Decreto de Bolsonaro para arma e registro definitivo preocupa especialistas
O anúncio do presidente eleito, Jair Bolsonaro (PSL), de que pretende liberar a posse e o registro de armas de fogo via decreto foi visto com preocupação por especialistas em segurança pública e juristas consultados neste sábado (29) pelo UOL.
"Por decreto, pretendemos garantir a posse de arma de fogo para o cidadão sem antecedentes criminais, bem como tornar seu registro definitivo", escreveu o presidente eleito, hoje, em seus perfis nas redes sociais, a três dias de tomar posse. A medida foi uma das principais bandeiras de campanha do capitão reformado do Exército
Para José Vicente da Silva Filho, coronel da reserva da Polícia Militar de São Paulo e ex-secretário nacional de segurança pública no governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), o anúncio representa um "engano grosseiro" ao não considerar "um aumento exponencial do risco" ao cidadão armado.
"Há pesquisas no Brasil que mostram que 70% das pessoas armadas são baleadas em situações de assalto: ou porque tentam reagir, ou porque simplesmente, ao ver a arma, o bandido percebe que se trata de alguém disposto ao enfrentamento", disse ele, para quem a flexibilização ainda precisa ser especificada no decreto. "Quem tem que enfrentar o bandido são as polícias. Não adianta terceirizar para o cidadão a defesa contra a bandidagem."
Há anos consultor na área de segurança pública, o coronel observou ainda que amplificar a possibilidade de posse de arma no país não é sinônimo de proteção à maior parte da população se considerado também o aspecto econômico da medida. Com um revólver calibre 38 custando R$ 4 mil, em média, e com R$ 1.200 em balas para um treinamento em cursos de tiro de 200 horas, apenas cidadãos com capacidade de compra poderiam se armar e, supostamente, se proteger, aponta ele.
"Uma arma básica, como um 38, custa a partir de R$ 4 mil, dinheiro com que se pode comprar uma geladeira, um micro-ondas e um fogão de boa marca, por exemplo. Quem terá acesso à arma, portanto, é gente da classe média para cima, e quem é mais vítima da violência é o pobre - que não tem nem condição de fazer um treinamento, muito menos de se armar", afirmou.
A impressão é que se está dando uma satisfação para as elites, mas essa é a resposta errada a um problema certo, que é reduzir a violência
José Vicente da Silva Filho, coronel da reserva da PM-SP e ex-secretário nacional de segurança pública
Sou da Paz: registro definitivo é "retrocesso absurdo"
O diretor-executivo do Instituto Sou da Paz, Ivan Marques, analisou que o tuíte de Bolsonaro, ao destacar em letras maiúsculas o termo "POSSE", pode ter buscado dissociar o anúncio de "porte" de armas, que significa poder transportar o artefato consigo. No entanto, ele manifestou preocupação com o "registro definitivo" prometido pelo presidente eleito. "É como dizer que permanentemente nunca mais vai se precisar prestar contas ao Estado sobre aquela arma", disse.
Atualmente, para se ter uma arma, é preciso ter mais de 25 anos e preencher os requisitos legais --entre os quais, ter aptidão mental e capacidade de manuseio, além de solicitar uma autorização à Polícia Federal. O cidadão deve escrever uma declaração explicando por que precisa de uma arma. A compra só poderá ser feita se o delegado concordar com os argumentos e conceder a licença.
"E se amanhã ou depois a pessoa não tiver condições mentais ou psicológicas de portar uma arma? E como o cidadão vai garantir ao Estado, periodicamente, que aquela arma não foi levada por bandidos ou transferida a terceiros? Esse decreto, nos termos em que o presidente eleito anunciou, tira o controle e a possibilidade de as autoridades rastrearem as armas; seria um retrocesso absurdo", avaliou.
Juristas: decreto é legal, mas pode trazer insegurança jurídica
A possibilidade de a posse e o registro de armamentos serem flexibilizados via decreto também foi vista com ressalvas por especialistas do direito.
Para João Paulo Martinelli, advogado criminalista e doutor em direito penal pela USP, o futuro presidente até pode, por lei, "mas de uma forma limitada", publicar decretos como o que ele prometeu hoje.
"A posse de arma de fogo sem o registro é crime, e estabelecer os requisitos para se obter uma arma e registrá-la é algo que se pode constar em decreto. O que o Executivo não pode fazer é descriminalizar isso, por exemplo, porque o Estatuto do Desarmamento é lei federal, e a análise disso caberia ao Congresso", afirmou Martinelli.
"Mas estabelecer critérios assim por decreto gera uma insegurança jurídica à medida que, apesar de o crime de posse ter sido aprovado pelo Congresso, isso pode abrir espaço para o presidente dizer o que é o que não é crime", completou.
O especialista lembrou que o estatuto do desarmamento recebeu outros decretos do Executivo - como o que estabeleceu, por exemplo, que armas são de uso restrito ou proibido, bem como a idade mínima para pleitear a posse e o registro.
"Cabe ver também a partir de quando o decreto entraria em vigência -afinal, é preciso prazo para que os órgãos envolvidos, como o Exército e a Polícia Federal, se preparem para as mudanças; não é de um dia para o outro que isso acontece", arrematou. A permissão concedida pelo Exército a civis compreende os casos em que o requerente seja atirador esportivo ou caçador.
Doutora em Direitos Humanos pela Faculdade de Direito da USP e membro do Núcleo de Estudos sobre o Crime e a Pena da FGV (Fundação Getúlio Vargas) em São Paulo, a advogada Maíra Zapater reforça o risco de insegurança jurídica que um decreto do tipo pode trazer.
"Qualquer tipo de norma feita via decreto gera insegurança porque é um procedimento muito menos difícil de passar do que seria em um processo legislativo, onde depende de debate da Câmara e do Senado e onde há toda uma regulamentação para que as matérias, ao menos em tese, sejam mais refletidas", apontou. "Quando há uma única pessoa expedindo, e a qualquer tempo, o que muda e o que não muda fica sob um risco de arbitrariedade sem esse debate e sem essa reflexão, portanto, muito maior."
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