Tribunal paulista paga salário até para juiz afastado condenado por matar a mulher
Uma coincidência une 12 magistrados presentes na folha de pagamentos do Tribunal de Justiça de São Paulo no mês de julho: eles recebem seus salários, mas nenhum deles pode trabalhar. A situação é consequência de penalidades e condenações aplicadas nos últimos 25 anos e que nunca foram reconsideradas.
Em julho, o TJ pagou em salários R$ 307.497,78 para 12 magistrados nesta situação --11 deles afastados por supostas irregularidades administrativas e outro após condenação por homicídio.
Pelo menos três pedidos tramitaram no CNJ (Conselho Nacional de Justiça) para que esses juízes retomassem suas funções. Em 2016, o conselho decidiu que eles poderiam ser reaproveitados, desde que passassem por uma reciclagem, o que incluiria prestar um novo concurso. Como os juízes não concordaram com essa última determinação, o processo voltou à estaca zero.
Segundo o Tribunal de Justiça de São Paulo, a chamada “disponibilidade” --quando o juiz punido é afastado da função-- é uma das penas aplicadas pelo Judiciário. A pena mais alta é a aposentadoria compulsória.
“Aos magistrados cujas penalidades supramencionadas sejam aplicadas, poderão receber vencimentos parciais ou integrais, dependendo da situação no momento da aplicação da pena”, diz o tribunal.
O juiz afastado só perde os vencimentos se a pena aplicada for a de demissão --o que não ocorreu em nenhum dos casos. Com isso, eles continuam contribuindo para a previdência.
“O magistrado que vier a aposentar-se poderá perceber vencimentos integrais, desde que preenchidos todos os requisitos para esse fim no momento da aposentação”, afirma o TJ, em nota, sobre os magistrados.
Condenado em 2002, ainda com salário integral
Um dos beneficiários desses salários é o juiz Marco Antonio Tavares, 62. Em 2002, ele foi condenado a 13 anos e 6 meses de prisão pelo assassinato da mulher, a professora Marlene Aparecida Tavares. O crime aconteceu em agosto de 1997. Ele cumpriu pena no Regimento de Cavalaria 9 de Julho antes de ser beneficiado com o regime aberto. Seu salário, hoje e sem atuar como juiz, é de R$ 27.500.
Na mesma sentença pelo homicídio, Tavares também foi condenado a perder o cargo, mas os registros oficiais do tribunal, que podem ser acessados no site do órgão, mostram que ele ainda recebe como membro ativo.
A defesa do magistrado conseguiu sua aposentadoria integral. Após laudos feitos por peritos da Secretaria Estadual da Saúde, ele foi diagnosticado com uma doença degenerativa na coluna --hoje, locomove-se em uma cadeira de rodas. Em 2009, o CNJ suspendeu a aposentadoria por invalidez requerida em seu nome enquanto estava preso.
A advogada do magistrado no caso, Ilza Maria Macedo Haddad, que diz não mais responder pela defesa do condenado, afirma que Tavares hoje mora em uma cidade do interior paulista, depois de cumprir a pena, e convive com os problemas na coluna. “Esqueçam esse homem”, disse.
"Pagamos um pato que não é nosso"
Nem sempre o afastamento da função está ligado a um crime com condenação judicial. Os outros casos de juízes colocados “em disponibilidade” são amparados por procedimentos internos do TJ.
“O juiz afastado continua recebendo salário, e é natural que esse fato cause indignação. Mas isso acontece porque a legislação permite”, afirma o presidente da Anamages (Associação Nacional dos Magistrados Estaduais), Magid Nauef Láuar, juiz do TJ de Minas Gerais. “Na iniciativa privada, ele é demitido. Mas a lei é da época do [ex-presidente Ernesto] Geisel (1974-1979).”
Láuar afirma que a intenção é elaborar e remeter para o Congresso Nacional uma nova lei da magistratura. Segundo ele, o desgaste é único do magistrado.
“Pagamos um pato que não é nosso. Usufruímos disso? Sim. Se o juiz é excluído e continua recebendo, ele só vai parar de receber se o Ministério Público oferecer denúncia pelo ato que ele praticou. Se configurar crime, há a perda da função pública. Se é colocado em disponibilidade, ninguém vai cobrar se foi oferecida a denúncia.”
Pagamos um pato que não é nosso. Usufruímos disso? Sim. Se o juiz é excluído e continua recebendo, ele só vai parar de receber se o Ministério Público oferecer denúncia pelo ato que ele praticou
Magid Nauef Láuar, presidente da Anamages (Associação Nacional dos Magistrados Estaduais)
Em todos os casos verificados na folha de pagamento do Tribunal de Justiça de São Paulo, houve apenas a pena da “disponibilidade”, mas não da aposentadoria compulsória, punição máxima para os magistrados. Ainda que os salários sejam depositados, é uma pena em que não há limite de tempo para a reintegração do juiz, impedido de exercer qualquer função no direito.
A Anamages defendeu os juízes Marcelo Holland e Marco Antonio Silva Barbosa. Ambos estão afastados há 25 anos dos quadros do TJ, mas recebem salários. Eles foram readmitidos pelo TJ, mas esperam decisões sobre de que forma ela será feita –e como será a recondução ao cargo. O processo de reciclagem incluiu um novo concurso, o que gerou um impasse com os dois juízes.
“O caso [deles] é um ícone porque, na história do TJ, nunca se readmitiu um juiz que ele afastou. Marcelo Holland, que está há 25 anos afastado, foi um juiz que no início de carreira foi acusado de receber um relógio para beneficiar alguém --fato que não se restou comprovado”, diz.
Láuar diz que o Tribunal de Justiça de São Paulo afastou Holland sem que estivesse concluída a responsabilidade e a culpa dele em relação a esse fato.
“A lei coloca que o juiz fique afastado por dois anos, e ele pediu o retorno. O TJ nem sequer respondeu. Ele tornou a requerer ao TJ, que não tomou conhecimento", afirma. "Quando tinha passado quase 20 anos, a Anamages entrou no processo. E representamos contra o TJ no CNJ. Uma decisão liminar reintegrou o Marcelo na atividade judicante no Estado. O tribunal estabeleceu para o Marcelo um novo concurso para ingresso na magistratura. A Anamages entrou com um novo procedimento [contrário a esse entendimento]. A conselheira relatora deferiu parcialmente nossos pedidos. Como é regimental no CNJ, essa decisão teve que ser levada ao plenário, e o CNJ cassou a determinação dessa juíza.”
Para Láuar, a pena é desproporcional, pois o acusado continua sendo juiz, recebendo por mês, sem poder exercer advocacia porque continua magistrado. “Estamos estudando a hipótese de levar para tribunais internacionais. Vamos imaginar o pior: excluí-lo da magistratura. Se o TJ não o excluiu, e ele tinha todos os poderes, é porque o fato que ele praticou era insuficiente para praticar a exclusão.”
"É uma pena perpétua: você não volta"
Caramuru Afonso Francisco é juiz de entrância intermediária no Fórum da Comarca de Birigui (interior de São Paulo). Afastado do cargo há 15 anos, continua recebendo seus vencimentos, mas sem poder atuar de nenhuma forma na carreira jurídica --nos tribunais e na advocacia.
Em 2002, sofreu pena administrativa por ser classificado como “insubmisso”. “Foram dois processos: o primeiro dizia respeito à lojinha do Judiciário [para onde vão as penhoras], que eu nomeava umas pessoas para vender o bem penhorado. Fui afastado e levei uma remoção compulsória. Levou um ano e não comprovaram nada, se provou que todo o dinheiro era depositado em juízo", afirma o juiz.
"Cheguei à nova comarca e fiquei apenas quatro meses. Peguei uma comarca com muitos bens e comecei a nomear pessoas para apresentar propostas de compras ao lado da marcação dos leilões. Disseram que eu estava preparando para repetir as mesmas coisas. Esse processo durou cinco anos, disseram que eu era insubmisso e fui colocado em disponibilidade. O primeiro processo eu anulei, porque o acusador virou o julgador. Pedi para baixar a pena do segundo, e ainda não foi julgado no STJ [Superior Tribunal de Justiça].”
Por duas vezes, pediu reaproveitamento no tribunal, sem ter resposta. Continuou com a mesma pena: “em disponibilidade”. “Nós temos essa pena, e a lei orgânica diz que, quando é aplicada, pode haver o reaproveitamento depois de dois anos, mas não disciplina como ele vai ser feito. Houve uma prática de colocar em disponibilidade e não fazer o reaproveitamento.”
É uma pena perpétua: você não volta. E, quando adquirir o tempo para aposentar, você aposenta. Há pressão dos tribunais para ninguém voltar. Fui apenado com uma pena menor, mas a pena [como juiz em disponibilidade] é maior
Caramuru Afonso Francisco, juiz em disponibilidade
Nas duas vezes em que foi pedido o reaproveitamento, Caramuru recebeu o mesmo despacho: “Aguarde-se melhor oportunidade”.
“Aguardava um ano e pedia de novo. Coloquei a segunda vez e fez de novo. O CNJ deu ganho de causa para mim. Mas eles nunca me colocaram de volta. Mandaram fazer perícia médica, acompanhamento psicossocial e agora o ponto em discussão é que dois desses juízes [Holland e Marco Antonio Silva Barbosa] estão criticando a prova.”
Como seus colegas, Caramuru diz ver uma "dupla oneração" --do magistrado afastado e da população, já que o tribunal continua pagando os salários dos juízes em disponibilidade.
“É uma pena perpétua: você não volta. E quando adquirir o tempo para aposentar, você aposenta. Há pressão dos tribunais para ninguém voltar. Se eu fosse apenado com a aposentadoria, como não há nada penal, poderia advogar e poderia fazer qualquer coisa na vida. Dar aula porque não era mais do quadro. Fui apenado com uma pena menor, mas a pena [como juiz em disponibilidade] é maior.”
TJ-SP diz cumprir decisão do Conselho Nacional
Em nota, o Tribunal de Justiça de São Paulo afirmou que cumpre a decisão do Conselho Nacional de Justiça nos termos em que é determinada em processo revisional, substituindo ou cancelando a pena.
“Os magistrados Caramuru Afonso Francisco, Marcus Antonio da Silva Barbosa e Marcello Holland Neto solicitaram seu reaproveitamento no Conselho Nacional de Justiça e, diante do acolhimento do pedido por aquele órgão, o tribunal determinou instauração de procedimentos administrativos a aferir as condições de saúde e profissionais para legitimar o retorno.”
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