Topo

Produto do AI-5, DOI-Codi virou símbolo de repressão e tortura na ditadura

Atrizes Eva Todor, Tônia Carrero, Eva Wilma, Leila Diniz, Odete Lara e Norma Bengell em 1968, na passeata dos cem mil, no Rio - Reprodução
Atrizes Eva Todor, Tônia Carrero, Eva Wilma, Leila Diniz, Odete Lara e Norma Bengell em 1968, na passeata dos cem mil, no Rio Imagem: Reprodução

Diego Toledo

Colaboração para o UOL, em São Paulo

16/12/2018 04h01

Em dezembro de 1968, ao decretar o AI-5 (Ato Institucional n° 5), a ditadura militar brasileira deu início a um período de graves violações de direitos humanos. A justificativa era combater a ação de grupos armados de oposição que lutavam para derrubar o governo.

Criados pouco depois, os DOI-Codi (Destacamentos de Operações de Informações - Centros de Operações de Defesa Interna) se tornariam um símbolo da repressão militar no período.
 
O marco inicial da atuação desses órgãos foi o lançamento, em julho de 1969, da Operação Bandeirante (Oban). A iniciativa lançada pelo comando do 2º Exército, em São Paulo, reunia membros das Forças Armadas e dos órgãos de segurança do estado.
 
A Oban tinha a missão de integrar forças militares e policiais para combater os grupos armados de esquerda. Com o apoio financeiro de empresários, a operação teve como base a área do 36º Distrito Policial, entre as ruas Tutoia e Tomás Carvalhal, na cidade de São Paulo.
 
A estrutura repressiva da Oban, voltada para sequestrar, prender, torturar e executar opositores do regime militar, transformou-se em mecanismo tão eficiente que se tornou modelo, posteriormente difundido para todo o país, com a implantação dos DOI-Codi
Relatório final da Comissão Nacional da Verdade

Comando em São Paulo coube ao coronel Ustra

O coronel reformado e ex-comandante do DOI-Codi-SP Brilhante Ustra participa hoje da primeira audiência pública promovida pela Comissão Nacional da Verdade. Ele obteve habeas corpus que permite que fique calado. O depoimento foi no CCBB, Centro Cultural Banco do Brasil. - Sergio Lima/Folhapress - Sergio Lima/Folhapress
Ustra, coronel reformado e ex-comandante do DOI-Codi-SP, em audiência da Comissão Nacional da Verdade
Imagem: Sergio Lima/Folhapress

O principal DOI-Codi, em São Paulo, continuou a ser chamado de Oban por algum tempo, inclusive em documentos oficiais. Outros destacamentos do tipo foram criados, em 1970, em Recife, Brasília e no Rio de Janeiro. No ano seguinte, surgiram em Belo Horizonte, Salvador, Curitiba, Fortaleza e Belém. E, em 1974, seria a vez de Porto Alegre.

"A repressão se deu com maior intensidade no Rio e em São Paulo, porque para esses dois estados foram levadas muitas das vítimas da repressão presas em outros lugares", afirma o jurista Pedro Dallari, coordenador da Comissão Nacional da Verdade, em entrevista ao UOL. "Os DOI-Codi das duas cidades se converteram em símbolos maiores da repressão."
 
O DOI-Codi de São Paulo era comandado por um oficial militar, que tinha o auxílio de uma assessoria policial chefiada por um delegado. Entre setembro de 1970 e janeiro de 1974, o comandante do órgão foi o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, que, na época, era major do Exército.
 
A Comissão da Verdade calcula que mais de 400 pessoas foram mortas em combate, executadas ou em consequência de tortura pelo regime militar durante a ditadura.

Leia também:

O projeto Brasil: Nunca Mais, realizado entre 1979 e 1985 pela Arquidiocese de São Paulo e pelo Conselho Mundial de Igrejas para documentar os crimes políticos do período, aponta que foram registradas 876 denúncias de tortura de 1969 a 1977 relacionadas à Oban e ao DOI-Codi de São Paulo.
 
Desse total, mais de 350 aconteceram no período em que Ustra comandava o órgão. "Chegou um momento em que não era mais nem segredo que ali se dava essa prática", afirma Pedro Dallari.
 
Um documento do próprio DOI-Codi da capital paulista, de novembro de 1973, indica que, dos mais de 5.600 presos políticos que haviam passado pelas dependências do órgão até aquele momento, pelo menos 50 teriam sido mortos.
 
Até falecer, em 2015, Ustra contestava esses dados e dizia que essas mortes ocorreram fora do DOI-Codi, em combates entre militantes da luta armada e agentes do órgão.

Tanques do 2º Exército em 1964, em São Paulo, que teria recebido dinheiro de "caixa dois" de empresários para apoiar o golpe militar  - João Marques 14.abr.1964/Última Hora - João Marques 14.abr.1964/Última Hora
Tanques do Segundo Exército em 1964, em São Paulo
Imagem: João Marques 14.abr.1964/Última Hora

Policiais também participavam de sessões de tortura

Subordinado de Ustra no DOI-Codi, o coronel reformado Pedro Ivo Moézia de Lima também afirma nunca ter participado ou presenciado sessões de tortura no local. Moézia, no entanto, admite que isso possa ter ocorrido e atribui os abusos ao comportamento de policiais que também atuavam no DOI-Codi.
 
"Uns 5% do efetivo era do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, o restante era da Policia Militar de São Paulo, da Polícia Civil, que eram o grosso da tropa, sob o comando do Exército", disse Moézia, em entrevista ao UOL.
 
Fala-se muito da Rua Tutóia, onde os presos eram levados inicialmente, porque ali quem estava no comando antes era o Dops (Departamento de Ordem Política e Social), de Sâo Paulo. Lá, todo mundo sabe que não tinha brincadeira
Coronel reformado Pedro Ivo Moézia de Lima

"Nós, do Exército, não temos esse temperamento, de matar, de trucidar, de torturar. Mas, para o pessoal da polícia, o dia a dia deles obriga a lidar com bandido. Esses caras desenvolvem um mecanismo de defesa que é a violência", completou o coronel.
 
Pedro Dallari observa, no entanto, que muitos outros depoimentos ouvidos pela Comissão Nacional da Verdade apontam que os militares não só comandavam os agentes nos órgãos de repressão como também participavam das sessões de tortura.
 
"O fato de que havia participação de agentes da Polícia Civil e Militar e médicos legistas na estrutura repressiva não conflita com o fato de que o controle e a gestão eram das Forças Armadas, e que militares participaram diretamente de tortura e graves violações de direitos humanos", diz o coordenador da comissão.

Versões fictícias para mortes sob tortura

Os levantamentos sobre a atuação do DOI-Codi apontam que o recurso do "desaparecimento" de presos políticos passou a ser empregado com maior frequência a partir de 1971 e atingiu o seu auge em 1974. 
 
As investigações apontam que execuções ou mortes decorrentes de tortura dentro do DOI-Codi ou em centros clandestinos de tortura acabavam escondidos com a versão de que teriam sido resultado de tiroteios, atropelamentos, suicídios e tentativas de fuga.
 

O jornalista Luiz Eduardo Merlino, morto no DOI-CODI, em São Paulo, aos 23 anos - Divulgação - Divulgação
Luiz Eduardo Merlino, em SP, aos 23 anos
Imagem: Divulgação

É o caso, por exemplo, da morte do jornalista Luiz Eduardo Merlino. Segundo os militares, o preso foi morto em 1971, ao ser atropelado, depois de tentar fugir, quando era transferido para uma acareação em Porto Alegre. Mas, de acordo com a Comissão da Verdade do Estado de São Paulo, Merlino foi torturado e morto dentro do DOI-Codi.
 
Já no período de distensão no governo Geisel, a partir de 1974, os abusos da repressão começaram a diminuir, mas o DOI-Codi ainda seria cenário de mortes que acabariam por minar ainda mais a imagem do regime. Os casos mais célebres seriam os do jornalista Vladimir Herzog, em 1975, e do operário Manoel Fiel Filho, no ano seguinte, ambos vítimas de tortura.
 
O DOI-Codi ainda permaneceria em atividade até o fim do regime militar, mas sem registros de novas mortes.

Jurista vê risco de negação da memória nacional

Para o coordenador da Comissão Nacional da Verdade, as recentes declarações de militares e do presidente eleito Jair Bolsonaro, que defendem a linha dura do governo na ditadura e a atuação do coronel Ustra, podem significar um retrocesso no esforço para resgatar a memória do período.
 
"O revisionismo, ou o negacionismo, não é algo que existe só no Brasil", afirma Pedro Dallari. "Existe também, por exemplo, em relação ao Holocausto praticado pelos nazistas na Segunda Guerra Mundial."
 
"É crescente o movimento que objetiva negar o que houve, ou minimizar o impacto desses fatos, e esse risco está presente no Brasil", acrescenta. "A sociedade civil deve ter muita cautela em relação a isso."