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PE: À espera de TSE e STF, cacique barrado dá 'jeitinho' para governar

Marcos Xukuru, cacique do povo Xukuru de Pesqueira (PE) - Arquivo Pessoal
Marcos Xukuru, cacique do povo Xukuru de Pesqueira (PE) Imagem: Arquivo Pessoal

Giovanna Carneiro

Colaboração para o UOL, de Pesqueira (PE)

08/08/2021 04h00Atualizada em 15/09/2021 12h31

Filho de uma liderança histórica da causa indígena, Marcos Xukuru virou cacique do povo xukuru do ororubá muito jovem após seu pai ter sido assassinado. Eleito em 2020 na cidade Pesqueira (PE), ele se tornaria um dos pouquíssimos prefeitos indígenas do país, mas foi barrado com base Lei da Ficha Limpa e não assumiu. Agora, sua carreira política depende de uma decisão do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) e do STF (Supremo Tribunal Federal).

Enquanto isso, Marcos tem dado um "jeitinho" para governar, conforme a reportagem do UOL presenciou em visita município, localizado a 213 km do Recife. Por lá, ele não só enfrenta a oposição de nomes que dominam a política local há quase três décadas como encara o ceticismo de seu povo.

Um dos nove indígenas eleitos como prefeito de uma das 6.570 cidades do país e o único de Pernambuco, Marcos, dos Republicanos, venceu nas urnas Maria José Tenório (DEM), que tentava a reeleição. Foi a primeira vez que a população elegeu um indígena para comandar a cidade, que tem 67 mil habitantes, dos quais 17% são indígenas.

Plano B

No dia em que a reportagem esteve em Pesqueira, Marcos atribuiu seu atraso para a entrevista marcada a uma visita à obra de uma escola numa aldeia. Naquela tarde, ele disse que ainda encontrou um bispo da cidade.

Hoje Marcos é secretário do Governo e coordena projetos, além de liderar secretarias e demais órgãos da cidade. Foi nomeado pelo vereador Sebastião Leite, o Bal de Mimoso (Republicanos), que é o presidente da Câmara Municipal e, por isso, assumiu a prefeitura interinamente. O arranjo foi a saída desenhada pelos dois aliados para o indígena governar.

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Cacique Marcos Xukuru, prefeito eleito de Pesqueira (PE), e o presidente da câmara dos vereadores, Bal da Mimosa, o prefeito interino.
Imagem: Arquivo Pessoal

Ele obteve 51,60% dos votos, mas teve sua candidatura indeferida após o adversário Tenório abrir uma ação na Justiça Eleitoral por Marcos ter sido condenado por incitar um incêndio 17 anos atrás. Por 4 votos a 3, o TRE-PE (Tribunal Regional Eleitoral de Pernambuco) barrou sua participação na eleição ao enquadrá-lo na Lei da Ficha Limpa, que impede condenados em segunda instância de participar em pleitos.

O cacique eleito recorreu ao TSE, argumentando que o crime de incêndio não se enquadra nos critérios previstos pela Lei da Ficha Limpa.

Esse crime não consta no rol de crimes de inelegibilidade da Lei da Ficha Limpa. O que existe é uma tentativa de enquadrar ele através da interpretação extensiva de dano ao patrimônio privado
Guilherme Araújo, advogado e coordenador de campanha de Marcos Xukuru

Caso o TSE não acate o pedido da defesa de Marcos, novas eleições serão convocadas no município de Pesqueira, já que o primeiro colocado alcançou mais de 50% dos votos válidos.

O caso saiu da pauta do órgão no dia 16 de junho, após o ministro Edson Fachin pedir vistas. A expectativa é que o processo só seja retomado quando o plenário do STF julgar os prazos de inelegibilidade para enquadrar alguém na Lei da Ficha Limpa. O que está em discussão é se o prazo de oito anos em que a pessoa fica inelegível passa a contar após condenação em segunda instância ou a partir do cumprimento da pena. O caso foi designado ao ministro Nunes Marques, que vem adiando a conclusão do processo.

Tanto Marcos como Leite foram candidatos pela coligação Pesqueira de Todos, chapa encabeçada pelo Republicanos, mas apoiada por PL, PTB e PT.

Mesmo antes de ser nomeado secretário, o prefeito eleito frequentava administração para "aconselhar" o colega em exercício, o que fez a oposição denunciar à Promotoria da cidade que Marcos estava governando sem permissão legal para isso.

Por ser a liderança do povo, em alguns momentos, o prefeito interino e os outros secretários me chamavam para vir aqui [na Prefeitura] e a gente batia um papo, tomava um café
Marcos Xukuru, prefeito eleito em Pesqueira (PE)

Em dezembro de 2020, a promotora de Pesqueira, acompanhada da polícia, averiguou a situação, e Marcos parou de frequentar os prédios da administração da cidade. Agora, nomeado secretário, ele tem sua própria sala e dá expediente quase que diariamente.

Nós temos a maioria na Câmara a nosso favor. Aos poucos eu vou conseguindo tocar os projetos que tenho como gestor
Marcos Xukuru

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Cacique Marcos Xukuru, prefeito eleito de Pesqueira (PE) barrado pela Lei da Ficha Limpa, em seu escritório onde atua como secretário de governo do município
Imagem: Giovanna Carneiro/UOL

Incêndio na Ficha Limpa

O argumento para o indeferir a candidatura de Marcos Xukuru pela Lei da Ficha Limpa é baseado em um caso ocorrido em 2003, que o levou a ser acusado por dano ao patrimônio público por incêndio.

Naquele ano, ele tinha três anos como cacique e lidava com intensos conflitos na região. Em 7 de fevereiro, Marcos e dois parceiros, Josenílson José e José Ademílson, viajavam de caminhão por uma estrada, quando tiveram de parar ao encontrar um desafeto, o criador de gado, José Lourival Frazão.

De acordo com o Ministério Público Federal de Pernambuco, Frazão e um dos acompanhantes de Marcos estavam armados. Uma discussão começou e houve troca de tiros, que resultou na morte de José e Ademílson. O cacique conseguiu fugir.

A notícia do conflito se espalhou pelas aldeias, e a população se mobilizou para queimar e danificar casas e veículos. Os ataques atingiram a Fazenda Curral do Boi, local do conflito, e a Vila Cimbres, território de Frazão e de Expedito Cabral, conhecido como Biá, outra das desavenças de Marcos.

Uma professora que mora no município de Poção, vizinho à Pesqueira, relata que o sentimento era de revolta. Ela preferiu omitir o nome nesta reportagem.

O pano de fundo da disputa era um conflito de terras, já que Biá negociava a construção de um hotel na Vila Cimbres sem o aval do cacique. O ataque marcou a ruptura dos xukurus, entre os ororubás, liderados por Marcos, e os cimbres, um grupo menor que não concordou com o cacique. "Foi muito triste ver um monte de famílias indo embora em caminhões", relembra a professora.

O cacique nega as acusações. Diz que, após fugir pela mata, foi ao hospital e ficou de repouso na casa da mãe. Seus advogados chegaram a anexar documentos do hospital para comprovar que ele está falando a verdade.

De acordo com as testemunhas ouvidas pelo processo, porém, Marcos incitou as ações e, como líder do povo indígena, seria responsável por todo o grupo.

Com isso, ele e outros 35 indígenas foram condenados, decisão reafirmada em segunda instância em 2015. Um ano depois, ele recebeu indulto presidencial de Dilma Rousseff (PT) e o tempo de prisão foi substituído por duas penas alternativas: prestação de serviços comunitários e limitação de mobilidade aos fins de semana. A punição foi cumprida no mesmo ano.

Encantados ignorados

Governada por cerca de 30 anos pelo engenheiro agrônomo, empresário e ex-deputado estadual João Eudes Tenório ou algum de seus sucessores, a cidade apostou na quebra desse ciclo ao eleger Marcos Xukuru. Uma das promessas dele era expor irregularidades administrativas de gestões anteriores. O cacique atribui a essa promessa as investidas da oposição.

Entretanto, aliados também o olham com ressalvas, mas por motivos diferentes. Para o povo xukuru, missão e direcionamento na vida devem ser apontados por Deus e os encantados — ao morrer, os mais velhos não somem da vida da comunidade; eles se encantam e se mantêm presentes na natureza.

Como cacique em Pesqueira, Marcos Xukuru lidera 24 aldeias, ocupadas por cerca de 12 mil pessoas. Marcos argumenta que já não precisa se dedicar exclusivamente porque cumpriu sua missão. Além disso, diz, cada uma delas tem suas lideranças.

Eu entendi que a minha missão com o povo Xukuru tinha se encerrado com a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos [CIDH], que condenou o Brasil por violações dos direitos indígenas. Foi o ápice da minha luta. Então, comecei a refletir e entender que minha missão ia além das fronteiras do território e do movimento indígena
Marcos Xukuru

Indenização milionária

Marcos se refere à vitória histórica do povo xukuru em um processo contra o Estado brasileiro na CIDH por atos de violências e mortes sofridas pelos indígenas devido à luta por terra no país.

A denúncia incluiu o assassinato de seu pai, o cacique Xikão. Responsável pelo movimento que resultou na consolidação das demarcações de território indígena previstas pela Constituição Federal de 1988, o líder histórico foi assassinado em frente à casa de sua irmã, em 20 de maio de 1998, aos 46 anos de idade.

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Marcos Xukuru ao lado do pai, Xikão Xukuru, e o irmão Uelson, na Pedra do Rei do Ororubá em 1987; liderança indígena histórica que participou das discussões que levaram a demarcação de terras a ser assegurada na Constituição de 1988, Xikão foi assassinado ao 46 anos em 1998
Imagem: Arquivo Pessoal

Dezesseis anos após a abertura do processo, a corte internacional determinou em 2018 que o Brasil indenizasse os indígenas em US$ 1 milhão. O dinheiro foi depositado em meados de 2020 em uma conta da Associação Xukuru, que possui Marcos como um dos responsáveis. Na época, ele afirmou que usaria o valor para atender famílias e fazer melhorias no território indígena. Um aliado que preferiu não ter o nome revelado mencionou que "o povo indígena nunca viu esse dinheiro".

A reportagem levou os questionamentos a Marcos Xukuru e solicitou seu posicionamento por telefone e via aplicativo de mensagens desde 27 de julho, mas ele não respondeu.

Sentado em sua cadeira de secretário municipal, ele avalia que, a despeito das críticas, o saldo é positivo.

Pesqueira sempre foi comandada por um grupo político que tem influência secular na cidade, que funciona como uma oligarquia. Ainda existe todo um vício e um imbróglio na administração pública, mas, mesmo com todas essas dificuldades, eu resolvi enfrentar e vencer
Marcos Xukuru