Fundo eleitoral de R$ 2 bilhões custa menos do que corrupção, diz Barroso
Resumo da notícia
- "Mas sou a favor mesmo é do financiamento privado pela cidadania", diz ministro
- Para Barroso, combater fake news com decisão judicial é uma fantasia
- O ministro afirma que o Brasil vive um momento conservador, mas não uma "onda autoritária"
Favorável a que apenas doações de pessoas físicas possam financiar campanhas eleitorais, o ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Luís Roberto Barroso afirma, no entanto, que o atual fundo público eleitoral, estimado em R$ 2 bilhões, custa menos aos cofres públicos que o potencial de corrupção existente no modelo anterior em que empresas podiam doar para partidos e candidatos.
Em maio, Barroso assume a presidência do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) e vai comandar a realização das eleições de 2020, quando serão eleitos prefeitos e vereadores em todo o país.
Um dos desafios da Justiça Eleitoral será lidar com a disseminação de informações falsas, as chamadas fake news. Para isso, Barroso aposta na parceria com as grandes empresas de tecnologias e em campanhas educativas pois, segundo o ministro, a ideia de que seria possível impedir judicialmente a disseminação de fake news seria uma fantasia.
Num ano em que o STF se tornou alvo de críticas de diferentes setores da sociedade, Barroso afirma que a mudança na regra da prisão em segunda instância foi um "retrocesso", mas que é preciso respeitar a decisão da maioria dos ministros. "Na vida a gente tem que saber ganhar e tem que saber perder", diz.
Observador atento da política, Barroso diz que o Brasil vive um momento conservador, mas não uma "onda autoritária", e que o STF, assim como o Congresso, tem sabido frear "excessos" do governo do presidente Jair Bolsonaro (sem partido).
Para o ministro, o limite ao avanço do conservadorismo são as regras da Constituição. "Numa democracia há espaço para liberais, para progressistas e para conservadores", diz. "Portanto, a agenda conservadora é legítima numa democracia."
Leia a seguir os principais trechos da entrevista, concedida no dia 20 de dezembro, no estúdio UOL/Folha, em Brasília. A íntegra da conversa também está disponível em podcast e no Youtube.
Fake news e fundo eleitoral
UOL/Folha - O senhor vai estar à frente do TSE nas próximas eleições municipais. Como a Justiça Eleitoral vai combater a disseminação de fake news nas próximas eleições?
Luís Roberto Barroso - Acho que o TSE está tão preparado quanto qualquer instituição no mundo hoje está preparada para esse fenômeno.
A ideia de que você possa combater as chamadas fake news por decisão judicial é uma fantasia. Você pode combater eventualmente e retirar uma aqui e retirar outra ali, mas a difusão, a velocidade e o volume em que isso é difundido, imaginar que a gente possa conter isso por decisão judicial é uma fantasia, é como aparar vento, não vamos conseguir e portanto eu não gostaria de criar esta ilusão.
O que é que nós estamos fazendo? Nós, sempre sob a liderança da presidente [atual do TSE, Rosa Weber], fizemos parcerias com as principais plataformas tecnológicas, que felizmente estão mudando de atitude em relação a esse tema, elas tiveram uma perda de imagem relevante por lavarem as mãos em relação às campanhas de desinformação.
Houve felizmente uma mudança de atitude das plataformas. Elas estão colaborativas, elas já perceberam que isto é um problema real para a democracia, de modo que nós confiamos na parceria com as empresas de tecnologia para conterem a disseminação de notícias por via de robôs. E aí você consegue, pelo uso de tecnologia, detectar e impedir. Nós contamos com elas para detectarem movimentos atípicos nas redes sociais e conterem, e as questões que violem políticas de uso dessas empresas também serem automaticamente retiradas. E contamos com elas também para as campanhas de esclarecimento que o TSE pretende, na medida do possível, liderar, que é mandar por "pushes" [mensagens automáticas], através da própria rede social, a retificação.
O problema é que você combater fake news é uma postura que judicialmente está na fronteira da censura. O que é fake news não é um conceito objetivo e cristalino. Então se você disser, para usar duas afirmações do calor da campanha política, o fulano de tal é ligado à milícia, ou fulano de tal foi o grande responsável pela corrupção no país. Isso é fake news? Isso é uma visão legítima? A vítima desta acusação não se acha miliciano nem se acha corrupta.
Além dessa questão de afirmações pontuais sobre candidatos, o TSE está preparado para punir estruturas montadas pelas campanhas para o disparo irregular de mensagens em massa aos eleitores? É possível evitar isso nas próximas eleições?
Evitar, só por via tecnológica, para falar francamente, salvo exceções. Punir, certamente. Acho que se houver prova cabal, objetiva de que houve este tipo de campanha de difusão de informação falsa deliberadamente bancada pelo partido ou pelo candidato, acho que não só pode, como tem de punir. A prova não é fácil, no entanto, porque muitas vezes isso [o disparo das mensagens] vem de fora do país inclusive.
O Congresso aprovou um fundo eleitoral de R$ 2 bilhões, que é dinheiro público que vai financiar as campanhas das próximas eleições. Como o senhor vê o uso de dinheiro público nas eleições?
Talvez essa seja a pergunta mais importante da nossa conversa. Votei no Supremo pelo fim do financiamento eleitoral por empresas tal como era praticado. Podemos fazer uma questão prévia: se financiamento por empresa deve ou não existir é uma decisão política, isso cabe ao Congresso. Eu sou contra e vou dizer por que, mas essa é uma decisão política que cabe ao Congresso.
Mas o modelo que nós tínhamos de financiamento eleitoral por empresas era a expressão da imoralidade administrativa e da falta de decência constitucional. A empresa podia tomar dinheiro emprestado no BNDES e financiar o candidato da sua preferência.
Acho que o financiamento público, esse desse fundo de R$ 2 bilhões a que você se refere, ruim como seja, é melhor, custa menos para o país, do que o potencial de corrupção e de decisões erradas que se toma pelas motivações erradas do financiamento privado.
Mas sou a favor mesmo é do financiamento privado pela cidadania. Os partidos vão ter que encontrar um mecanismo de mobilizar a cidadania a participar, e, portanto, é o cidadão que tem que dar a sua doação, [dizer] esse é o partido que eu quero que ganhe e vou dar a minha contribuição para esse partido. Portanto, sou a favor do financiamento privado por pessoas físicas, com a mobilização da cidadania.
O senhor é o relator da chamada candidatura avulsa, de candidatos sem partido. Isso não pode aumentar a rejeição à política?
Esse é um tema muito importante. Considero que a reforma política é o capítulo mais importante da vida brasileira olhando para o futuro, e a candidatura avulsa é um tópico menor, bem menor, dentro da reforma política.
Convoquei uma audiência pública, ouvi todos os partidos políticos, ouvi a Câmara, ouvi o Senado, ouvi os movimentos sociais e ouvi professores de ciência política. Formamos uma massa crítica de informações e agora é preciso responder três perguntas. Primeiro: cabe ou não ao Supremo deliberar sobre a existência ou não de candidatura avulsa. Posso dizer: a legislação não prevê expressamente que essa é uma matéria para o Congresso. Essa é uma possibilidade. Superada essa questão, supondo que os demais [ministros] imaginemos que o Supremo possa avançar nessa questão, é preciso discutir se ela é positiva à luz dos valores da Constituição, ou se ela é negativa à luz dos valores da Constituição.
Você tem duas posições. A posição favorável é: candidaturas avulsas, que são praticadas na quase totalidade das democracias do mundo, põem um certo tipo de pressão sobre os partidos políticos que os obrigam a se democratizaram. Essa é a visão de quem é a favor.
A visão negativa: as candidaturas avulsas vão personalizar as eleições e vão desinstitucionalizar os partidos, e a democracia deve ter instituições que funcionam como filtros entre a vontade popular e o poder político.
São duas visões diferentes de mundo. Acho que o debate foi muito bom. Numa democracia, nenhum tema tabu. Tudo deve ser discutido à luz do dia.
Mas, como disse, esse é um problema menor. Não é esse o problema. O problema do sistema político brasileiro é que ele é caro demais, tem baixa representatividade e dificulta a governabilidade.
Prisão em segunda instância
O STF revogou a prisão para condenados em segunda instância. A decisão piorou a percepção sobre o combate à corrupção no país?
Como é público e notório, fui voto vencido nessa questão da segunda instância. Mais do que isso, tinha sido um dos articuladores, junto com o ministro Teori Zavascki, lá em 2016 para a mudança dessa jurisprudência.
Como se sabe, sempre foi possível a prisão depois da segunda instância no Brasil. Na verdade, pela maior parte do período republicano, era possível a prisão depois da condenação em primeira instância. Até que, em 2009, o Supremo muda esse entendimento, coincidentemente no momento da vida brasileira em que o direito penal havia começado a chegar no andar de cima e deixar de ser um direito penal, feito apenas para pegar o menino pobre com cem gramas de maconha na periferia.
Aí o Supremo muda, infelizmente, o seu entendimento e diz: não pode executar a condenação criminal antes do trânsito em julgado. As consequências foram devastadoras porque incentivou uma litigância procrastinatória em matéria penal feita para não deixar os processos acabarem. O que fomentou, a meu ver, a impunidade.
E aí, em 2016, o Supremo muda e diz que pode executar a condenação criminal depois do segundo grau. Isso mudou o cenário da persecução penal no Brasil, sobretudo na persecução da criminalidade do colarinho branco, à frente a corrupção ativa, corrupção passiva, peculato, que é desvio de dinheiro, lavagem de dinheiro, que era uma criminalidade não alcançada pelo direito penal, de uma maneira geral, por razões ideológicas, estruturais da Justiça brasileira.
Com o risco real da punição, você produz duas consequências muito importantes. A primeira é relativa ao principal papel do direito penal que é funcionar como o que a gente chama de prevenção geral: as pessoas não delinquirem pelo temor de serem efetivamente punidas. Em segundo lugar, estimulou as colaborações premiadas.
O risco real da punição fez com que as pessoas procurassem, muitas vezes espontaneamente, o poder público para narrar malfeitos, coisas erradas, e sobretudo no caso de corrupção e lavagem de dinheiro, se você não tem alguém do esquema do lado de dentro para contar o que é que foi feito, qual foi a trajetória do dinheiro, onde é que ele foi lavado e onde é que ele foi parar, é difícil você chegar lá.
Portanto, a mudança na possibilidade da execução estimulou colaborações premiadas que facilitaram o julgamento e a condenação de pessoas que viviam de desviar dinheiro público. De modo que acho que a decisão foi infelizmente um retrocesso.
Agora, participo de um órgão colegiado e portanto preciso respeitar a posição da maioria. Lamento, sentidamente, mas na vida a gente tem que saber ganhar e tem que saber perder. Mas acho que esta decisão fez com que nós fugíssemos do padrão mundial de justiça criminal, demos incentivo a determinados comportamentos antissociais e frustramos uma demanda legítima da sociedade brasileira pelo fim da impunidade de quem desvia dinheiro público. De modo que lamento, mas respeito.
O senhor fez referência a essa questão do sentimento social e em julgamentos o senhor já disse que o Supremo pode até perder uma parte da legitimidade se não corresponder a esse anseio da sociedade. Qual deve ser de fato o peso da opinião pública na atuação do STF?
O papel do Supremo é interpretar a Constituição. Esse é o seu principal papel. Só que você não interpreta a Constituição num vácuo, você interpreta num determinado momento e num determinado local.
Portanto, a Constituição deve ser interpretada de acordo com os interesses da sociedade. Isso é diferente de opinião pública. Porque a opinião pública ela é passional, ela se move por sentimentos de momento. E a Constituição existe justamente para filtrar a opinião pública e filtrar o sentimento social.
Às vezes a multidão se apaixona, a multidão quer linchamento e evidentemente um tribunal não pode permitir isso. Porém, passado o sentimento social pelo filtro da Constituição, é simplesmente natural que um tribunal constitucional corresponda ao sentimento social.
Se prolongada e persistentemente um tribunal frustrar os sentimentos [sociais], não estou falando do Supremo, estou falando em teoria constitucional, se prolongada e persistentemente um tribunal frustrar o sentimento social, ele se deslegitima, ele perde credibilidade, e tribunais não tem nem armas, nem a chave do cofre. Você vive é de credibilidade, da legitimidade social, do reconhecimento de que você está julgando com competência técnica e imparcialidade.
Avanço do conservadorismo
O senhor, em decisões individuais, suspendeu uma série de leis municipais que se diziam contra a chamada "ideologia de gênero", impedindo as escolas de abordarem temas de educação sexual ou discriminação LGBT. O governo Bolsonaro também tem uma pauta conservadora nos costumes. Como você acha que o Supremo tem que abordar isso? O plenário do STF tem que discutir esses assuntos?
Diria que há três fenômenos diferentes ocorrendo no mundo em geral e com algum reflexo no Brasil. Um: é uma onda conservadora. Dois: é uma onda populista. E três: uma onda autoritária. Eles são fenômenos diferentes. O problema é quando eles se justapõem, quando eles se juntam, e aí você tem precedentes recentes e perigosos que levam a uma certa crise da democracia no mundo em países como Hungria, Polônia, Rússia, Turquia, Filipinas, Venezuela, Ucrânia, Geórgia, Nicarágua. Todos esses países vivem o que na teoria constitucional e em ciência política tem sido chamado de recessão democrática, ou legalismo autoritário ou democracias iliberais.
Portanto, há um processo histórico no mundo que envolve o conservadorismo, o populismo e o autoritarismo e que é preciso estar atento. Não acho que a democracia no Brasil esteja em crise e acho que conservadorismo não tem a ver com autoritarismo. Portanto, numa democracia, há espaço para liberais, para progressistas e para conservadores.
Mas como que o Supremo deve lidar com esse fenômeno?
O limite é a Constituição. Eu, por exemplo, ontem [19 de dezembro], suspendi um decreto presidencial, nessa linha de costumes, que, de certa forma, mutilava e esvaziava completamente Conanda [Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente], que é o conselho que cuida de questões de criança e adolescência, mudando o critério de escolha dos representantes da sociedade civil, exonerando os que estavam lá, limitando o número de reuniões, dizendo que não pagava mais a passagem de quem vinha para reuniões. Quer dizer, com o esvaziamento de uma participação da sociedade civil, num caso em que a Constituição impõe.
O Brasil vive esse processo de erosão democrática?
Acho que o Brasil vive certamente um momento conservador. Acho que no mundo inteiro, vale para os Estados Unidos, para o Reino Unido ou para o Brasil, a política incorporou um componente populista. Acho que nós não vivemos uma onda autoritária. Acho que as instituições estão funcionando. O Congresso já rejeitou medidas provisórias do presidente [da República], o Supremo já declarou inconstitucionais decisões do presidente. As instituições brasileiras são sólidas.
Portanto, como um juiz constitucional presto muita atenção a todos esses elementos. Nós [do STF] somos guardiões da democracia brasileira. E acho que esse é um papel que o Supremo cumpre bem. Aliás, para falar bem do Supremo, divirjo muito de posições do Supremo no exercício da sua competência criminal, que de resto acho que ele nem deveria ter na extensão que tem. Mas o Supremo é um tribunal relativamente coeso, bom, progressista nas questões que dizem respeito a direitos fundamentais, proteção de mulheres, gays, negros, transgêneros, comunidades indígenas. Esses grupos vulneráveis têm tido no Supremo um parceiro valioso.
Nos últimos meses, o filho do presidente Bolsonaro, o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) e o ministro da Economia, Paulo Guedes, citaram o AI-5. O presidente Bolsonaro postou um vídeo em que compara Supremo a uma hiena que acossa o governo. Teve também aquele vídeo em que Eduardo Bolsonaro fala em fechar o STF. Há um risco à democracia? Como que o Supremo tem que se comportar perante esses movimentos?
A democracia é feita de um varejo político que não a ameaça. Acho que esses exemplos que você deu eles estão no varejo político, às vezes dos excessos, eventualmente excessos criticáveis, mas eles não representam ameaça às instituições.
O que considero ameaça às instituições acho que o Supremo cumpriu bem o seu papel: portanto não pode reeditar medida provisória transferindo a demarcação de terras indígenas se ela já foi rejeitada pelo Congresso, acho que o Supremo fez bem. Acho que não pode esvaziar conselhos criados por lei previstos na Constituição, acho que o Supremo fez bem.
Portanto, acho que a proteção de direitos fundamentais e a proteção das regras da democracia, esse papel o Supremo não pode abdicar, acho que cumpre bem e acho que vem cumprindo, contendo os excessos desse governo, como conteve dos governos anteriores. De modo que eu não vejo um risco democrático, porque acho que as instituições estão funcionando bem. Agora, bobagem faz parte da democracia.
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