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Opinião: Direito pouco explica atos de Dodge e do STF em polêmico inquérito

5.dez.2018 - O presidente do STF, Dias Toffoli, e a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, durante seminário em Brasília - G. Dettmar/Agência CNJ/Divulgação
5.dez.2018 - O presidente do STF, Dias Toffoli, e a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, durante seminário em Brasília Imagem: G. Dettmar/Agência CNJ/Divulgação

Bernardo Barbosa

Do UOL, em São Paulo

17/04/2019 04h00

Quando há um embate entre o STF (Supremo Tribunal Federal) e a PGR (Procuradoria-Geral da República), espera-se que seja possível explicar o conflito por meio das leis. Para a professora Eloísa Machado de Almeida, da FGV (Fundação Getúlio Vargas) em São Paulo, no entanto, os acontecimentos de ontem no inquérito para apurar notícias falsas sobre o Supremo extrapolam o direito.

"O direito explica muito pouco do que está acontecendo. O direito oferece parâmetros para dizer: isso está certo, isso está errado. No caso, eu posso dizer que está errado. Mas o direito não explica essas movimentações, esta postura dos ministros e da [procuradora-geral da República] Raquel Dodge", diz a professora, que dá aulas de direito constitucional.

Os ministros, no caso, são o presidente do STF, Dias Toffoli, e Alexandre de Moraes. O primeiro abriu o inquérito de ofício --ou seja, sem pedido da polícia ou do Ministério Público-- e nomeou o segundo, sem sorteio, para comandá-lo. Por meio de portaria, Toffoli instaurou o inquérito para apurar notícias falsas, calúnias, difamações e ameaças contra a honra e a segurança do STF, "de seus membros e familiares". No documento, o ministro não cita suspeitos ou atos específicos a serem investigados. O caso corre sob sigilo.

Ontem, Dodge disse que arquivaria a investigação porque ela não poderia ter sido instaurada sem pedido do MP. Moraes negou e citou o regimento interno do STF, segundo o qual "ocorrendo infração à lei penal na sede ou dependência do tribunal, o presidente instaurará inquérito, se envolver autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição".

Para a professora da FGV, a investigação nem deveria existir, já que os ministros não podem julgar um processo de interesse dos mesmos. Ela também questiona a interpretação de Toffoli sobre o regimento do STF.

"Essa autorização regimental é para um crime cometido nas dependências do tribunal. É uma interpretação muito forçada. Qual é o crime que está sendo investigado? Que crime na dependência do tribunal foi esse? Esta última decisão do Alexandre de Moraes fala que se trata de difamação. Se se trata de difamação, e a gente está falando de internet, a gente não está falando de crime cometido na dependência do tribunal."

A seguir, leia os principais trechos da entrevista.

UOL - O caso gera uma sensação, pelo menos para quem é leigo, de uma grande confusão institucional. Entre esses atores, principalmente Toffoli, Moraes e Dodge, tem alguém agindo certo nessa história?

Eloísa Machado - Acho que não. Não tem ninguém agindo corretamente nessa história. É claro que a posição de Toffoli e de Alexandre de Moraes é mais delicada, porque eles são os grandes protagonistas dessa questão toda.

Tem todo o debate em relação a esses inquéritos surgindo no julgamento que o Supremo fez sobre a competência para [julgar] caixa 2 eleitoral. Naquela sessão de julgamento, aparece a informação de que os ministros estariam sendo difamados, de que a honra do tribunal estaria sendo maculada --por alguns procuradores federais, inclusive, dizendo que, se o Supremo não decidisse pela competência da Justiça comum federal para julgar caixa 2, seria um golpe, que seriam coniventes com a corrupção.

A partir dessa informação, Toffoli decide pela instauração deste inquérito, sob pretexto de uma autorização do regimento interno, indicando o Alexandre de Moraes como relator.

Juridicamente, esse inquérito é um descalabro. No sistema jurídico brasileiro, é impossível que ministros --que têm absoluto direito de defender sua honra, sua imagem, que podem ser vítimas de difamação e calúnia-- investiguem e julguem o caso sobre si mesmos. Isso é inadmissível.

Acho que a partir da instauração deste inquérito, como é que você vai deixar um ministro que é vítima julgar e investigar seu próprio caso? Além desse debate, que é o central, o inquérito tem outros problemas. Ele está investigando quais fatos? A gente precisa ter fatos determinados para uma investigação. São quaisquer críticas em relação ao Supremo, em qualquer período de tempo? São críticas aos ministros, são ameaças?

E aí me parece que essa amplitude do objeto deste inquérito acaba permitindo que o Supremo atinja, por exemplo, matérias jornalísticas, coisas que estariam claramente fora de um escopo de um inquérito sobre difamação.

Acho que a Procuradoria-Geral da República está em uma posição muito sensível em relação a esse caso todo, porque foi uma parte do MPF que se mobilizou contra o Supremo em relação ao julgamento do caixa 2. E que se mobilizou fortemente, em redes sociais, dizendo que o tribunal seria conivente com corrupção, estaria dando um golpe se julgasse de um jeito ou de outro. Ainda que seja criticável a atitude de alguns procuradores da República em relação a esse julgamento, a reação do Supremo é juridicamente muito questionável.

Houve uma nota sobre a existência ou não do documento que era a base da reportagem, e logo depois a PGR pede para arquivar o inquérito. Era um inquérito que não devia estar no Supremo, mas está. Então como a PGR vai arquivar?

O direito explica muito pouco do que está acontecendo. O direito oferece parâmetros para dizer: isso está certo, isso está errado. No caso, eu posso dizer que está errado. Mas o direito não explica essas movimentações, esta postura dos ministros e da Raquel Dodge.

Uma coisa é importante mencionar: não é a primeira vez em que o Supremo toma uma decisão excepcional. Não é a primeira vez em que o Supremo, na onda da Operação Lava Jato, adota uma postura de censura. A gente não pode esquecer do episódio da entrevista do Lula, que estava sendo negociada com a Folha e que foi barrada pelo Supremo também em uma decisão juridicamente muito estranha. É uma pena que uma operação como essa, que trouxe tanta catarse para o país, tenha gerado nos ministros uma reação para reduzir a circulação de informação e atacar a imprensa, como parece que tem acontecido.

Daria para falar em uma questão corporativa ou mais individual dos ministros?

Não dá para saber. Eu não consigo te dizer qual é o objeto deste inquérito. Quais são os fatos? Foi o artigo que alguém escreveu e que há uma difamação? Foi uma ameaça que os ministros receberam por WhatsApp? O que está sendo investigado? A gente não sabe.

Me parece que é um inquérito amplo, aberto, para analisar qualquer difamação contra o tribunal. Uma tentativa de defesa. É uma defesa do tribunal ou individual dos ministros? Não sei. Quem está promovendo tudo isso é o presidente do Supremo, que representa o tribunal institucionalmente. Mas os ministros, me parece, estão adotando outra posição. Hoje mesmo [ontem], o ministro Marco Aurélio criticou a decisão do Alexandre de Moraes em relação à censura das matérias. Com os parâmetros que a gente tem, não consigo responder essa pergunta.

Eloísa Machado de Almeida, professora de direito da FGV - Gabriel Chiarastelli - Gabriel Chiarastelli
Eloísa Machado de Almeida, professora de direito da FGV
Imagem: Gabriel Chiarastelli

Isto leva a outro assunto, que é a divisão na Corte sobre decisões tomadas ali dentro individualmente.

Pois é. Os ministros estão confortáveis com isso? É uma questão que está sendo tomada para resguardar a instituição ou é sobre cada ministro individualmente? A gente não sabe, porque está sob sigilo.

Outro tema que se coloca mais uma vez é qual o tamanho do poder que cada ministro tem. O que ele pode fazer ou não, quais são as limitações que existem para os ministros do STF?

O principal limite para o ministro do Supremo é a lei, a Constituição, o processo. Regras processuais, o que pode ou não ser feito e quando pode ser feito, são uma grande limitação para o que um juiz pode ou não fazer.

Qual é o problema? Nos últimos anos, o Supremo tem se afastado destas regras e tomado decisões excepcionais. No caso da entrevista do Lula, se admitiu uma ação em que o partido político não era legitimado --era o Partido Novo-- para suspender uma liminar de um outro ministro e isso foi aceito. Nunca vi isso no tribunal.

Agora no final do ano, Marco Aurélio deu uma liminar em relação à prisão em segunda instância como uma reação ao "sequestro" de pauta, vamos chamar assim --porque ninguém quer julgar este caso. Pela primeira vez, se entrou com outro recurso que claramente não é admitido para esta ação, e o presidente do Supremo decidiu. Afastamento de presidente do Senado, afastamento de presidente da Câmara dos Deputados...

Se a lei e a Constituição não servem para limitar os ministros, de fato a gente tem um grave problema pela frente.

Mas seria uma questão de ter leis melhores ou de autocontenção dos ministros?

São as duas coisas. Com as regras que nós temos, os ministros deveriam privilegiar as decisões colegiadas, porque o próprio colegiado do tribunal é um tipo de limitação ao poder individual. Mas seguem com decisões liminares individuais que mostram um tribunal rachado e um vaivém de decisões. Talvez se os ministros procurassem decisões mais colegiadas, haveria uma forma de apaziguar a crise. Não me parece que eles estejam neste caminho, infelizmente.

Queria voltar a um ponto que a senhora mencionou: o direito explica muito pouco do que está acontecendo. Queria que a senhora falasse das implicações políticas disso, mais do que jurídicas.

Há alguns casos difíceis no direito: qual é a proteção jurídica da vida, os grandes dilemas de toda a sociedade contemporânea. As outras discussões jurídicas são simples: ou a regra permite aquilo existir, ou não permite. Quando a gente olha para este inquérito, a gente percebe que juridicamente não tem sustentação. As regras não permitem a existência deste inquérito e sua condução como tem sido desde que o Toffoli baixou esta portaria [que abre o inquérito].

Então, o direito e as ferramentas do direito explicam muito pouco desta realidade. Os parâmetros jurídicos conseguem dizer se está certo ou errado. E está errado, porque tem um sistema acusatório: o Código de Processo Penal diz que o juiz não pode ser investigador e vítima ao mesmo tempo, porque os ministros do Supremo não têm foro de prerrogativa de função enquanto vítimas, porque o regimento interno do Supremo não é superior a Constituição. As regras jurídicas explicam isso. Ou seja, elas não explicam a realidade: a de que esse inquérito existe, que ele está sendo tocado e que no âmbito deste inquérito se promoveu a censura de uma matéria jornalística.

Me parece que talvez seja mais útil entender a posição do Supremo pela lente da sociologia e da ciência política, que vão tentar explicar que este tribunal, neste momento de crise, frente a este Congresso Nacional renovado, frente a uma Presidência da República renovada, frente a uma instituição independente como o Ministério Público, se viu fragilizado enquanto ator político. E fragilizado no que teoricamente ele teria de mais força: na sua imparcialidade e independência.

Infelizmente, o direito só diz o que deveria ser neste caso, mas não explica as coisas como elas são. E o fato é que o Supremo tem agido de maneira excepcional juridicamente já há alguns anos e que agora, com este inquérito, se percebe que essa reputação que ele gastou nestes casos excepcionais está lhe fazendo falta neste momento de crise.

O que poderia ser feito para que este inquérito fosse extinto? Foi o que a Raquel Dodge fez ou existe outro caminho, juridicamente?

Juridicamente, a coisa é tão inexplicável que eu não consigo dizer se a Raquel Dodge poderia ou não arquivar. Este inquérito não podia existir. Não foi instaurado pelo Ministério Público, está fundado em uma competência do Supremo, do regimento interno. Aparentemente, a Dodge não poderia pedir para arquivar.

Ao mesmo tempo, a Constituição é muito clara ao dizer que quem detém o controle das ações penais é o Ministério Público. Se eles não querem investigar uma coisa, eles não investigam. Juridicamente, é uma resposta que vira uma salada.

O que deveria ser feito? O direito oferece uma saída. Os ministros foram vítimas de difamação? Eles podem solicitar a instauração de um inquérito. Podem ir atrás de uma responsabilização criminal e civil, como qualquer um de nós. E eles vão aguardar, enquanto vítimas, a apuração deste crime, que pode chegar aos autores e à aplicação de uma pena ou não.

A saída que o direito oferece é essa: aja como qualquer outra pessoa. Noticie esses fatos, a autoridade policial vai avaliar se se trata ou não de uma prática criminosa. Se for, esse inquérito promoverá investigações, depoimentos, eventualmente busca e apreensão. O delegado vai fazer um relatório final, que será apresentado ao Ministério Público, que por sua vez vai analisar a conveniência de entrar com uma ação penal. Ou a própria vítima, no caso de difamação, pode ir para um juizado especial criminal procurar a sua reparação.