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Legítima defesa: o que pode mudar na ação de policiais com projeto de Moro?

A Polícia Militar do Rio faz operação para reprimir criminosos na Cidade de Deus - Domingos Peixoto -2.fev.2018/Agência O Globo
A Polícia Militar do Rio faz operação para reprimir criminosos na Cidade de Deus Imagem: Domingos Peixoto -2.fev.2018/Agência O Globo

Felipe Amorim

Do UOL, em Brasília

08/02/2019 04h00Atualizada em 08/02/2019 18h18

O projeto de lei anticrime elaborado pelo ministro da Justiça, Sergio Moro, propõe alterações nas regras que tratam da legítima defesa e da atuação de policiais em confronto armado. 

O texto recebeu críticas e elogios. Há quem acuse o projeto de equivaler a uma "licença para matar" aos policiais, enquanto outros dizem que a nova redação dará maior proteção ao trabalho da polícia. Conheça na íntegra o pacote de medidas anticrime de Moro

Sergio Moro negou que o projeto libere os policiais para atirar sem critério e disse que o texto apenas buscou tornar claras na lei situações que hoje já são reconhecidas como de legítima defesa pelos tribunais.

A reportagem do UOL conversou com especialistas na área de direito penal e segurança pública para analisar o que propõe este ponto do projeto e qual seus possíveis efeitos. Para se tornar lei, o texto ainda deve ser aprovado pelo Congresso Nacional.

O que diz a lei hoje

A legítima defesa é entendida hoje como a possibilidade de usar a força para repelir um ataque ou ameaça iminente contra si ou outras pessoas. A lei exige que a legítima defesa seja exercida para repelir "injusta agressão, atual ou iminente", usando "moderadamente dos meios necessários".

O Código Penal também afirma que a pessoa, seja policial ou cidadão comum, poderá ser punida se praticar "excesso" na legítima defesa. Um exemplo desse excesso seria se, para se defender de uma agressão a socos e pontapés, a pessoa que atua em legítima defesa atirasse com uma arma de fogo no agressor. 

Hoje esse trecho do Código Penal não cita explicitamente a atuação da polícia, mas as regras também se aplicam a situações de confrontos travados por policiais. Hoje, por exemplo, o policial que atira para impedir que um criminoso dispare colocando em risco sua vida ou a de outras pessoas teria a atuação protegida pelas regras da legítima defesa, segundo os especialistas ouvidos pela reportagem. 

O que diz o projeto

O projeto do ministro Sergio Moro propõe três alterações nesse trecho do Código Penal. 

Apesar de manter a punição ao excesso na legítima defesa, o texto diz que o juiz poderá deixar de aplicar a punição, ou reduzir a pena até a metade, caso o excesso na legítima defesa tenha decorrido de "escusável medo, surpresa ou violenta emoção". 

As outras duas mudanças previstas no texto servem para explicitar situações em que o policial, ou agentes da área de segurança pública, estaria agindo em legítima defesa. 

Segundo o projeto, essa hipótese se aplica para "o agente policial ou de segurança pública que, em conflito armado ou em risco iminente de conflito armado, previne injusta e iminente agressão a direito seu ou de outrem", e também para "o agente policial ou de segurança pública que previne agressão ou risco de agressão a vítima mantida refém durante a prática de crimes".

'Excessos legitimados'

O gerente do Instituto Sou da Paz, Bruno Langeani, afirma que a legislação atualmente já protege os policiais que eventualmente matam um criminoso para se defender num tiroteio e que o texto proposto por Moro pode ter o efeito de aumentar o número de mortos em confronto porque os policiais se sentiriam "legitimados" a atirar em um número maior de situações.

"Nossa avaliação é que esses pontos sobre a legítima defesa ampliam muito a possibilidade de violência policial, então, se aprovado da forma como está, a tendência é que isso cresça no país", diz.

"Aparentemente esse projeto parte de premissa errada, parte da premissa de que os policiais hoje não teriam amparo da legislação para fazer seu trabalho, ou de que eles precisariam sofrer disparos para revidarem, mas o Código Penal como está hoje não tem essa exigência e já ampara o policial que dispara para repelir uma agressão, não apenas que esteja acontecendo como também que seja iminente", ele afirma.

Para Langeani, a possibilidade de o excesso na legítima defesa deixar de ser punido pode abrir brechas para que a violência policial em situações de confronto seja legitimada pelo Judiciário. 

"Esse tipo de abertura vai permitir que vários desses excessos sejam legitimados e, como consequência, estimulados", diz. 

'Conceito aberto'

Presidente da ANPR (Associação Nacional dos Procuradores da República), o procurador José Robalinho Cavalcanti afirma que o projeto faz boas propostas para o combate ao crime organizado, mas que o texto utiliza um "conceito aberto" ao falar que o policial age em legítima defesa quando em situação de conflito ou risco de conflito armado "previne injusta e iminente agressão".

Para Robalinho, esse trecho do projeto pode abrir uma brecha para que a defesa de policiais investigados em situação de confronto tente ampliar o critério de legítima defesa hoje admitido pelos tribunais. 

O próprio conceito do que é legítima defesa é um conceito aberto, mas que está trabalhado pela jurisprudência [decisões da Justiça] há mais de 100 anos, então hoje está bem determinado 

Procurador José Robalinho Cavalcanti

"Já o conceito de perigo iminente é aberto e não está bem definido, então teria que haver jurisprudência", diz. "Eu vejo procuradores da República terem ideias diferentes do que é e do que não é [perigo iminente]. O fato é que como está a redação [do projeto] vai haver polêmica judicial", afirma Robalinho. 

Segundo o procurador, em sua opinião a divergência sobre a possibilidade de o policial prevenir "iminente agressão" não o autorizaria a, por exemplo, abater a tiros criminosos que estejam portando fuzis, se não houver uma situação de confronto iminente. 

O "abate" de criminosos portando armas de grande porte é defendido pelo governador do Rio de Janeiro, o ex-juiz federal Wilson Witzel (PSC).

"Se o sujeito está fumando um cigarro em cima da laje com um fuzil na mão, mas não está havendo invasão da polícia, está com a arma para baixo, o simples estar com arma é perigo iminente? Na minha visão não é, na visão do governo Witzel, é", afirma Robalinho.

"Isso é só para mostrar como vai haver polêmica e insegurança jurídica em algum grau", diz o procurador. 

Outro ponto destacado pelo presidente da ANPR é o de que as hipóteses em que o excesso na legítima defesa não é punido poderiam ser alegados também pela defesa de criminosos que reagem a operações policiais. 

"Não duvido nada amanhã os advogados dizerem o seguinte: o policial estava entrando armado, ele tinha medo, queria se entregar mas tinha medo de levar um tiro e atirou primeiro", afirma Robalinho. 

Constituição não permite 'abate'

O defensor público federal Vinícius Diniz Monteiro de Barros, professor de direito penal da PUC de Minas Gerais, afirma que mesmo se forem aprovadas as medidas previstas no projeto, a Justiça deverá continuar usando os mesmos critérios para analisar se um caso se enquadra como legítima defesa, pois esses critérios estão bem estabelecidos nas leis e na Constituição Federal.

Tecnicamente falando, não há mudança. Parece que se converteu em lei uma promessa política, que inclusive governador do Rio utiliza muito", diz. "Mas de maneira nenhuma se pode conceder a uma pessoa uma carta em branco para abater outra pessoa 

Defensor público federal Vinícius Diniz Monteiro de Barros

Segundo Barros, as mudanças propostas por Moro não alteram a exigência hoje existente na lei de que a legítima defesa só pode ser utilizada para fazer frente a uma agressão, já praticada ou iminente. 

"A legítima defesa só é consentida pelo direito na medida em que faz cessar uma agressão, ela jamais concede uma carta em branco para o agredido se tornar agressor", ele diz. "Em abstrato, jamais se poderia pensar que a legítima defesa tivesse elasticidade para que um agente de segurança possa abater uma pessoa na rua", afirma Barros. 

O defensor afirma que o projeto não abre brecha para que policiais possam atirar livremente contra criminosos, em situação semelhante ao "abate" proposto por Witzel. 

"No estado democrático do direito não existe como conceber a legitima defesa com essa amplitude", afirma o defensor. 

O defensor diz que, se o projeto for aprovado, será importante estar atento a como as polícias, a Justiça e o Ministério Público vão tratar os casos de morte em confronto com a polícia. 

"É muito mais importante ver como as instituições se comportam do que o texto da lei", diz. 

'Segurança jurídica'

O governador do Rio, Wilson Witzel (PSC), afirmou que o projeto muda a forma como deve ser interpretada a legítima defesa e dá maior "segurança jurídica" à atuação dos policiais. 

"Está no Código Penal a possibilidade de prender quem agiu em legítima defesa. O que você vai fazer é inverter isso. Se alguém matou em legítima defesa, deve-se provar o contrário: que ele não agiu em legítima defesa. Então você inverte a presunção, o que dá uma segurança jurídica maior", disse o governador, após participar da sessão de abertura da Alerj (Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro) na terça-feira (5). 

Não é a pessoa que tem que provar que está em legítima defesa, o Estado é que tem que provar que ela não agiu em legítima defesa. Então o projeto no todo é muito bom

Governador do Rio, Wilson Witzel

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