Adotada que busca origem na Argentina: 'Disseram que fui pega na favela'

Pelo menos quatro brasileiros podem ter sido sequestrados na Argentina durante o período de ditadura militar naquele país (1976-1983) e trazidos ilegalmente para o Brasil.

Aqui, foram adotados por famílias de militares ou de políticos. São três mulheres e um homem que nasceram na década de 1970, quando o Brasil também vivia sob um regime de ditadura militar. As famílias que ficaram com eles são dos estados do Rio Grande do Sul e de São Paulo.

Relacionadas

Adotados na ditadura investigam se foram sequestrados na Argentina

Avós da Praça de Maio buscam no Brasil bebês roubados na ditadura argentina

Braga Netto nega ditadura em 1964: 'Se houvesse, muitos não estariam aqui'

A organização Avós da Praça de Maio busca no Brasil bebês roubados na ditadura argentina.

O governo da Argentina iniciou no fim de julho uma campanha que busca esses bebês roubados pelos militares naquele país entre os anos de 1976 e 1983, durante o período de ditadura militar. Ao todo, na Argentina, foram sequestrados cerca de 500 bebês e crianças —aproximadamente 350 ainda não foram recuperados.

Abaixo estão os relatos dos quatro casos levantados pela reportagem.

A história de Cristina

Cristina Strassburger tem seu registro de nascimento datado de 7 de agosto de 1975. Foi adotada por Ethel Strassburger, então com 50 anos de idade e irmã do empresário do ramo de calçados e ex-vice-governador gaúcho Claudio Strassburger.

Foi registrada em cartório na cidade de Porto Alegre. A certidão aponta que Cristina nasceu na casa de Ethel, na mansão da família Strassburger na rua Marques de Herval, em Porto Alegre. O documento mostra que Cristina é "filha da declarante (Ethel)", irmã de Claudio.

Claudio foi amigo íntimo do ex-cônsul uruguaio em Porto Alegre Raul Liard, envolvido em grande caso de espionagem internacional em território brasileiro. Foi expulso do Brasil depois de denunciado por promover espionagem sobre o exilado político uruguaio Wilson Ferreira Aldunate, em 1983. O fato gerou enorme polêmica com a Polícia Federal no Rio Grande do Sul e o governo brasileiro.

Liard é envolvido em outros casos de espionagem política, segundo atestam documentos confidenciais do Departamento de Estado dos Estados Unidos aos quais a reportagem teve acesso.

Liard, já falecido, foi amigo íntimo do empresário e político brasileiro Claudio Strassburger, a quem defendeu ardorosamente. Foram anos de convivência, desde pelo menos a década de 1970. Atualmente são as filhas de Liard que cuidam do amigo brasileiro, bastante enfermo.

"As filhas de Raul cuidam de meu tio até hoje, como se ele fosse pai delas. Cada vez que se fala desse caso, a família toda se cala. Eles têm orgulho do Claudio, por ser da Arena, do PDS (partidos extintos que antecederam o atual Progressistas - PP). Eu só quero esclarecer minha origem, quem são minha mãe e meu pai biológicos", desabafa Cristina, ao comentar que esses amigos da família trabalharam para a "inteligência uruguaia durante a Operação Condor".

"Minhas origens nunca foram reveladas, muito pelo contrário, sempre constituiu segredo. A qualquer pergunta minha em relação ao meu passado eu obtinha como resposta: 'não olhe para trás, passado é passado'."

Cristina já colheu material para o exame de sangue junto ao banco de dados genéticos da Avós da Praça de Maio. Aguarda a conclusão do relatório. Ela entende que pode ser uma dessas vítimas de pais argentinos ou mesmo uruguaios.

A história de Daiani

Daiani Quinhones Teixeira foi registrada como filha de Elizabete Quinhones Coelho e de Hermes Dornelles Teixeira. Conforme sua certidão de nascimento, teria nascido no Hospital das Forças Armadas (HFA) em Brasília em 12 de outubro de 1974, filha de Elizabete.

O pai, mostra o documento firmado em cartório somente em março de 1976, seria o militar Hermes Dornelles Teixeira. Contudo, a própria administração do HFA confirma que nem Daiani nem Elizabete têm registro neste hospital.

Já nos anos 2000, Hermes foi para a reserva no Exército. Documentos reservados do Exército apontam que ele sempre esteve lotado no Comando da 3ª Região Militar do Exército Brasileiro, no Rio Grande do Sul.

Em agosto de 2018 - como 1º tenente reformado -, recebeu o benefício de auxílio-invalidez. Seu registro militar identifica como base de trabalho a unidade na cidade de Santa Maria, mesma cidade que seria a origem de L.. O militar trabalhou no Serviço Nacional de Informações (SNI) durante o período da ditadura. Atuou no Rio Grande do Sul, Amazonas, Distrito Federal, entre outros locais.

"Pedi minha Declaração de Nascida Viva no hospital em Brasília que aparece na minha certidão de nascimento", conta Daiani.

"Para minha surpresa não existe nenhuma genitora com o nome da minha mãe que conste nos livros de registro. Nem meu nome. Ou seja, eu não nasci nesse hospital. Na certidão de nascimento em cartório consta que sou filha ilegítima de Hermes e Elizabete."

Atualmente, ela passa pelo processo administrativo de registro e entrevista no consulado da Argentina em Porto Alegre para posterior coleta de material para o exame de DNA com a Avós da Praça de Maio e a Conadi (Comissão Nacional pelo Direito à Identidade), entidade do governo argentino para investigação de casos de pessoas desaparecidas durante a ditadura naquele país.

Procurada, Elizabete Quinhones Coelho não atendeu às ligações telefônicas ou deu retorno por mensagem, conforme solicitações enviadas pela reportagem.

"É uma situação possível. Essas ditaduras usaram de tudo para cometer crimes e para encobrir esses crimes", diz.

As filhas do ex-cônsul uruguaio Raul Liard, que hoje cuidam de Claudio Strassburger, não retornaram as mensagens de contato.

A história de Cristiane

A outra mulher que recorreu ao banco genético de desaparecidos políticos das Avós da Praça de Maio é Cristiane Gimenez Palacios. Ela teria nascido em 30 de janeiro de 1978 e foi registrada como filha legítima de Elizabeth Gonzaga e de Sydney Palacios, ex-comandante de Policiamento de Área da Polícia Militar na capital de São Paulo e ex-deputado estadual.

"A Elizabeth sempre conta um monte de histórias sobre minha origem. Uma diferente da outra. Já disse que fui pega numa favela em São Bernardo, por exemplo. Cada vez fala uma coisa e nunca revela a verdade", reclama Cristiane.

Em suas buscas, anos a fio sem resultados concretos, resolveu procurar a organização Avós da Praça de Maio.

"Não podemos descartar nenhuma hipótese. Quem sabe eu pudesse ter sido roubada na Argentina e adotada aqui?", questionou.

Ela fez o exame no fim de 2019. O resultado entregue em 2020 foi negativo. Mesmo assim, ela continua na sua busca pela origem biológica. Descobriu que haveria outras pessoas envolvidas em adoções de crianças na família de Elizabeth. O pai, o coronel da PM, morreu em novembro de 2020.

"Me reconciliei com ele, que estava muito doente. Me resolvi com ele."

Documento mostra que Cristiane teria nascido no apartamento de Elizabeth Gonzaga em 30 de janeiro de 1978, na avenida São João, centro da capital paulista. No cartório, o primeiro registro contém apenas o sobrenome de Elizabeth: Gonzaga.

Oito anos depois, em fevereiro de 1986, após o fim da ditadura no Brasil, Sydney passou a constar como pai. Ele lavrou em cartório escritura de reconhecimento de filho. A partir dessa data, Cristiane teve o sobrenome de Elizabeth retirado e incluído o de Sydney. Passou a se chamar Cristiane Gimenez Palacios.

A mãe adotiva, Elizabeth Gonzaga, foi procurada várias vezes por telefone pela reportagem. Não atendeu as chamadas e também não deu retorno conforme foi solicitado.

O caso de L.

Outro caso envolve L., nascido em 1980 em Cruz Alta, Rio Grande do Sul. Ele prefere não ser identificado neste momento. É um brasileiro que sempre desconfiou de sua origem. Sua certidão de nascimento registrada em Cruz Alta aponta o nome de uma mãe biológica, que ele conheceu pessoalmente já adulto. Foi adotado e criado por outra família, na mesma cidade.

A família de adoção tem integrantes ligados às Forças Armadas e políticos que atuaram pelo partido de sustentação do governo militar, a Arena. Todos tiveram envolvimento com integrantes da ditadura, conta L. Além disso, a família possui parentes na Argentina.

"Sempre fizeram muito sigilo sobre minha história. Não revelam muita coisa. O que fez me sentir desconfortável e iniciar procura sobre minha origem", explica.

Sua desconfiança se acentuou ao descobrir que houve casos de bebês e crianças argentinas sequestradas pela ditadura na Argentina e levadas para outros países.

"Minha dúvida era se eu mesmo, registrado em cartório no Brasil, e como brasileiro nato, poderia ter origem diferente do que sempre me foi falado. Precisava saber se minha origem genética e real era argentina, se poderia ser um dos 500 bebês sequestrados e apropriados pelo terrorismo de estado da Argentina, e ter sido trazido para o Brasil e criado como se fosse brasileiro nato, nascido aqui", diz L.

O sobrenome da mãe biológica que consta na certidão de nascimento é o mesmo de uma das milhares de vítimas que aparecem no Memorial às Vítimas da Ditadura, na beira do rio da Prata, em Buenos Aires.

Depois de muitas pesquisas e muita procura em vão, resolveu ir até o consulado argentino em Porto Alegre. Primeiro, em 2019, fez contatos por email. Já passou pelo processo de análise de caso e no ano passado foi fazer a coleta de sangue para o exame de DNA.

"É importante que todas as pessoas que tenham alguma dúvida sobre usa origem façam essa busca. O trabalho das Avós da Praça de Maio é muito sério. As coisas acontecem de verdade. Não se pode desistir", argumenta L. ao lembrar da existência da Operação Condor -aliança militar dos países do Cone Sul (Brasil, Argentina, Uruguai, Chile, Paraguai e Bolívia), sob os auspícios dos Estado Unidos, para atuar na repressão à resistência civil aos governos militares.