Falta de apoio distancia ataques de Bolsonaro de comparação com golpe de 64
O Brasil viveu um dos momentos mais tenebrosos de sua história recente com a ditadura militar. Durou 21 anos, entre 1964 e 1985. A movimentação que culminou com o golpe de 31 de março de 1964, porém, começou bem antes e envolveu militares, políticos, setores sociais e até o governo dos Estados Unidos. Juntos, eles retiraram do poder o então presidente João Goulart.
Desde a redemocratização, o tema da ruptura institucional nunca esteve tão em alta como agora, durante o governo Jair Bolsonaro (sem partido). O presidente tem feito reiteradas ameaças golpistas. Ontem, por exemplo, atacou instituições como o STF (Supremo Tribunal Federal) e o TSE (Tribunal Superior Eleitoral).
Ele e seus apoiadores também já trataram da possibilidade de uma nova intervenção militar, justificando as falas com o artigo 142 da Constituição de 1988 —que não dá às Forças Armadas a função de atuar como moderador dos outros Poderes.
Mas há semelhanças entre os momentos que antecederam o golpe de 1964 com a tensão vivida atualmente?
Personagens históricos e pesquisadores ouvidos pelo UOL afirmam ver diferenças marcantes entre os dois momentos. "Não acho que haja qualquer semelhança", resume o historiador e escritor Carlos Fico, da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).
Contextos diferentes
O contexto mundial da época é fundamental para entender os dois momentos. Em 1964, o principal discurso dos articulistas do golpe era afastar o país de uma "ameaça comunista". Em tese, o golpe iria conduzir o país para eleições presidenciais em 1965 —mas, na verdade, isso só voltou a ocorrer muito tempo depois, em 1989.
Naqueles anos, o planeta vivia uma divisão entre o mundo capitalista, comandados pelos EUA, e o bloco comunista, capitaneado pela União Soviética. A revolução comunista de Cuba, em 1959, elevou a tensão no continente e abriu os olhos do governo americano para a região.
"Naquele período, havia uma uma conspiração a partir de Washington. Finalmente, entre o final de março e abril, o capital imperialista dos Estados Unidos consegue se unir à direção das Forças Armadas brasileira, mas com apoio da grande imprensa, grande parte do Parlamento e da cúpula da igreja também", afirma Edival Nunes Cajá, sociólogo, ex-preso político, presidente do Centro Cultural Manoel Lisboa e coordenador do Comitê Memória Verdade e Justiça para a Democracia de Pernambuco.
Hoje, diz, não há um apoio parecido dos grandes setores sociais. Além disso, ele lembra que os "recados" e ameaças feitas eram sempre mais duras.
Essas ameaças de hoje de Bolsonaro não passam de blefe para intimidar a oposição e o movimento popular que começou a ir às ruas. Naquela época, essa era uma possibilidade real.
Edival Nunes Cajá, sociólogo e ex-preso político
Sinais antes do golpe
Outra diferença crucial de 1964 era que a pressão pelo golpe era para retirar do poder João Goulart, um vice que herdou o cargo após a renúncia de Jânio Quadros, em 1961, e era apontado como "subversivo".
Hoje, é o presidente que ameaça a ruptura, um cenário que mais lembra o golpe de Getúlio Vargas em 1937.
O jornalista e historiador alagoano Ediberto Ticcianelli lembra que, além de Cuba lograr êxito em sua revolução, houve naquela década um aumento de tensão entre o capitalismo e o socialismo. "Todos recordam da Crise dos Mísseis, em 1962, quando equipamentos soviéticos não conseguiram desembarcar em Havana", afirma.
Ele lembra ainda que a narrativa golpista existia antes do golpe de 1964, mas havia movimentos articulados dentro das Forças Armadas.
"Hoje não temos mais essa corrente 'tenentista' atuando e a própria Igreja Católica, que apoiou e participou do golpe, tem externado distanciamento dessas aventuras. Não percebo interesse das Forças Armadas hoje em se envolver numa aventura liderada por um inconsequente", aponta.
Jorge Chaloub, professor de ciência política da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), diz que há um ponto que precisa ser levado em conta quando se compara contextos: o tamanho das democracias.
A República de 1946 [ao fim do Estado Novo, de Getúlio Vargas] é um momento de democratização, com ampliação no processo participação na política; mas por outro lado havia limitações claras à participação e ao que a gente consideraria hoje como democracia: os analfabetos não votavam, o Partido Comunista foi caçado absurdamente pelo TSE em 1947. A gente tem que levar isso em conta.
Jorge Chaloub, professor de ciência política da UFRJ
Entretanto, ele faz uma comparação no que se refere à retórica de quebra institucional. "Se tem algo que aproxima essas duas experiências, é essa naturalização de um discurso de ruptura", afirma.
"Desde 1950, você tem a naturalização de uma certa retórica golpista por parte da UDN, quando Getúlio Vargas sai candidato. Ali o Carlos Lacerda lança um editorial famoso, falando: 'Ele não pode ser candidato; se for candidato, ele não pode vencer; se ele vencer, não pode assumir'", conta.
A atuação das igrejas
Para José Geraldo de Sousa Junior, professor da UnB (Universidade de Brasília) na área de direito, o golpe de 1964 começou a ser gestado —e deveria ter ter sido dado— antes.
"Isso vem desde 1954. Foi o suicídio de Getúlio Vargas que desmobilizou esse golpe por causa da comoção pela morte do 'pai dos pobres'. Isso acabou recolhendo as forças conspiratórias", conta ele, que era estudante em Guarulhos (SP) em 1964.
Na década de 1960, a sociedade era muito diferente. Um exemplo é a força e posicionamento da Igreja Católica, que era uma força "anticomunista". "Existia uma posição ideológica contra o comunismo, não existia esse neopentencostalismo; havia igrejas protestantes tradicionais, mas que não entraram na aventura do golpismo. O que está na cena hoje é uma profusão de igrejas, quase de bairro em bairro. São essas que estão ligadas a representações que inflam expressões do Jair Bolsonaro", diz.
Outro ponto que ele ressalta é que não haveria apoio americano a uma ruptura brasileira, como em 1964. "Não existe mais uma unidade ideológica na esfera global capitalista para subordinar as governanças dos países. Os EUA hoje não iriam ingressar em aventuras que possam colocar em risco sua própria liderança", explica.
Golpe sem um tiro
O ex-presidente da UNE (União Nacional dos Estudantes) Jean Marc von der Weid era militante estudantil nos anos 1960 e faz uma ponderação para o tamanho do peso dos apoios que os militares tiveram em 1964. "O golpe militar foi um passeio, e o governo caiu sem um tiro", avalia.
Em 1964, as forças econômicas, a Igreja Católica, a grande imprensa e a oficialidade das Forças Armadas planejaram o golpe ao longo dos três anos de João Goulart. A classe média, agitada pelos agentes acima citados, embarcou na histeria anticomunista e apoiou o golpe. EUA e o mundo ocidental em geral, em plena Guerra Fria, também deram o seu aval ativo ou passivo para a aventura militar golpista.
Jean Marc von der Weid, ex-presidente da UNE
Esse cenário, diz, seria improvável hoje. "Bolsonaro sabe que tem fortes resistências ao seu projeto de poder total e que dificilmente pode dar um golpe sem um enfrentamento armado. Seu projeto tático é aproveitar uma situação de descontrole social e de fragilidade institucional", explica.
Apesar de todas diferenças, estamos livres de uma nova ruptura? A ideia não seria bem essa, diz Weid, lembrando que agora existe um bolsonarismo latente nas PMs (Polícias Militares). "Tínhamos a PM em 1964, mas era bem menor e menos política. Não tiveram nenhum papel a favor ou contra o golpe", diz.
"Em uma situação de descontrole social, uma recusa do estado de sítio criaria as condições para Bolsonaro apelar para as Forças Armadas e fechar o Congresso e o STF. Se os generais não acompanharem esta iniciativa Bolsonaro, ele não vacilaria em apelar para os comandantes diretos das tropas. Neste caso, veríamos se a permanente subversão da hierarquia que o presidente vem promovendo daria certo", avalia.
* Com informações e imagens do CPDOC (Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil), da FGV (Fundação Getúlio Vargas)
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.