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Ministra do STF suspende portaria que alterava critérios para trabalho escravo

Felipe Amorim, Luciana Amaral e Paula Bianchi

Do UOL, em Brasília

24/10/2017 11h56Atualizada em 24/10/2017 15h19

A ministra do STF (Supremo Tribunal Federal) Rosa Weber concedeu nesta terça-feira (24) uma decisão liminar (provisória) para suspender a portaria do Ministério do Trabalho que alterou os critérios de classificação do trabalho escravo.

A decisão da ministra determina que as regras da portaria não possam ser aplicadas, ao menos até o julgamento final da ação que contesta as alterações. Não há prazo para que o mérito da ação seja julgado.

A portaria provocou críticas de que os novos critérios dificultavam a fiscalização e o combate ao trabalho escravo. O MPF (Ministério Público Federal) e o MPT (Ministério Público do Trabalho) enviaram recomendação ao governo pedindo a revogação da portaria. A ação contra a portaria foi movida pelo partido Rede Sustentabilidade.

A portaria alterou a definição de conceitos importantes para caracterizar a situação de trabalho análoga à de escravidão, como os de trabalho forçado, jornada exaustiva e condições análogas à de escravo, passando a exigir, por exemplo, que para a caracterização do trabalho escravo houvesse a restrição da liberdade de locomoção do trabalhador ou o uso de segurança armada para reter o trabalhador no local de trabalho.

Os novos critérios passariam a ser utilizados não só para a punição a empregadores que fossem enquadrados na definição do trabalho escravo, como também para a concessão de seguro-desemprego aos trabalhadores resgatados e para a inclusão de nomes no cadastro de empregadores flagrados pela fiscalização, a chamada "lista suja do trabalho escravo".

Em sua decisão, a ministra Rosa Weber afirma que os novos critérios adotados pela portaria são demasiadamente restritivos e não estão de acordo com as leis brasileiras, acordos internacionais e as decisões da Justiça sobre o tema.

"A toda evidência, tais definições conceituais, sobremodo restritivas, não se coadunam com o que exigem o ordenamento jurídico pátrio, os instrumentos internacionais celebrados pelo Brasil e a jurisprudência dos tribunais sobre a matéria", escreveu Rosa Weber na decisão.

"É que as alterações empreendidas nos procedimentos administrativos configuram quadro normativo de aparente retrocesso no campo da fiscalização e da sanção administrativa, como técnica de prevenção e promoção da erradicação do trabalho escravo, de modo a dificultar a política pública de combate ao trabalho escravo", diz a decisão.

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A ministra também afirma que não é necessário haver a restrição à liberdade de ir e vir para que o trabalho escravo esteja configurado.

"Como revela a evolução do direito internacional sobre o tema, a 'escravidão moderna' é mais sutil e o cerceamento da liberdade pode decorrer de diversos constrangimentos econômicos e não necessariamente físicos", escreve a ministra.

"O ato de privar alguém de sua liberdade e de sua dignidade, tratando-o como coisa e não como pessoa humana, é repudiado pela ordem constitucional, quer se faça mediante coação, quer pela violação intensa e persistente de seus direitos básicos, inclusive do direito ao trabalho digno. A violação do direito ao trabalho digno, com impacto na capacidade da vítima de realizar escolhas segundo a sua livre determinação, também significa “reduzir alguém a condição análoga à de escravo”, afirma a ministra na decisão.

Oposição vê fragilidade; governista diz que vai recorrer

Para o deputado Alessandro Molon (Rede-RJ), a decisão da ministra fragiliza o governo na votação desta quarta-feira, quando a Câmara decide se aceita a segunda denúncia contra Michel Temer por obstrução de justiça e organização criminosa. "Essa decisão tem impacto da votação de amanhã já que Temer queria trocar votos por escravos." Segundo o deputado, essa decisão afeta em especial bancada ruralista, que seria um dos principais pontos de apoio do presidente. "Temer ofereceu uma mercadoria que não pode entregar."

O vice-líder do governo na Câmara, Beto Mansur (PRB-SP), disse que o governo irá recorrer da decisão da ministra. “É uma decisão do Supremo que temos que respeitar, mas é uma questão jurídica”, afirmou. Ele também afastou a possibilidade da decisão influenciar na votação de amanhã. “Temos entre 260 e 270 votos, estamos conversando com uma série de parlamentares que ainda estão indecisos para ampliar a base do governo na votação desta segunda denúncia para então votar aquilo que interessa efetivamente ao Brasil."

Até a semana passada, o STF (Supremo Tribunal Federal) já havia recebido ao menos três ações questionando a constitucionalidade da portaria 1.129: do PDT, da Rede Sustentabilidade e da Confederação Nacional das Profissões Liberais.

Entenda o caso

No último dia 16, o Ministério do Trabalho publicou no Diário Oficial da União a portaria 1.129, assinada pelo ministro Ronaldo Nogueira (PTB), na qual dispõe sobre os conceitos de trabalho forçado, jornada exaustiva e condições análogas de escravo, com o objetivo de disciplinar a concessão de seguro-desemprego a pessoas libertadas.

Além de acrescentar a necessidade de restrição da liberdade de ir e vir para a caracterização da jornada exaustiva, a portaria também aumenta a burocracia da fiscalização e condiciona à aprovação do ministro do Trabalho a publicação da chamada lista suja, com os nomes dos empregadores flagrados reduzindo funcionários a condição análoga à escravidão.

A portaria gerou reações contrárias de entidades como a OIT (Organização Internacional do Trabalho), do MPF (Ministério Público Federal) e do Conanda (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente).

Na última quinta-feira (19), o presidente Michel Temer afirmou que a portaria do Ministério do Trabalho estabelecendo novas diretrizes para a fiscalização do trabalho escravo no país poderia ser modificada. "Ele [Nogueira] já esteve duas vezes com a dra. Raquel Dodge. Recebeu sugestões. É muito provável que incorpore várias", disse o presidente ao site "Poder360".

Nos últimos dias, assessores do Planalto vinham defendendo a portaria e afirmaram que ela foi “mal interpretada”. Na avaliação deles, a medida moderniza a atual legislação e impede que haja acusações contra empresas por trabalho escravo de acordo com o “humor” de fiscais.

Após repercussões negativas, na última quinta-feira (19), o ministro Ronaldo Nogueira se encontrou com Temer no Planalto para apresentar detalhes e prestar informações ao presidente sobre a portaria. Ele também mostrou quais pontos estavam sendo questionados pela procuradora-geral da República, Raquel Dodge, e onde poderiam fazer modificações, que chamam de “melhorias”.

Para outro assessor do Planalto, o caso foi mais uma falha de comunicação do governo perante a sociedade. No entanto, até então, revogar a portaria não está nos planos do governo.

“Não pode revogar. Senão passa uma imagem de fraqueza. Já teve toda a aquela confusão com a Renca (Reserva Nacional de Cobre e Associados), que teve de ser revogada. Outro ponto é que, se voltar atrás em tudo, não conseguimos passar como queremos as reformas depois da votação da denúncia [contra Temer na Câmara”, afirmou. A decisão de extinguir a Renca foi questionada por ambientalistas, artistas e repercutiu na mídia, e o governo acabou recuando do decreto em setembro.

Procurada pelo UOL, a Presidência da República pediu que a reportagem procurasse o Ministério do Trabalho. Por sua vez, a pasta enviou nota em que afirma que a portaria é legal, mas que o Ministério do Trabalho "cumprirá integralmente o teor da decisão". A nota afirma ainda que o ministério deve recorrer através da AGU (Advocacia Geral da União).

Também em nota, a AGU afirmou que "irá analisar as medidas cabíveis no momento oportuno, tendo em vista que a decisão ainda não foi publicada oficialmente".