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Como funciona o juiz de garantias pelo mundo, modelo nascido nos anos 70

Sergio Moro e associações de juízes criticam criação do juiz de garantias, dentro do pacote anticrime sancionado por Jair Bolsonaro - Pedro Ladeira - 3.out.19/Folhapress
Sergio Moro e associações de juízes criticam criação do juiz de garantias, dentro do pacote anticrime sancionado por Jair Bolsonaro Imagem: Pedro Ladeira - 3.out.19/Folhapress

Eduardo Militão

Do UOL, em Brasília

15/01/2020 04h00Atualizada em 16/01/2020 18h07

Resumo da notícia

  • Juiz de garantias entra em vigor no Brasil dia 23
  • Hoje, CNJ conclui estudos sobre como aplicar nova regra
  • Modelo foi idealizado na Alemanha nos anos 70
  • Portugal foi pioneiro na execução do modelo e Mãos Limpas foi feita com esse padrão

O juiz de garantias, aprovado com a lei anticrime, não é uma jabuticaba do Brasil. Seu início remonta aos anos 1970, na Alemanha.

A primeira experiência efetiva com a medida foi feita em Portugal, em 1987, afirma o professor de direito penal do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) e ex-secretário de Cooperação Internacional da Procuradoria Geral da República (PGR) Vladimir Aras. Na América Latina, só Brasil e Cuba ainda não adotaram o modelo, diz o professor.

Nesta quarta-feira, um grupo de trabalho do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) apresentará a conclusão de um estudo para sugerir métodos de implantação do modelo no Brasil. A lei 13.964/2019 entra em vigor em 23 de janeiro.

A Argentina possui juiz de garantias desde 1991, mas faz isso gradualmente. Até hoje ainda não o colocou em prática em todas as cidades.

O que é o juiz de garantias

A polêmica medida opôs o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e o ministro da Justiça, Sergio Moro. Em linhas gerais, o juiz de garantias é aquele que, durante a investigação sigilosa de um crime, vai receber os pedidos de medidas mais invasivas contra os direitos fundamentais de um investigado.

São pedidos da polícia e do Ministério Público para quebrar os sigilos de comunicações, como escutas telefônicas, mensagens de celulares, emails, arquivos armazenados em nuvem, e de dados bancários e fiscais, como movimentações financeiras e declarações de imposto e de faturamento prestadas à Receita. Também envolvem prisões provisórias, aquelas feitas antes mesmo da abertura de um processo criminal e de uma condenação.

Quando a acusação criminal é apresentada à Justiça, esse juiz sai de cena. De país para país, duas coisas diferem nesse aspecto.

A primeira é até quando o juiz atua. A nova lei do Brasil imita o modelo de Portugal: o juiz de garantias recebe ou rejeita a denúncia antes de "passar a bola" para o outro magistrado. Em outros países, são os novos magistrados que analisam a denúncia.

A outra diferença é quem recebe "o passe" depois. No Brasil, um novo juiz tomará conta do processo. Mas na Alemanha e na Argentina é comum que uma turma de três magistrados cuide do processo.

"Como a Alemanha tem um sistema judicial e de competência diferente do Brasil, normalmente uma câmara de magistrados sentencia o processo", afirma o advogado Luís Henrique Machado, que fez doutorado naquele país.

Nos Estados Unidos e na Inglaterra, um júri formado por cidadãos comuns e presidido por um juiz de carreira é que analisa a denúncia.

Medida acaba com juiz herói "Marvel", diz desembargador

Apoiadores do juiz de garantias veem o modelo como modo de assegurar que o investigado tenha um julgamento feito por um juiz o mais imparcial possível. Quem é contra afirma que haverá aumento de custo com o Judiciário e falta de pessoal para aplicar a nova regra, que deve entrar em vigor em poucos dias. Além disso, críticos do modelo dizem ele pode atrapalhar a Lei da Maria da Penha

"É intuitivo que a falta de contato prévio com a formação da prova e da justa causa propicia ao juiz que julgará o mérito condições de se desinvestir dos resultados processuais até então alcançados", escreveu em artigo o ex-procurador da Operação Lava Jato Marcelo Miller, ao defender o juiz de garantias.

O desembargador Ney Bello, do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, diz que sai a figura do juiz herói "Marvel".

É a perda de impacto do juiz Marvel -- do nosso Capitão América de toga -- que permite reações exageradas contra a medida dogmaticamente acertada e procedimentalmente correta
Ney Bello, desembargador do TRF-1

Bello atua como magistrado criminal e é responsável por relatar vários casos da Lava Jato, como as prisões dos ex-presidentes da Câmara Eduardo Cunha e Henrique Alves, ambos do MDB.

Vladimir Aras, professor de direito penal do Instituto Brasiliense de Direito Público  - Alan Marques/ Folhapress - Alan Marques/ Folhapress
Vladimir Aras, professor de direito penal do Instituto Brasiliense de Direito Público
Imagem: Alan Marques/ Folhapress

Vladimir Aras, que também atuou na Lava Jato, a maior investigação anticorrupção do país, também defende a medida. Segundo ele, trata-se de uma tendência mundial, que visa assegurar a imparcialidade do julgador. O professor é autor de um estudo no qual compara o funcionamento do sistema pelo mundo.

Aras, porém, afirma que a lei é imperfeita por não esclarecer como será aplicada em tão pouco tempo e em relação a situações especiais, como violência contra mulher, tribunal do júri e Justiça Eleitoral.

Para o advogado Max Telesca, a lei vai acabar com a "inexorável contaminação do diálogo privilegiado entre juiz, Ministério Público e polícia".

"O juiz de garantias também será uma barreira aos excessos invasivos que hoje se verificam na prática, como prisões preventivas desnecessárias que podem ser substituídas por outras medidas cautelares", afirma Telesca.

Juiz de garantia atrapalha Lei Maria da Penha, diz AMB

A Associação dos Magistrados Brasileiros é uma das entidades que foram ao STF (Supremo Tribunal Federal) ajuizar uma ação contra o juiz de garantias. O caso está com o presidente do tribunal, ministro Dias Toffoli. Como presidente do CNJ, hoje Toffoli recebe o estudo do grupo de trabalho do conselho sobre o tema.

Renata Gil, primeira mulher eleita para presidir a Associação dos Magistrados Brasileiros - raquel Cunha/Folhapress - raquel Cunha/Folhapress
Renata Gil, primeira mulher a presidir a Associação dos Magistrados Brasileiros
Imagem: raquel Cunha/Folhapress

Para a AMB, o juiz de garantias vai atrapalhar a Lei Maria da Penha porque essa regra permitiu que o próprio magistrado tomasse medidas emergenciais de segurança em benefício de mulheres vítimas de violência. Essas medidas, como proibir o marido suspeito de agredir a mulher de se aproximar dela, podem ser feitas mesmo sem pedido da vítima, da polícia ou da Promotoria.

Mas a nova lei "veda a iniciativa do juiz na fase de investigação", destaca a entidade, que é presidida pela juíza Renata Gil Videira.

Vislumbra-se um alarmante retrocesso da legislação brasileira quanto à conquista histórica em termos de coibição e prevenção da violência doméstica e familiar contra a mulher no país
Renata Gil Videira, presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros

O procurador Hélio Telho, do Ministério Público Federal em Goiás, afirma que a lei tem erros já apontados ao presidente Bolsonaro antes de ele decidir sancionar a regra. Para o investigador, a redação da lei não impede que o juiz de garantias atue na fase do processo simplesmente porque escreveram erroneamente o número dos artigos que tratam dessa suposta proibição.

Juiz de garantia só serve para Europa, diz professor

Professor de direito da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), o promotor Mauro Andrade afirma que incluir o juiz de garantias no Brasil é uma "aberração".

Ele fez um estudo sobre o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e concluiu que o modelo de magistrado que atua apenas na fase de investigação só se justifica na Europa porque lá os julgadores analisam as provas trazidas pela polícia com mais profundidade antes de conceder uma busca apreensão ou uma quebra de sigilo.

Segundo Andrade, no Brasil, basta um "indício suficiente" para um juiz decretar uma busca. A lei de Portugal, por exemplo, exige que haja "graves indícios". "É que se encaixa na exigência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos para afastamento do juiz que atuou na fase de investigação, impedindo-o de atuar também na fase processual", disse. Essa análise mais profunda contamina o juiz, algo que, para ele, não existe no nosso país.

Nós importamos uma solução para um problema que nós não temos
Mauro Fonseca Andrade, professor da UFRGS

Lá fora é assim

  • Argentina

O "juez de las garantías" começou a ser implantando em 1991 na Argentina, um caminho gradual que não foi concluído ainda. Nos lugares em que já existe essa figura, o magistrado recebe os pedidos dos promotores do Ministério Público, os chamados "fiscales". São pedidos de prisões provisórias, buscas e apreensões e quebras de sigilo de comunicações e de dados bancários e fiscais. O juiz pode autorizar ou negar.

Quando a investigação termina, e o os promotores enviam uma denúncia à Justiça, aquele juiz não participa do processo. Outros é que vão julgar se recebem a acusação. Dependendo do caso, pode ser um juiz sozinho, uma turma com três magistrados ou um júri misto, com juízes de formação e pessoas da comunidade. Se a acusação for aceita, o processo criminal começa. Esses novos juízes é que vão decidir a sentença final, para absolver ou condenar o réu.

  • Portugal

Em Portugal, a figura do juiz de garantias foi criada em 1987. A lei portuguesa diz que as medidas mais invasivas da investigação — prisões provisórias, busca e apreensão, quebras de sigilo de comunicações e de dados bancários e fiscais — só serão autorizadas se houver "graves indícios" de prática de crime cometido intencionalmente.

O juiz que atua nessa fase de investigação também será o responsável pelo recebimento da acusação, assim como acontece no Brasil. Se ele receber a denúncia, o caso passará para outro magistrado.

  • Alemanha

As primeiras ideias sobre juiz de garantia no mundo surgiram na Alemanha, nos anos 1970. Lá, esse magistrado é chamado de juiz de investigação ou "Ermittlungsrichter", em alemão. Ele decide sobre questões como busca e apreensão, interceptação telefônica, oitiva de testemunhas e prisões antes do início da ação penal. Normalmente, uma câmara de magistrados é que sentencia o processo.

O então juiz federal Sergio Moro participa de debate sobre o legado da Operação Mãos Limpas, na Itália (Mani Pulite, em italiano) - Jorge Araujo - 24.out.17/Folhapress - Jorge Araujo - 24.out.17/Folhapress
O então juiz federal Sergio Moro participa de debate sobre o legado da Operação Mãos Limpas, na Itália (Mani Pulite, em italiano)
Imagem: Jorge Araujo - 24.out.17/Folhapress

  • Itália

A Itália tem juiz de garantias desde 1988. Toda a Operação Mãos Limpas, que é considerada um exemplo e inspiração para Moro, ex-juiz da Lava Jato, foi realizada com esse modelo de atuação.

O chamado "juiz de investigações preliminares" recebe os pedidos de prisões, buscas e quebras. Quando a denúncia chega, ela é analisada por uma turma com três magistrados.

  • EUA

A legislação penal norte-americana varia em cada estado. No de Nova York, por exemplo, há uma espécie de juiz de garantias. Quando o promotor do Ministério Público precisa pedir uma busca e apreensão por exemplo, ele solicita ao grande júri, que é presidido por um juiz, mas cuja decisão cabe a 23 pessoas da comunidade.

Terminada a investigação, a Promotoria oferece a denúncia. Novamente, quem vai receber ou rejeitá-la é outro colegiado, um júri de 12 pessoas diferentes presidido pelo juiz "profissional" da Vara. Recebida a denúncia, o processo começa. O investigado pode pedir que o júri seja dispensado e apenas o juiz analise sua acusação.

  • Reino Unido

Na Inglaterra, as investigações são conduzidas pela polícia. Ela faz ao juiz os pedidos de buscas, prisões e quebras. Terminada a investigação, a polícia entrega seu relatório ao CPS ("Crown Prosecution Service"), espécie de Ministério Público, que faz a acusação diante do juiz. Mas quem vai receber a denúncia é um júri de 12 pessoas. Se for na Escócia, serão 6 pessoas. Como nos EUA, o investigado pode dispensar o júri e pedir o julgamento apenas por um juiz de carreira.

Fontes: Estudo do professor e procurador Vladimir Aras e entrevistas com o professor Mauro Andrade e os advogados Luís Henrique Machado e Max Telesca