Novos decretos de armas atrapalham investigação de crimes, diz ONG
Os novos decretos baixados pelo presidente Jair Bolsonaro (PSL) sobre porte e posse de armas retiram mecanismos de controle do tráfico de armas e munições e estimulam o comércio ilegal de balas e cartuchos. Além disso, atrapalham a investigação de crimes por falta de rastreamento de tiros, como os que mataram a vereadora Marielle Franco (PSOL), no Rio. A avaliação é do diretor-executivo do Instituto Sou da Paz, o advogado Ivan Contente Marques. Hoje, ocorrem 45 mil mortes por arma de fogo no país todos os anos, segundo a ONG.
Os novos decretos baixados na última terça (25) pelo governo repetem trechos dos outros publicados ao longo do ano aumentando o limite de compra de munições por cidadãos para até 5.000 cartuchos por ano por arma. Entretanto, não há marcação do número de série das balas. E os lojistas não são mais responsáveis por informarem o nome dos compradores à Polícia Federal e ao Exército.
"Perde-se totalmente a capacidade de rastreabilidade, mesmo que fossem munições marcadas", afirmou Marques, em entrevista ao UOL. "Esses decretos acabam sendo absolutamente nocivos para qualquer investigação policial."
O Instituto Sou da Paz, que é auxiliar no processo judicial, pretende manter a pressão no Legislativo e no Judiciário para derrubarem os novos decretos por entenderem que eles são uma cópia das regras iniciais. Veja os principais trechos da conversa
UOL - O presidente Jair Bolsonaro (PSL) anulou a legislação referente a armas lançada pelo governo em maio, regras que os parlamentares planejavam derrubar. Criou mais três decretos e afirmou que vai encaminhar ao Congresso Nacional um novo projeto de lei o tema. O que ele quer fazer com esse conjunto de atos?
Ivan Contente Marques - É clara a intenção do presidente de evitar uma derrota no Congresso e na Justiça. Os três decretos nada mais são do que uma reedição em partes do último decreto proposto em maio. São alterações cosméticas e repartidas, mas reeditam todas as inconstitucionalidades que iam a julgamento no STF. Me parece claramente um subterfúgio de uma derrota iminente. Prefiro dizer subterfúgio político para burlar o processo democrático de equilíbrio entre os Poderes.
Bolsonaro não foi inteligente do ponto de vista político?
Do ponto de vista da estratégia, me parece que sim. Mas é uma estratégia que debocha do estado democrático de direito. Por conta da morosidade na discussão no Congresso e na Justiça, ele simplesmente vai legislando por canetada, por decreto. Um deboche às custas de 45 mil pessoas que morrem vítimas de um crime com arma de fogo. É absolutamente revoltante esse tipo de chicana jurídica para benefício de tão poucos.
Quem acaba se beneficiando?
As indústrias de armas e munições, que vão poder vender 5.000 munições [por arma por ano], as categorias profissionais, o crime, que se abastece de mais armas em circulação, e um pequeno grupo de cidadãos brasileiros que tem, nas armas de fogo, um objeto de desejo: o caçador, o colecionador, o atirador, o desportista. Em face dos perigos que esse tipo de circulação causa, ele privilegia uma pequena parcela da sociedade, que não chega a 20 mil pessoas, em detrimento de tantas outras que morrem vítimas da falta de controle de armas.
Quanto a indústria de armas ganha ou deixa de ganhar com esses decretos?
Antes, você poderia comprar 50 munições por arma por ano. Hoje, 5.000. Cada munição de um calibre popular, o .38, custa entre R$ 8 e R$ 10. Imagina...
Só para governos é que a venda de munições tem que ter números de séries e lotes?
A indústria não é obrigada a marcar suas munições vendidas para particulares. É só para governos. Vamos lembrar que o caso Marielle só começou a ter alguma solução quando a polícia identificou os cartuchos usados pelos assassinos.
O que o Instituto Sou da Paz pretende fazer agora?
A mesma estratégia. Já somos "amicus curiae" ("amigo da corte)", pessoa ou instituição especialista em determinado assunto e que presta informações à Justiça em um processo judicial) nas ações do STF. Espero que mantenha os julgamentos levando em consideração esses novos decretos. Há uma pressão grande no Congresso para que ele assuma sua posição. Há uma campanha no Brasil todo. Temos milhares de pessoas mobilizadas no Brasil pressionando o governo federal, o Legislativo e o Judiciário.
Que resultados as políticas sobre armas do governo Bolsonaro vão trazer para a população?
No mundo, em relação ao aumento de circulação de armas, tem se demonstrado que mais armas de fogo são mais crimes, mais homicídios e mais acidentes com armas de fogo. O grande problema desse tipo de decreto é que ele tem muitos efeitos, mas poucos são sentidos imediatamente. As pessoas não vão sair correndo para as lojas para comprar armas a partir de amanhã. Mas, aos poucos, a sociedade brasileira acaba se armando cada vez mais e o estoque de armas aumenta o acesso à criminalidade. É uma situação real entre o mercado legal e o ilegal. Os policiais vão correr riscos nas abordagens policiais ou vão chegar nas abordagens mais violentos. Não é possível saber se o abordado está armado. Essas medidas vão ter efeito em médio e longo prazo. O grande problema é que a revogação desse tipo de decreto também tem um efeito de longo prazo. A gente ainda percebe armas apreendidas na mão de criminosos, mas produzidas em anos anteriores ao Estatuto do Desarmamento [2003].
O limite expandido de compra de munições é aceitável? Por quê? Qual o limite seria aceitável?
É louvável que pessoas que queiram ter arma de fogo queiram praticar e estar aptas a usar a arma. Mas esse número [limite passou de 50 cartuchos por ano para 5.000 balas para cada uma das quatro armas possíveis de se possuir] me parece abusivo. Há uma possibilidade de reverter, em caráter de razoabilidade, o número de munições concedidas desde que essas munições sejam absolutamente rastreáveis e a responsabilização pelo mau uso das munições atinja toda a cadeia de comercialização. Anteriormente, o decreto [antes do governo de Jair Bolsonaro] dizia que o lojista que vende uma caixa de munição precisava informar aos órgãos oficiais que aquelas munições foram vendidas para aquele CPF. Com o decreto, essa possibilidade passa para o comprador. Ele tem até 72 horas para informar o comando do Exército ou a Polícia Federal. Ou seja, perde-se totalmente a capacidade de rastreabilidade, mesmo que fossem munições marcadas.
A quem interessa isso reduzir o controle da venda de munições?
Não interessa à segurança pública e não interessa a um governo sério que olha a calamidade de segurança pública. Interessa àqueles que têm o propósito de desviar munições. Uma munição custa de R$ 8 a R$ 10 numa loja formal. No mercado paralelo, ela custa mais. Como não há rastreabilidade, isso abre a possibilidade de transferir do mercado legal para o ilegal com muito mais facilidade. Esses decretos acabam sendo absolutamente nocivos para qualquer investigação policial.
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