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Como a ditadura militar tentou esconder epidemia de meningite no Brasil

O general Ernesto Geisel (centro) era o presidente na época da epidemia de meningite no Brasil - Arquivo/Estadão Conteúdo
O general Ernesto Geisel (centro) era o presidente na época da epidemia de meningite no Brasil Imagem: Arquivo/Estadão Conteúdo

Carlos Madeiro

Colaboração para o UOL, em Maceió

14/06/2020 04h00

Resumo da notícia

  • País enfrentou grave epidemia de meningite nos anos 1970
  • Documentos mostram como o regime militar escondeu o fato e perseguiu pessoas
  • Militares não queriam causar alarme nem ferir a imagem do governo em pleno "milagre econômico"
  • O número de casos e mortes não é conhecido até hoje

Nos anos 1970, em plena ditadura, o país enfrentou uma grave epidemia de meningite que superlotou hospitais, cancelou eventos e fez com que muitos brasileiros perdessem a vida. Mesmo ciente da gravidade do problema, o então governo militar atuou para proibir a divulgação dos números oficiais de casos e mortes —até hoje não se sabe a quantidade exata de casos e mortes pela doença naquela década.

A censura aos dados no regime militar foi lembrada por muitos historiadores e infectologistas esses dias por causa da falta de transparência do governo Jair Bolsonaro (sem partido) em relação aos dados da covid-19, após o Ministério da Saúde reduzir a quantidade de informações disponíveis sobre a doença.

Documentos do Arquivo Nacional mostram como o regime militar atuou não só para censurar os veículos de comunicação, como também espionou, perseguiu e até deu ordens para que pessoas que estavam informando a população sobre a doença fossem investigadas.

Segundo os papéis confidenciais, o regime aparentava ter dois objetivos: não causar alarme à população e, principalmente, não ferir a imagem do governo em plena época do "milagre econômico."

A gravidade do problema, entretanto, era conhecida da cúpula do governo. Em um informe de 31 de julho de 1974, o SNI (Serviço Nacional de Informações) comunicou ao então presidente, o general Ernesto Geisel, que a epidemia teria começado com um surto em Osasco (na Grande São Paulo) e se alastrado pelo país causando graves problemas.

"Sabe-se de sobejo que o alastramento do mal encontra campo propício nos aglomerados populacionais, nos ambientes de pouca higiene e na estação invernal. Nessas condições a cidade de São Paulo é um meio ambiente ideal, sabendo-se que a cidade não é servida de esgotos em dois terços de sua área e 50% da população não é servida por rede de água. Acresce dizer que o clima de São Paulo, frio e úmido, no inverno, concorre, juntamente com e enorme população, de forma decisiva para o desenvolvimento epidêmico", diz o texto.

O informe ainda explicitou que, se não fossem tomadas medidas preventivas em São Paulo, "pode-se prever que anualmente a cidade será atormentada pela incidência dessa doença".

Entretanto, alerta também que isso "terá reflexos negativos no curso da campanha eleitoral que agora se inicial."

Diante da constatação, e com a eleição daquele ano, o documento finaliza dizendo que o momento político poderia ser desestabilizado por oposicionistas, padres progressistas e imprensa gerando "sérios inconvenientes à política do governo federal"

Radiograma ordenou veto

Apesar da ciência da gravidade, o governo manteve durante quase todo período uma proibição da divulgação dos dados.

Um outro documento divulgado pelo historiador Lucas Pedretti, também recuperado do Arquivo Nacional, é de um radiograma do dia 30 de julho 1974 em que o então diretor da Polícia Federal, Moacyr Coelho, diz que deve ser seguida a ordem de manter proibida a divulgação de "dados numéricos e gráficos sobre meningite."

"Esse telegrama começa falando 'reitero os termos' de um outro radiograma para manter proibido a divulgação de dados. A gente não tem acesso a essa radiografia anterior", conta o historiador.

Esse, aliás, é um dos problemas encontrados nas pesquisas de documentos da época da ditadura: boa parte dos arquivos foi destruída.

Em sua pesquisa sobre a meningite, Pedretti achou uma lista de papéis destruídos pelos militares, em que constava um intitulado "campanha de difamação Brasil surto de meningite".

"Nunca saberemos o que tinha nele, mas o nome é bem sugestivo", comenta Pedretti.

Ainda em outro radiograma de 1974, o então chefe da PF "libera" notícias, mas proíbe "dados e notícias tendenciosas que alarmem a população".

"Nem sei se diria que foi uma amenização na ordem de proibição. É praticamente como se eles estivessem falando para dar os números de pessoas que estão sobrevivendo, tipo um 'placar da vida', mas que não poderia falar o número de pessoas que estava morrendo ou de pessoas infectadas", diz Pedretti.

O número de casos e mortes na epidemia ainda é incerto. Segundo a BBC Brasil, o estudo "A Doença Meningocócica em São Paulo no Século XX: Características Epidemiológicas", de autoria de José Cássio de Moraes e Rita Barradas Barata, calculou que, no período epidêmico, que durou de 1971 a 1976, foram registrados 19,9 mil casos da doença e 1.600 óbitos.

Já a edição de 30 de dezembro de 1974 do jornal O Globo divulgou que, só naquele ano, a epidemia deixou um saldo de 111 mortos no Rio Grande do Sul, 304 no Rio de Janeiro e 2.500 mil em São Paulo.

Pesquisa mostra censura

A doutora em Comunicação e Saúde pela Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) Catarina Schneider fez sua dissertação de mestrado, na UFJF (Universidade Federal de Juiz de Fora), sobre os discursos dos jornais O Globo e Folha de S.Paulo durante a epidemia de meningite na época da ditadura.

Ela revela que em sua pesquisa achou títulos e trechos de matérias que "mostram claramente a censura aos meios de comunicação e uma negação clara da doença".

Em dois de agosto de 1971, por exemplo, uma chamada dada pelo jornal O Globo dizia "Nada autoriza a qualificação do surto como epidemia", numa tentativa de "reduzir" a imagem da epidemia que se alastrava pelo país.

Ela explica que, até 1973, o governo e as autoridades em saúde tentaram silenciar o que estava acontecendo no país.

"A negação da epidemia e um discurso que amenizava a real situação era constante nos jornais analisados. Porém, até 1974 estava circulando somente um vírus da doença, meningococo C. Foi a partir desse ano que outro vírus começou a circular paralelamente, o meningococo A, e isso agravou ainda mais a doença. Então, não tinha mais como manter o silêncio", diz.

Um dos motivos desse silenciamento, conta Schneider, era que o Brasil estava vivendo o momento de "milagre econômico" "Não era interessante divulgar que estava o país passava por uma crise na saúde", afirma.

Burla à censura espionada

No meio da epidemia, havia jornalistas e técnicos de saúde que tentavam burlar a censura e alertar as pessoas de forma não oficial sobre os riscos de uma epidemia

Um dos documentos encontrados pelo UOL é um pedido de busca feito pelo SNI à Polícia Federal de Curitiba, datado de 29 de janeiro de 1975 e com prazo de 15 dias para cumprimento.

A investigação era para descobrir autores e local de distribuição de um documento chamado "a verdade sobre o controle da meningite."

"Os autores da publicação se identificam como pertencentes a uma equipe de técnicos do Ministério da Saúde, fato este contestado pelo ministro", diz o documento.

Atendendo a ordem, os policiais da Delegacia Regional do Paraná e de Santa Catarina cumpriram a ordem e relataram que, na verdade, as informações citadas estavam sendo prestadas pelo Posto de Saúde Pública de Foz do Iguaçu, e que não houve distribuição de panfletos, mas, sim, de "pequenos impressos, que visavam esclarecer a população em geral quanto aos sintomas apresentados pela moléstia"

"Os referidos impressos foram realmente distribuídos nesta cidade pelas Casas Pernambucanas, tudo levando a crer se tratar de um anúncio de utilidade pública", completa.

Há também documentos do da Aeronáutica com transcrições de falas em rádios internacionais, que citavam a preocupação dos países com a epidemia escondida pelo Brasil.

Algumas das transcrições são da rádio Havana, de Cuba, que à época já alertava sobre a censura dos dados oficiais. Apesar de eles não trazerem comentários, revelam uma preocupação do regime com a visão mundial do país.

"Falar era subversão"

A médica e hoje professora e pesquisadora aposentada Lia Giraldo da Silva Augusto conta que era estudante na Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, da USP (Universidade de São Paulo), e em 1974 concluiu o curso com o internato no Hospital Emílio Ribas, em São Paulo —o maior de infectologia do país.

Naquele ano houve o pico da epidemia, e o hospital onde ela atuava chegou a internar 1.200 pacientes em setembro —a capacidade máxima era para 300.

Segundo ela, era perceptível que a epidemia se mostrava grave desde 1972, mas pouco era falado nos meios de comunicação.

"Os professores sabiam o que estava acontecendo e tentavam nos preparar para dar assistência a pacientes portadores dessa doença", conta.

Segundo ela, a epidemia perdurou "absurdamente" até 1977 "por que a população não podia ser informada, não era instruída como se proteger."

"A meningite meningocócica se transmite pela via aérea mediante gotículas ou secreções do nariz e garganta de pessoas contaminadas pela bactéria. Não houve nenhuma medida de prevenção. Falar disso era considerado subversão", afirma.

A médica diz que não esperava viver novamente uma epidemia em que o governo atuasse para diminuir o tamanho dos impactos do vírus.

"Hoje estou com 73 anos de idade, 46 de carreira profissional, e estou vendo o filme passar de novo, com a diferença de estarmos em uma democracia. No entanto, a vejo muito fragilizada pela forma como o país vem sendo governado, prejudicando enfrentamento desta pandemia por covid-19, apesar de termos um grande sistema de saúde. Se o SUS [Sistema Único de Saúde] não existisse ainda estaríamos em pior situação, isto não tenhamos dúvida", comenta.

Valas clandestinas

Não bastasse esconder a doença à época, há também a suspeita de que corpos de jovens foram escondidos pelo regime.

Em 1990, quando se abriram as valas clandestinas do cemitério de Perus, em São Paulo, em torno de 450 das 1.500 encontradas eram pessoas com menos de 16 anos —e que muitos podem vítimas da meningite.

"Aquelas ossadas das quadras um e dois eram fruto de sepultamentos feitos nos de 1970 a 1974, época dessa epidemia. O número de jovens mortos foi muito alto, não foi um percentual normal. E essas valas de Perus eram onde estavam as vítimas do estado, e que também esconderam ossadas dessas crianças que morreram pela omissão do estado", afirma Eugênia Gonzaga, procuradora Regional da República em São Paulo, ex-presidente da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos.