Lava Jato: ex-Casa Civil de Cabral deu isenções fiscais mediante propina; grupo recolheu R$ 21 mi
A força-tarefa da Lava Jato no Rio de Janeiro apurou que o ex-chefe da Casa Civil do Rio de Janeiro Régis Fichtner recebeu cerca de R$ 1,5 milhão em propina para favorecer empresas com benefícios fiscais e atos de ofício durante a gestão do ex-governador Sérgio Cabral (PMDB). O ex-secretário, preso nesta quinta-feira (23) em ação da Polícia Federal, do MPF (Ministério Público Federal) e da Receita Federal, também é suspeito de fraudar precatórios para que, mediante vantagens ilícitas, empresas pudessem compensar dívidas com o Estado.
Além de Fichtner, foram detidos hoje na Operação "C'est fini" ("É o fim" ou "Acabou", na tradução livre do francês), nova etapa da Operação Lava Jato no Rio, o empresário Georges Sadala, o ex-presidente da Funderj (Fundação Departamento de Estradas de Rodagem do Estado do RJ) Henrique Ribeiro, Lineu Castilho Martins (apontado como operador de Ribeiro) e Maciste Granha de Mello Filho (sócio da construtora Macadame).
O esquema criminoso, de acordo com o MPF, movimentou entre 2007 e 2016, cerca de R$ 21 milhões somente em propina para a organização criminosa chefiada por Sérgio Cabral. Ainda na versão do MPF, Fichtner chegou a receber pagamentos dentro do Palácio Guanabara, sede do Executivo fluminense.
A procuradora da República Marisa Ferrari afirmou que Fichtner era o "cara da cúpula do Sérgio Cabral", ex-chefe do Executivo estadual preso e condenado em ações penais da Lava Jato sob acusação de chefiar a maior organização criminosa já existente no poder público do RJ.
Por ter uma "posição muito relevante dentro do governo", diz a Lava Jato, Fichtner encontrava facilidade para agir em nome dos corruptores. E o fazia, segundo a procuradora, até hoje. Atualmente, ele trabalhava como assessor da Procuradoria-Geral do Estado. "O cargo exercido por ele dentro da Procuradoria-Geral do Estado era de assessor dentro do gabinete do procurador, o que demonstra a grande influência dele dentro da Procuradoria do Estado do Rio", afirmou Marisa.
Uma das empresas supostamente beneficiadas com isenções fiscais teria sido uma do ramo de táxi aéreo. Essa mesma firma já havia contratado o escritório de advocacia do qual Fichtner é proprietário.
"O que também chamou atenção é que ele se licenciou do seu escritório de advocacia para assumir o cargo no governo do Estado [em 2007] e, logo em seguida, em 2014, ele retorna a esse escritório e recebe R$ 16 milhões a título de lucro por esse escritório. É um fato bastante suspeito. E, com relação a uma das empresas citadas na petição do pedido de prisão, a Líder Táxi Aéreo, o escritório do senhor Régis Fichtner já havia advogado para essa empresa. Posteriormente, ela foi beneficiada com algumas isenções fiscais e alguns atos [de ofício] enquanto ele era chefe da Casa Civil."
Marisa disse ainda que um dos elementos que corroboraram o pedido de prisão preventiva contra Fichtner foi o fato de que ele apagou uma conta de e-mail que era utilizada para comunicação entre os investigados. "Detectamos e-mails que ele estava copiado e que ele recebeu por outros integrantes da organização. Esse é um forte indício de que ele esteja tentando se livrar da aplicação da lei penal e se furtar das investigações."
Outro lado
A reportagem do UOL procurou a defesa dos investigados sobre as acusações.
A defesa de Sadala criticou a prisão preventiva sem que o empresário tivesse sido ouvido pelo MPF ou PF. Por meio de nota, a defesa diz que o empresário “sempre esteve à disposição das autoridades tendo viajado ao exterior e retornado ao país algumas vezes nos últimos anos, inexistindo indicativo de que pretendesse se furtar à oportunidade de prestar qualquer esclarecimento à Justiça”.
No comunicado enviado à imprensa, o advogado informou que todas as perguntas foram respondidas e que a prisão “atende propósito meramente simbólico de alcançar último personagem do enredo dos guardanapos, o que se evidencia pelo próprio nome dado à operação policial: “C’est fini”.
A defesa negou ainda a acusação de repasses indevidos, o que a defesa diz que pode ser demonstrado pela movimentação das contas bancárias.
“O único fato concreto apurado e comprovado --e não negado pelo empresário-- é sua amizade com o ex-governador Sérgio Cabral, o que, por si só, não remete à prática de crime, nem à necessidade da prisão cautelar, de modo que confia que essa medida extrema será revista pelo próprio Poder Judiciário”, encerra a nota.
Em nota, a Líder Táxi Aéreo informou ter participado de licitação para prestação de serviços em outubro de 2012, com duração de um ano. A firma alega ter renovado contrato por mais nove meses, "de forma legal", a partir de dezembro de 2016. "Logo, prazo total do documento foi de 59 meses e 23 dias."
"Sobre a contratação do escritório de advocacia, a empresa informa que o mesmo foi assinado em 1999 e em 2006, quando o advogado não participava do governo do Rio de Janeiro. Já com relação a doações, a empresa também informa que, enquanto era uma prática permitida, realizou doações, de forma legal e transparente, para diversos partidos políticos", completa a nota.
Fitchner e Sadala participaram do episódio que ficou conhecido como “farra dos guardanapos”, ocorrida em Paris, em 2009. O nome da operação, "C'est fini", faz alusão ao animado jantar que reuniu Cabral, ex-secretários de Estado e empresários hoje investigados na Lava Jato.
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A ação realizada hoje teve início a partir de quatro investigações paralelas originadas em provas e elementos apreendidos na Operação Calicute --a mesma que levou Cabral e ex-secretários dele para a cadeia, em novembro do ano passado.
Fichtner passou a ser investigado depois que seu nome surgiu em planilhas de Luiz Carlos Bezerra, também réu na Lava Jato e tido como operador do "caixa" da quadrilha. O ex-chefe da Casa Civil era identificado pelos codinomes "Gaúcho" e/ou "Alemão".
Bezerra afirmou, em depoimento à Justiça, ter feito, a mando de Cabral, quatro entregas em dinheiro vivo e ilícito para o ex-chefe da Casa Civil. O montante seria de R$ 100 mil.
As anotações do operador eram um registro manuscrito do esquema de cobrança e pagamento de propina que, segundo as denúncias do MPF, beneficiou de forma criminosa vários agentes públicos.
A engrenagem da corrupção
As investigações que levam a Fichtner e aos empresários detidos hoje foram feitas paralelamente, mas se cruzam no que diz respeito ao principal beneficiário da propina: o grupo chefiado por Cabral e que abrange, na versão das denúncias oferecidas contra ele, uma extensa lista de personagens que compuseram o seu governo. Bezerra, conhecido como "homem da mala", era o responsável pela distribuição do dinheiro.
Em relação a Sadala, a suspeita é de pagamento de propina, estimada em R$ 1,3 milhão, para que a empresa da qual ele era sócio, a Gelpar Empreendimentos, fizesse parte da gestão do programa "Poupa Tempo" --criado para reunir órgãos públicos (municipais, estaduais e federais) e entidades privadas a fim de facilitar e agilizar o atendimento e a prestação de serviços de utilidade pública.
Nas planilhas de Bezerra, o empresário surge com os codinomes "Salada", "Saladino" e "G". A propina paga por ele teria sido destinada a integrantes da organização criminosa, entre eles, Fichtner e o próprio Cabral. Ainda de acordo com o MPF, Sadala era vizinho do ex-governador no luxuoso condomínio Portobello, situado em Mangaratiba, e recebeu dos cofres públicos mais de R$ 170 milhões pela gestão do "Poupa Tempo".
"O serviço 'Poupa Tempo' era um serviço público, e o Sadala recebia recursos do governo do Estado. O que se acredita é que, conforme instituído na organização criminosa, o Sérgio Cabral exigia o pagamento de algum percentual de todos os empresários contratados pelo Estado. E não foi diferente com o senhor Georges Sadala, que centralizava os recursos com relação ao 'Poupa Tempo'", afirmou Marisa.
O ex-sócio da Gelpar também é investigado por lavagem de dinheiro e crimes financeiros que estão sob apuração da Receita Federal. Em dez anos, ele teve uma evolução patrimonial líquida de mais de 2.800%, passando de pouco menos de R$ 1 milhão, em 2006, para mais de R$ 28 milhões, em 2016. "Também foram constatadas algumas inconsistências em relação ao efetivo funcionamento" das mais de 13 empresas ligadas a Sadala, explicou a Receita.
Já Henrique Ribeiro e Lineu Castilho Martins atuavam em esquema de corrupção existente no Funderj, órgão vinculado à Secretaria de Estado de Obras. Os procuradores afirmam que ambos receberam propina a partir de contratos da pasta. Um dos acordos foi fechado com a construtora Macadame, que tem como sócio Maciste Granha de Mello Filho. O empreiteiro é suspeito de ter desembolsado ao menos R$ 552 mil em propina.
Narra o MPF que Lineu era operador financeiro e braço direito de seu ex-chefe, assumindo a função de recolher e distribuir a propina paga pelas construtoras. Do volume de vantagens ilícitas, que ainda não foi totalmente calculado pela força-tarefa da Lava Jato, pelo menos R$ 17 milhões foram repassados ao grupo chefiado por Cabral entre 2008 e 2014. Lineu também consta nas anotações de Bezerra, identificado pelos codinomes "Boris", "Russo" e "Kalash".
Depoimentos
O empresário Alexandre Accioly foi intimado a prestar depoimento na sede da PF e foi cumprida a condução coercitiva do ex-dono da empreiteira Delta e réu da Lava Jato Fernando Cavendish, que está preso em sua residência desde julho de 2016. Em agosto desse ano, durante interrogatório na 7ª Vara Federal Criminal, ele reconheceu ter desembolsado 5% de propina em troca de vantagens na licitação da reforma do Maracanã.
O MPF explicou que Accioly é investigado por ter emprestado cerca de R$ 1,6 milhão a Sadala, em 2010. A força-tarefa apura se a operação de crédito pode ter sido usada como mecanismo de lavagem de dinheiro. "Ainda não ficou claro qual a razão desse empréstimo, a forma de pagamento e por onde esse dinheiro transitou", disse Marisa.
A dupla de empresários também fez uma transação suspeita a partir da compra e venda de um terreno em Ipanema, na zona sul carioca, em março de 2016. Sadala teria desembolsado R$ 800 mil para adquirir o imóvel. "Apenas sete meses depois, ou seja, em outubro de 2016, Sadala revendeu esse imóvel por R$ 5,5 milhões, ou seja, um lucro extraordinário em um curtíssimo espaço de tempo. Isso representa forte indício de lavagem de dinheiro."
Cavendish, por sua vez, foi obrigado a depor por ter feito um suposto empréstimo de quase R$ 145 mil a Sadala, em 2008. A Receita investiga se essa operação de crédito foi fictícia, para fins de lavagem de dinheiro, pois não teria ocorrido qualquer transferência bancária originada do ex-dono da Delta no período investigado.
"Ao contrário, as informações bancárias revelaram que Sadala fez diversas transferências para Cavendish, em valores e datas divergentes do empréstimo declarado, totalizando R$ 1.424.064,66, ou seja quase dez vezes o valor do empréstimo declarado", narra a petição do MPF.
O advogado de Cavendish, Cristóvão Marques, afirmou que não vai comentar o caso. A defesa de Accioly não foi localizada.
O empresário Alexandre Accioly informou, por meio de nota, que prestou esclarecimentos a respeito da venda de um imóvel, aquisição de um automóvel e operação de crédito, cujo empréstimo foi integralmente quitado, firmados com Georges Sadala.
De acordo com a nota, "todas as transações se deram em moeda corrente nacional, amparadas por documentação comprobatória --tais como escritura, documentos de compra e venda de bens e respectivas transferências bancárias (TEDs)--, e devidamente reportadas nas declarações de bens de Accioly referentes a cada exercício fiscal em que se verificaram".
De acordo com ele, as informações prestadas referem-se "a relacionamento de caráter estritamente pessoal, e não se comunicam com as empresas nas quais Alexandre Accioly detém participação".
Função estratégica na gestão Cabral
Natural de Porto Alegre, Fichtner é advogado e ocupou o cargo de chefe da Casa Civil do Estado do RJ durante toda a gestão Cabral (2007-2014). Sua vida política sempre girou em torno do ex-governador.
Foi suplente de Cabral no Senado e chegou a assumir a cadeira na ausência do cacique peemedebista. Exerceu ainda a função de tesoureiro da campanha na qual o ex-chefe se elegeu pela primeira vez para a chefia do Executivo fluminense, em 2006.
Sempre foi um aliado estratégico para Cabral, assim como Wilson Carlos, apontado como braço direito e segundo homem na hierarquia do grupo criminoso que, de acordo com a Justiça, MPF (Ministério Público Federal) e Polícia Federal, era liderado pelo ex-governador.
No governo do Estado, ficou diretamente responsável por conduzir processos licitatórios e acompanhar o andamento de grandes obras realizadas no período investigado, tais como a construção da linha 4 do metrô.
(Com Estadão Conteúdo e colaboração de Marcela Lemos)
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