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Lockdown em Araraquara expõe rixa mais política que científica na pandemia

Araraquara adotou lockdown com multa de R$ 120 para quem sair de casa sem justificativa Imagem: Arte UOL

Ana Paula Bimbati e Lucas Borges Teixeira*

Do UOL, em São Paulo

27/06/2021 04h00

Sete dias e meio. Este é o período do novo lockdown por qual Araraquara, no interior de São Paulo, passa desde as 12h do último domingo (20) e que acaba hoje. Fechada pela segunda vez após nova alta de infecções por covid-19, a cidade paulista virou referência na adoção de medidas restritivas e cenário de um grande embate entre radicalização política e ciência na pandemia.

As restrições, mais radicas adotadas no país até então, acabaram expondo a polarização que tomou conta do debate sobre a pandemia. Parte da população endossa as decisões do prefeito Edinho Silva (PT), enquanto o comércio, preocupado, reclama, e apoiadores do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) protestam. Para especialistas, a discussão é um reflexo do enfraquecimento da política anti-isolamento, um consenso internacional.

O decreto da prefeitura prevê restrição inclusive de supermercados e multa de R$ 120 para quem sair de casa sem justificativa. Só podem funcionar serviços de saúde. A partir de amanhã, o município mantém barreiras sanitárias, exigindo teste negativo de quem quiser entrar, e busca ativa de quem teve contato com casos positivos, além de toque de recolher das 20h às 5h. Quem recusar o teste ou não cumprir isolamento pode responder por conduta criminal.

No segundo lockdown, durante a semana, quem não se enquadra nas regras de deslocamento demonstrava receio de ser abordado pela fiscalização. A maioria das pessoas que circulava pelas ruas da cidade de 238 mil habitantes, a 276 km de São Paulo, o fazia por conta do trabalho. Congestionamentos só eram vistos em blitze e barreiras sanitárias.

O ex-frentista Paulo, 31, que preferiu não dar o sobrenome, está desempregado há seis anos e recolhe recicláveis para pagar as contas. Mesmo com medo da multa, ele diz que não pode parar. "Cada dia estou em um bairro. Tô devendo um ano de água, um ano de força", conta.

Paulo tem dois filhos e recebe alimentos do kit merenda enviado pela escola e de um lar filantrópico em que a filha está matriculada. A prestação da casa, adquirida por meio de programa social, está "um pouco atrasada". Ainda assim, ele diz concordar com o lockdown.

Sei como [a doença] é difícil, sei como minha mãe e minha irmã estão [infectadas]. Se for para melhorar tudo isso, acho que vai ser bom."
Paulo, morador de Araraquara

O pedreiro autônomo Antonio de Jesus Moura, 60, também teve de arcar com uma semana parado. "Conta de luz, água está um absurdo. Agora tô só com uma força [conta de energia elétrica] atrasada, mas semana que vem já pago."

Centro comercial de Araraquara (SP) vazio durante o segundo lockdown na cidade Imagem: UOL

A preocupação financeira é o que tem movido parte das críticas à medida adotada pela prefeitura da cidade. "Não é punindo as empresas que vai conter o vírus porque não está atingindo o foco", afirma o presidente da ACIA (Associação Comercial e Industrial de Araraquara), José Janone Júnior, que considera a medida "inconstitucional".

Ao UOL, a Prefeitura de Araraquara afirmou que o decreto municipal tem base nos artigos 23, 24 e 198 da Constituição Federal, "que estabelecem ser de competência concorrentemente à União, aos estados, ao Distrito Federal e aos municípios legislarem e executarem medidas concernentes à promoção e à proteção da saúde pública em caráter preventivo e assistencial".

Janone cita ainda "festas clandestinas e aglomeração em ônibus" como principais pontos de contaminação. "São Carlos tem 30 mil habitantes a mais, 100 mortes a menos e não fez nenhum dia de lockdown. Toda a narrativa da prefeitura vai por água abaixo quando você analisa friamente os números", argumenta ele.

A 42 quilômetros de Araraquara, São Carlos somava, até a última quinta (24), 421 mortes por covid-19, 347 ocorridas neste ano. Na última semana, adotou pela primeira vez medidas mais rígidas que o Plano São Paulo. Araraquara registrava 500 mortes, 408 neste ano.

Primeiro lockdown durou 10 dias, em fevereiro

Em 2020, Araraquara tinha uma das menores taxas de morte pela doença no estado. Sem restrições, o número disparou em fevereiro deste ano. Com 100% dos leitos de UTI (unidade de terapia intensiva) da região ocupados, a prefeitura decretou o primeiro lockdown de dez dias.

Na primeira semana de março, a cidade registrava 42 óbitos. Um mês depois, no início de abril, caiu para 9.

A gestão investiu no rastreamento do vírus, com bases comunitárias, no fechamento de comércios pontuais, e acompanhamento das taxas. Em junho, a ocupação de leitos na região se manteve abaixo dos 90%, de acordo com Secretaria Estadual da Saúde. Mas, segundo a prefeitura, a taxa de transmissão voltou a subir para além dos 20% dos testados durante três dias seguidos, o que embasou a retomada da medida.

Politização da ciência

Embora haja um apoio de parte da população, algo que a prefeitura gosta de destacar, as medidas estão longe de ser um consenso na cidade. Tanto que o próprio Edinho foi alvo de protestos e chegou a ser ameaçado de morte, em março deste ano.

A polarização acaba ocorrendo incentivada pelo comércio. O lockdown fecha o comércio totalmente, é diferente de outras ações que vimos em outros locais [do país]. E isso acaba dando combustível a quem é contra."
Maria Teresa Kerbauy, professora de Ciência Política da Unesp (Universidade do Estado de São Paulo)

Em abril de 2020, a administradora Silvana Tavares Zavatti foi detida em Araraquara após se recusar a usar máscara e chegar a morder guardas civis. O vídeo viralizou e o caso foi aproveitado também por Bolsonaro como exemplo de crítica à política de restrições.

Neste ano, quando a prefeitura decidiu implementar lockdown, o município voltou a ser alvo de Bolsonaro, que criticou as medidas em suas lives, com informações falsas. O fato de Edinho Silva ser do PT é um ingrediente a mais.

"Ele [Edinho], não sei se por convicção ou cálculo, decidiu tomar a pandemia para a sua frente, com medidas de restrição, rastreamento, multas etc. Ao fazer isso, ele se tornou uma espécie de anti-Bolsonaro e acabou transformando Araraquara em case nacional", diz Milton Lahuerta, coordenador do Laboratório de Política e Governo da Unesp.

Nesta semana, o presidente da Ceagesp (Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo), o coronel Ricardo Mello Araújo —que foi nomeado por Bolsonaro—, afirmou que, com o fechamento de entrepostos durante o lockdown, o número de pessoas passando fome aumentou e estão até "comendo gatos".

A coordenadora do programa Bem Estar Animal, da Prefeitura de Araraquara, diz que não houve registro sobre este último caso. "Temos nossos canais oficiais, a Ouvidoria e não chegou nenhuma denúncia nesse sentido", disse, ao UOL, a coordenadora do programa, Carolina de Mattos. Na sexta (25), o órgão encaminhou uma representação ao MP-SP (Ministério Público de São Paulo) e pediu apuração.

Para Lahuerta, este tipo de estratégia de radicalização com fake news fica mais presente à medida que discursos sem base científica ficam cada vez mais isolados.

Na exata medida em que estas decisões começaram a ser mais bem aceitas, recrudesceram os posicionamentos radicalizados. Mas isso é muito mais uma expressão de enfraquecimento do que de força. É lógico que lockdown funciona. Então, neste momento, as pessoas [contra] vão radicalizar. Por que o Bolsonaro falaria em Araraquara 20 vezes?
Milton Lahuerta, cientista político

Para Kernauy, "tem, sim, uma reação muito grande", mas existe um cálculo político também na adoção de restrições. "O Edinho é um político hábil, ele sabe que não conseguiria implementar uma segunda vez se não tivesse esse apoio."

Com a guerra de narrativas, a dúvida ainda paira nas ruas. "Tendo lockdown ou não tendo tem muita gente [nas ruas] do mesmo jeito", opinou Muriel, 38.

À reportagem, ela contou, inicialmente, que tem medo de tomar vacina por causa das possíveis reações. Sua parente Ana Júlia, 20, agente de combate à dengue, que estava ao lado, reforçou que a reação aos sintomas da doença podem ser bem piores. Muriel fez uma reflexão instantânea e reavialou que pretende se vacinar, sim.

Prefeitura implementou barreiras sanitárias para impedir circulação de carros no centro de Araraquara Imagem: UOL

Lockdown é consenso e deveria ser maior, diz pesquisador

O pesquisador Domingos Alves, professor da FMUSP-Ribeirão (Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo em Ribeirão Preto), diz nem precisar mais comentar sobre a eficácia do lockdown. Segundo ele, que estuda os indicadores da pandemia, as medidas restritivas não só funcionam como deveriam ser ainda mais rígidas e mais duradouras —por, no mínimo, duas semanas.

Ele cita o Reino Unido como exemplo de sucesso no começo deste ano. "Em um mês, a Inglaterra conseguiu reduzir [a taxa de novos] infectados de 60 mil para 5 mil por semana."

*(Com Colaboração para o UOL, em Araraquara)

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