investigadas na Justiça e pressionadas financeiramente por causa de sanções administrativas e criminais, as grandes empreiteiras nacionais de construção, como Odebrecht, Andrade Gutierrez, Queiroz Galvão e Camargo Corrêa, deixam um vazio no mercado. Empresas chinesas de construção já assumiram obras e serviços, principalmente no segmento de energia, e começaram aquisições de companhias nacionais.
Por exemplo, a estatal chinesa do setor de energia State Grid concluiu a aquisição, em janeiro deste ano, da CPFL Energia, que atua no interior de São Paulo, assumindo as participações da construtora Camargo Corrêa e de um grupo de fundos de pensão, incluindo Previ (Banco do Brasil) e Petros (Petrobras). No negócio, a State Grid também fechou a compra da CPFL Renováveis, pertencente à CPFL Energia. O montante das transações chega a mais de R$ 14 bilhões.
Os chineses da State Grid também venceram concorrências públicas e estão construindo os linhões que vão distribuir a energia da usina de Belo Monte, no Pará, para a região Sudeste.
Outro negócio já concluído foi a compra do controle, pelos chineses da gigante estatal do setor de construção CCCC, da empresa de engenharia de projetos Concremat, por R$ 350 milhões. O negócio foi aprovado no fim do ano passado. A Concremat também aparece nas denúncias da Lava Jato. Há outras negociações em curso de mais ativos pertencentes a envolvidos nas investigações da força-tarefa.
A ampliação da presença estrangeira é recebida com atenção por entidades brasileiras da construção e da engenharia e analistas independentes procurados pelo UOL. Para eles, o combate ao método que incorporou sistemicamente propinas a políticos e caixa dois, sendo agora desvendado pela Lava Jato, investigação com foco em contratos de obras e serviços da Petrobras e desdobramentos para outras estatais, já mostra consequências no segmento de construção pesada.
Apogeu e queda de um império
É uma situação complicada para as grandes empresas da construção pesada, que, em 2013, experimentavam o seu grande momento desde a redemocratização do país. Ainda não havia a Lava Jato e o primeiro delator de desvios de recursos da Petrobras, o ex-diretor de Abastecimento Paulo Roberto Costa, somente revelaria como funcionava o esquema em agosto de 2014, envolvendo propinas pagas a políticos e a diretores da estatal, financiamento de campanhas políticas via caixa dois e formação de cartel.
Essas empreiteiras faziam obras milionárias, ou bilionárias, nos 12 estádios para a Copa do Mundo de 2014, com execuções viárias nos entornos deles; construções de grandes plantas energéticas, como as usinas hidrelétricas de Belo Monte, no Pará, e de Santo Antônio e Jirau, em Rondônia; remodelação do centro histórico do Rio, já dentro da proposta da Rio-2016; entre outros projetos de infraestrutura.
Somente as reformas e as construções dos estádios da Copa custaram, ao final, R$ 8,3 bilhões, segundo o Ministério do Esporte, quando os custos tinham sido estimados pelo governo em R$ 2,2 bilhões, em 2007, e em R$ 3,67 bilhões, em 2009 --variação de mais de 270% do valor inicial estimado.
O emprego na construção pesada (excluindo o segmento de construção civil de residências e edificações) batia recorde: em dezembro de 2013, empregava, formalmente, 1,059 milhão de trabalhadores, praticamente o dobro de 2006, quando 562 mil atuavam formalmente nos canteiros do país, segundo dados do Ministério do Trabalho. Procuravam-se mais engenheiros, disputados já nas faculdades pelos novos projetos que saíam do papel.
Hoje o cenário virou de ponta-cabeça. Alguns dos principais dirigentes das construtoras, empresários até então intocáveis, enfrentam processos judiciais, foram condenados e até presos, como Marcelo Odebrecht, da Odebrecht, e Léo Pinheiro, da OAS.
Pressionadas, as grandes empresas da construção pesada estão reconhecendo condutas ilegais e buscando acordos para poder voltar ao mercado.
Com obras paradas, o desemprego na área cresceu. Em dezembro de 2016, estavam formalmente na construção pesada 686 mil trabalhadores, uma queda de 35% em relação ao nível de emprego de dezembro de 2013. Até novembro do ano passado, foram demitidos 46.100 engenheiros e contratados 27.828, um saldo negativo de 18.272 vagas formais.
ONG Contas Abertas vê "saudável oxigenação" do mercado
"Em relação à construção da infraestrutura, o que está em curso é a destruição da nossa capacidade gerencial, administrativa e tecnológica acumulada ao longo de mais de seis décadas. Está se arrasando a capacidade da engenharia brasileira. É um retrocesso inimaginável", diz Pedro Celestino, presidente do Clube de Engenharia, com sede no Rio de Janeiro, a mais antiga associação de engenheiros do Brasil, com 136 anos de atividade.
No sindicato nacional que reúne e representa os grandes nomes da construção pesada, o Sinicon (Sindicato Nacional da Indústria da Construção Pesada), também há preocupação. "Uma empresa demora 30, 40 anos para conseguir fazer obras de grande capacidade. Temos de preservar isso. É preciso punir com rigor merecido as pessoas [envolvidas em desvios], mas não quebrar as empresas. A sede punitiva é positiva, mas não a custo de liquidar tudo", afirma Petrônio Lerche, diretor do Sinicon.
É verdade, sim, que outras empresas [de construção] vão ocupar espaços, mas não todos
Petrônio Lerche, diretor do Sinicon
Discorda Gil Castello Branco, economista e secretário-geral da ONG Contas Abertas, que fiscaliza as contas de governos em todos os níveis e assume a visão da sociedade civil: "A opinião dos empresários cartelizados não é a opinião do segmento como um todo".
Segundo ele, há outras empresas de construção querendo ingressar no mercado de grandes obras públicas e "só não puderam porque as empresas do cartel não permitiram". Por isso, defende que o governo incentive o crescimento das pequenas e médias empresas da construção. "É saudável, vai oxigenar o mercado." E também recuperaria, diz, o senso de realidade perdido dos preços dos projetos de infraestrutura.
É que historicamente as grandes obras públicas foram direcionadas, já nas especificações e exigências inscritas nos processos de licitação, para as mãos das grandes empresas da construção, com capacidade reconhecida de gerenciar projetos de complexidade alta, obter recursos e se financiar.
Além disso, conforme revelado pela Lava Jato e reconhecido pelas próprias grandes construtoras, havia acertos de preços e rateios de obras entre essas empresas, definindo, assim, antecipadamente quem ganharia certa concorrência ou de que forma o projeto seria dividido. A formação desse cartel impedia o ingresso de outros competidores, incluindo estrangeiros, e produzia valores de obras superfaturados, que não correspondiam à realidade dos projetos.
Por um reposicionamento do mercado de construção pesada mais ou menos como o delineado pela Contas Abertas também trabalha o SindusconSP (Sindicato da Indústria da Construção Civil do Estado de São Paulo), entidade que reúne as pequenas e médias empresas da construção paulista, segmento afetado muito mais pela crise econômica do que pela Lava Jato.
Segundo José Romeu Ferraz Neto, o presidente da entidade, a ideia é fazer com que seus associados possam participar dos certames dos grandes projetos. O SindusconSP defende a abertura desse mercado às pequenas e médias via loteamento ou fatiamento maior das obras dos grandes empreendimentos na hora de licitar. "Mas isso ainda não aconteceu", lamenta Ferraz Neto.
"Tem que punir mesmo, e duro, mas sabendo separar as coisas"
Paulo Resende, coordenador do núcleo de estudos de logística, suprimentos e infraestrutura da Fundação Dom Cabral, afirma que a engenharia brasileira é referência internacional na execução de grandes obras de construção civil, experiência adquirida a partir dos grandes projetos de infraestrutura dos anos de 1960 e 1970, como a usina hidrelétrica de Itaipu, localizada no rio Paraná, na divisa entre Brasil e Paraguai, e a ponte Rio-Niterói, sobre a baía de Guanabara.
Para o analista da Dom Cabral, o escândalo de corrupção trazido à tona exige de toda a população uma nova consciência daqui por diante, mais equilibrada: "A sociedade precisa procurar amadurecer a ideia de separar o joio do trigo. É o nosso grande desafio. Se conseguirmos, teremos aprendido a lidar com qualquer outro escândalo. Não abrindo mão da punição nunca, porque tem que punir mesmo, e duro, mas sabendo separar as coisas".
É também de preservação da "banda boa" das grandes construtoras a posição de Marcos Melo, professor de finanças do Ibmec do Distrito Federal e especialista no mercado de infraestrutura, que valoriza o saber produzido por elas.
"(As grandes construtoras) movimentam uma diversidade muito grande de recursos e pessoas e detêm tecnologias e conhecimentos únicos. A quantidade de técnicas desenvolvidas pela Odebrecht, por exemplo, é muito grande. Quando a empresa se desfaz, isso se perde, porque as pessoas só são capazes de levar uma parte disso", afirma Melo.
O professor sublinha que foi um longo processo para a formação e amadurecimento dessas empresas e sua queda não acontece sem consequências duras. "Em quanto tempo outras empresas vão poder ocupar esse lugar?", pergunta.
Não se cria uma capacitação gerencial, tecnológica e financeira da noite para o dia. Isso é que nós estamos jogando fora
Pedro Celestino, do Clube de Engenharia
"Que essas empresas [envolvidas] prosseguissem, com faturamento menor, e tivessem a possibilidade de se reinventar. Com mais governança corporativa, com políticas de compliance [de conformidade, com regras disciplinadoras e éticas mais rígidas] mais estruturadas", afirma Paulo Resende, da Fundação Dom Cabral.
Para Gil Castello Branco, da Contas Abertas, o momento agora é de as grandes construtoras da Lava Jato fazerem o "dever de casa". Inclui, diz, a venda de ativos e participações adquiridos em diversos setores da economia com facilidades proporcionadas pela corrupção, como garantias de obras e de financiamentos públicos e privados. "A casa delas caiu e devem agora se ater ao tamanho real de uma construtora e competir no mundo real, porque, todos esperamos, a fantasia do cartel acabou."
Abertura aos estrangeiros?
Mas, se a crise geral das grandes da construção pesada se aprofundar ainda mais, levando até a pedidos de falência, o que vai acontecer? Interromperá o desenvolvimento da própria engenharia brasileira como um todo? Produzirá um vazio de serviços a ser ocupado provavelmente por grandes construtoras estrangeiras, além das que hoje têm participação relativa no Brasil, normalmente associadas ao capital nacional?
Para Paulo Resende, da Dom Cabral, o "vazio de oferta", somado à participação menor do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) como investidor em infraestrutura, estabelece o "jogo do mercado". "O que acontece é que isso abre caminho para as grandes empresas internacionais, e as consequências disso nós não sabemos."
Marcos Melo, do Ibmec-DF, identifica que já há uma movimentação notável das grandes empresas de infraestrutura estrangeiras no Brasil, que pode incluir a própria compra de construtoras brasileiras, e isso seria natural.
Há quem veja com bons olhos o aumento da participação de estrangeiros na construção nacional: "Não vejo prejuízo, porque as estrangeiras contratam mão de obra brasileira e trazem novas tecnologias", exemplifica Gil Castello Branco, da Contas Abertas.
"Nada indica que as construtoras estrangeiras são menos corruptas que as nacionais. Pelo contrário, situações como o contrato envolvendo a holandesa SBM com a Petrobras [questionado judicialmente] e o cartel do metrô de São Paulo [que incluiu as estrangeiras Siemens, Alstom e Bombardier, entre outras] evidenciam como firmas de fora também são alvos de investigações por ter cometido aparentemente atos ilegais", afirma o historiador Pedro Campos, professor de história da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e autor do livro "Estranhas Catedrais: As Empreiteiras Brasileiras e a Ditadura Civil-Militar", em que investiga as relações históricas das grandes construtoras com governos.
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