Presidência "subversiva" de Bolsonaro é pedagogia do inferno, afirma Romano
Resumo da notícia
- Para o filósofo Roberto Romano, governo Bolsonaro é um retrocesso ético
- Professor da Unicamp diz que gestão desafia as leis e não tolera divergências
- Ele também critica a proximidade entre o presidente e líderes evangélicos
Crítico do governo Jair Bolsonaro (sem partido), o professor de ética e política da Unicamp Roberto Romano avalia que o primeiro ano da gestão foi uma prévia de um cenário caótico que pode se instalar até o fim de mandato. "Esse primeiro ano foi uma espécie de pedagogia do inferno."
Para Romano, que é doutor em filosofia, Bolsonaro representa um retrocesso nos padrões éticos e tenta subverter "o aparato constitucional e legal do país". Em sua opinião, o presidente reduz a expectativa de comportamento e resiste a aceitar a pluralidade de posições e a divergência de opiniões.
Autor de livros como "Brasil, Igreja contra Estado", ele manifesta preocupação com a proximidade entre o governo e lideranças evangélicas e afirma que isto representa uma "mistura delirante do teológico com o político".
Confira abaixo os principais trechos da entrevista.
UOL - Que avaliação o sr. faz do primeiro ano da gestão Bolsonaro?
Roberto Romano - Em termos éticos, [foi] um retrocesso muito grave em relação à situação da vida social brasileira e política, incentivado pelo exemplo do próprio presidente e de alguns ministros como o da Educação.
Você tem um incentivo à perda daquilo que em ética se chama de expectativa de comportamento. Se você não tem o mínimo de expectativa correta de comportamento numa sociedade, ela se torna inviável. Expectativa de comportamento se traduz nos bons modos, se traduz no respeito à pluralidade dos valores, no respeito à variedade de opções ideológicas e religiosas.
Por outro lado, o ministro da Justiça [Sergio Moro], que prega o combate à corrupção, assume uma atitude do ponto de vista dos instrumentos de norma de controle social que é absolutamente contrária a qualquer perspectiva do Estado Democrático de Direito. Esse excludente de ilicitude [proposto no pacote anticrime, mas derrubado pelo Congresso] é algo que brada aos céus do ponto de vista ético.
Então, esse primeiro ano foi uma espécie de pedagogia do inferno. Foi um péssimo governo. Um governo que não prima pelo exemplo do respeito à Constituição, às leis e aos costumes éticos corretos.
Que pontos mais preocupam o sr.?
Todos são preocupantes. Na medida em que persistir esse modus operandi, nós chegaremos antes do final do governo Bolsonaro àquele estágio em que o sociólogo Émile Durkheim (1858-1917) chamava de anomia [ausência de lei ou regras]. Estabeleceu-se como prática política a separação de amigo e inimigo, que é uma tese autoritária que já fez muito mal ao Brasil e foi ideada pelo [jurista e filósofo alemão} Carl Schmitt (1888-1985). Esse ponto me parece o mais brutal: você não aceitar a existência da plena democracia e da divergência de opinião.
Não quero dizer que os opositores do governo também primam pelo respeito. Não é isso. Mas ocorre que quando você tem o poder no palácio, o palácio deve se responsabilizar pela observância da Constituição.
Quer um exemplo de desafio à Constituição? O culto feito [neste mês] no Palácio do Planalto por pastores protestantes. Você tem milhões de brasileiros que não são protestantes, que não são evangélicos, que são cidadãos plenos que pagam impostos e que têm o direito de ter no Palácio do Planalto um lugar neutro do ponto de vista religioso, do ponto de vista ideológico. É o mínimo que se espera.
No entanto, se faz esse espetáculo de confusão de Estado e de igreja. E não há uma autoridade pública para questionar. Não tem Ministério Público, não tem Judiciário, nada. Ele [Bolsonaro] não foi eleito presidente dos evangélicos. Ele foi eleito presidente dos brasileiros, e quando você ignora dessa maneira uma vasta maioria da população, está quebrando a principal base do convívio cívico, que é o respeito.
É a Presidência subversiva. Não vejo outro nome. A direita sempre foi da lei e da ordem. No entanto, você tem essa coisa inédita: uma Presidência que procura subverter todo o aparato constitucional e legal do país.
O sr. vê aspectos positivos na administração?
Apesar dessa ineficácia e desse obscurantismo do governo, o Ministério dos Transportes, abro a imprensa, só tem boas notícias. Você identifica alguns setores [com pontos positivos], mas isso é muito normal porque o governo é um gigante aqui no Brasil. Você tem sim [setores positivos], mas infelizmente o que prima é essa essa subversão à ordem.
A presença dos filhos políticos atrapalha o governo?
Se eles [os filhos] não existissem, os defeitos do governo seriam menos notórios. Eles ajudaram a dar mais evidência aos passos falsos do presidente. Eles ampliam essa mensagem de destruição das estruturas estatais que o presidente traz. Não vejo nada de excepcional neles que não esteja na pessoa do presidente. Eles atrapalhariam se você tivesse um ministério e um presidente da República com muito mais equilíbrio e respeito. Como você não tem, eles entram na dança geral.
Pode piorar, se é possível utilizar esse termo. Esse caso do [Fabrício] Queiroz e do [senador] Flávio [Bolsonaro] pode piorar a situação do presidente do ponto de vista, até mesmo, desses 30 milhões que o seguem. Por outro lado, isso também pode trazer alguma rachadura entre o Ministério Público e a área do governo coberta por Sergio Moro. Estou olhando o que vai acontecer porque o Sergio está se preparando para ser candidato a presidente da República. É evidente.
Você tem essa tradição do moralismo brasileiro; você tem essa decepção do público geral — de esquerda, direita, centro — com a ordem política e você tem uma pessoa [Moro] que usa como marketing o combate à corrupção. Ou ele sai do governo nessa situação agora, se piora o caso Queiroz e piora o caso Bolsonaro, ou ele também se desmoraliza. Ele [Moro] tem um capital político a zelar.
Como o sr. avalia a influência do escritor Olavo de Carvalho no governo?
Qualquer governo que tenha ideólogos é um péssimo governo porque o ideólogo tende a apresentar uma visão abstrata da realidade, seja de esquerda ou de direita. O ideólogo é aquele que prepara teses, ideias, programas. Se esse ideólogo entra como uma espécie de fonte justificativa de discursos e de atos, ele não pode ser responsabilizado. Esse é o principal drama.
Se amanhã o governo Bolsonaro der com os burros n'água, que é uma uma possibilidade, porque todo o governo do Brasil pode dar com os burros n'água, ele [Olavo de Carvalho] não vai responder diante de ninguém.
O Olavo de Carvalho como indivíduo e como guru pode delirar o quanto quiser; o presidente da República, não; o ministro, não. Porque entre a ideia que foi gerada e a realidade há uma distância. Então, o grande teste para definir de vez o estatuto do Olavo de Carvalho seria colocá-lo como ministro da Educação para que tivesse que responder [por ações do governo]. Ele não responde. É uma atitude plenamente fora do sentido da accountability [prestação de contas].
O sr. esperava que a administração tivesse um peso ideológico tão grande?
Não esperava que a carga fosse tão forte. Eu esperava um pensamento conservador, de direita, próximo de um saudosismo do período militar porque o candidato Bolsonaro nunca fez segredo disso. Agora, com essa violência, eu não esperava. Essa virulência da fala e dos atos do presidente botam fogo num rastilho de pólvora.
Como o sr. vê a relação entre o governo e religiosos?
É a mistura delirante do teológico com o político. Delirante porque nunca existiu um Estado essencialmente religioso que tenha sobrevivido. Porque são lógicas diferentes. Se você tem aqui no Brasil coisas desse tipo — fazer um culto particular de uma igreja particular num palácio que é de todos —, isso é um mau tremendo para o Estado e um mal tremendo para a religião.
O Brasil, desde 1500, tem a hegemonia da Igreja Católica. E a Igreja Católica comeu e se lambuzou do poder, sobretudo nas duas últimas ditaduras do século 20. Isso fez muito mal para a Igreja Católica, vai fazer muito mal para esses neoteocratas.
Se existe um elemento fundamental do Estado moderno é justamente a independência, a autonomia diante do poder religioso. É impossível você ter um governo puramente religioso porque no governo puramente religioso você tem homens que falam em nome de Deus e são homens. Podem ser corruptos e com isso desacreditam a crença em Deus. Esse é o perigo do governo teológico-político.
O que significa o fato de Bolsonaro manter grande presença e atuação nas redes sociais e ter embates constantes com a imprensa?
Nas redes sociais, você emite ordens e veicula slogans. Na impressa, você não tem condições de estabelecer sempre um estilo de comunicação que é de ordem. É evidente que a resistência maior a essas ordens se dá na imprensa escrita.
As pessoas falam de espontaneidade das redes sociais. Esse é um ponto que me irrita um pouco. Não tem espontaneidade nenhuma. É tudo comandado, um sistema altamente técnico de administração de massas. São comandos que partem de determinados cérebros. É um sistema militar industrializado de controle de massas.
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